domingo, 24 de agosto de 2014

24/08/14                                       INTERVALO

Intervalo compulsório e interessante. Dois dias inteiros sem pisar na rua. Me submeti a uma cirurgia odontológica um tanto complicada. Por causa do diabetes, dose cavalar de antibióticos. Por causa dos antibióticos, dose cavalar de desconforto gástrico. As doses cavalares aos 61 anos imprimem à alma desamparada uma certa solidão. Solidão do filho que está longe, solidão da família que está longe, solidão principalmente daqueles que estão perto, tão longe, que nem sabem que sinto solidão.

Ao contrário de me submeter às dores da solidão, me rebelo ancorada nos mecanismos para mitigá-la. Penso que vou ler Hamlet. Estou fazendo um curso de literatura e psicanálise cuja tarefa é Hamlet. Tem tarefa melhor? Penso que vou reescrever um trabalho sobre os "Três Tempos do Édipo" que começou direitinho e ficou mal acabado. Qual o quê? Nem ler nem escrever. Dois dias inteiros sem baixar a cabeça. Foi essa a prescrição. Me resta ouvir música e assistir televisão. Odeio televisão.

 Mas tudo na vida tem jeito se a gente quer dar jeito na vida. Escolho primeiro me entreter com a tarefa de tomar um banho como alguém que não se destina a ir a lugar algum. Tomar banho sem qualquer pressa só pra ficar em casa com nada pra fazer é o maior barato!! A gente espia com cuidado cada parte do corpo. A gente lembra dos banhos que tomou acompanhada quando a carne do corpo era mais rija. Agora, não tão rija, a carne continua seus reclamos pela carne do outro corpo. Onde o outro corpo se há pouco a alma do outro se refugiou num deserto de ausências? A gente sente o sabonete fazendo espuma e deslizando na pele.  Acaricio minha pele e sinto saudade de todos aqueles que um dia fizeram isto por mim. Onde andam aqueles? Sinto ternura pelo meu corpo desemparceirado. Penso um a um em cada parceiro que passou. Nossa, quanta recordação!!! Findo o banho, já que não quero ficar numa sessão nostalgia dos amores perdidos, começo a pensar em algo mais que fazer. O telefone toca.

É minha mãe ao telefone. Já estou no segundo dia pós cirúrgico e posso falar. Como foi gostoso conversar com minha mãe!! Desde que ela soube que está às vésperas de uma viagem de Maceió para Aracaju seus ânimos são outros. Foi muito feliz nos anos que viveu em Aracaju. Participava ativamente das tarefas da Paróquia de Santa Luzia, tinha um grande grupo de amigos, gostava do acolhimento do Padre Manoel. É tão devota a minha mãe, que já esqueceu seus lapsos de memória só de saber que em Aracaju poderá receber a eucaristia diariamente. E eu, que nada entendo de eucaristia, dou corda ao papo que  alimenta , nutre sua alma. Lúcida, alerta, ela se encarrega de perguntar como foi a cirurgia, prescreve cuidados, me dá colo. Colo de mãe é tão bom!! Mas o papo não pode demorar. Ela tem a saúde frágil e precisa de seus rituais de repouso, de respeitar seus horários. Nos despedimos e eu de novo às voltas com meu intervalo compulsório.

Tenho tanta coisa para ler do Seminário VI de Lacan!! Mas o dentista prescreveu cabeça erguida. Nada de Lacan. Então me entretenho com o sentido metafórico de "cabeça erguida" e vou ligar a televisão. Para não baixar a cabeça  aos apelos sensacionalistas da mídia, como o diabo foge da cruz fujo das notícias globais e sintonizo o canal 183, Arte 1. Está passando um documentário muito interessante sobre um violoncelista pernambucano de nome Antônio Meneses que mora na Suiça. Titubeio um pouco a respeito de assistir o programa. Já contei a todos que tive pai comunista. Em casa só música popular ou coisa dos negros americanos, Jazz, blues. Música clássica era costume considerado aristocrático. A propósito do gosto musical de meu pai, soube do falecimento de Cybele do Quarteto em Cy e fiquei triste. Quando moramos em Ibirataia meu pai costumava fazer serenatas com as irmãs, antes de se tornarem famosas.Então na minha educação não fui iniciada nos ritos da canção erudita e me socorre o ouvido com uma dose de intuição. Minha mãe, a contragosto, é formada em piano. Então nunca a vi tocar um dó. De cabeça erguida resolvo desobedecer ao pai e escuto Antônio Meneses.

Bendito ouvido, bendita intuição. Ouço Tchaikovsky, Vivaldi, Bach, Debussy, Schubert, Schumman e principalmente me emociono muito com "O Canto do Cisne Negro" de Heitor Villa Lobos. O Antônio Meneses viaja por toda a Europa regido por famosos maestros e caminha na rua carregando nas costas um violoncelo que tem 300 anos. Deu seu primeiro concerto aos 11 anos. Um sentimento de nacionalidade de cabeça erguida me toma. Me comovo, fico orgulhosa desse brasileiro.Vejo anunciando no intervalo um filme de Leon Hirszman sobre Nelson Cavaquinho. Esse posso assistir sem desobedecer a meu pai. O programa do violoncelo acaba e entra uma exposição de um pintor e desenhista chamado F. Bacon. Muito interessantes os rostos distorcidos, deformados que ele concebe. Trata-se de um homossexual que foi violentamente castigado na puberdade por ter sido surpreendido usando as roupas da mãe. No intervalo fico sabendo que o último filme de Alain Resnais se chama "Amar, Beber e Cantar".

Muito mais coisa do Arte1 desfila diante de meus olhos e ouvidos. Mas a cabeça já está em outra viagem.  Uma nostalgia de quando eu vivia em São Paulo me toma. Acho que ainda morava em São Paulo quando assisti a filmes de Alain Resnais. Saudade das tardes outonais onde me deixando tocar pela fuligem que encobria os caules das árvores derramando no chão suas folhas amarelecidas, eu ia aos cinemas, aos concertos, aos museus, às exposições. Ah, como eu ia ao teatro! Por que não usufruo tanto quanto da vida cultural em Salvador?  Por que recuso a minha baianidade ? Se apodera de mim um sentimento de exílio.Por que tive de vir embora de São Paulo? Por que resisto tanto a voltar lá? Penso na frase deixada no Facebook por minha amiga em São Paulo: "Venha me visitar".

 Uma condescendência com a dor da estrangeirice me acalenta. Deixo a televisão, levanto do sofá, vou me olhar no espelho e choro porque não tenho e jamais terei respostas para tais questões. São os mistérios da vida na sua perplexidade que a gente vai saber só depois. "Se eu soubesse disso, teria escolhido aquilo." Nem sei se a gente tem mesmo escolha. Mas de uma coisa eu sei: dentro do que a vida me ofereceu fiz o melhor que pude. Ainda é tempo de em tardes ensolaradas de verão me deixar tocar pela coreografia ao vento das folhas verdejantes dos coqueiros e ir aos cinemas, aos concertos, aos museus, às exposições. Ah, como posso ir ao teatro!  Para isso, basta me apropriar da bonita frase de Caetano Veloso: "O melhor lugar é ser feliz."
                                                                                                     Marcia Gomes. 

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