domingo, 31 de agosto de 2014

31/08/14                                      REENCONTRO.

Década de setenta. 1971 e 1972. Anos negros da ditadura militar. O que acalentava os sonhos daqueles jovens de ingressarem na Ufba e se tornarem psicólogos? A universidade era alvo da mais dura repressão. O movimento estudantil atuava tendo que recorrer a estratégias para se fazer presente na luta contra a ditadura, ao tempo em que cuidava de preservar a segurança de seus quadros. O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga em tempos tão sombrios?

A minha turma, que ingressou em 72, já o fez sob a égide de uma disputa que tínhamos que travar com os próprios colegas. Depois de aprovados no vestibular, para permanecermos no curso, tínhamos que nos submeter a uma outra seleção, o chamado "provão". O quinto ano de Psicologia, que nos autorizaria como psicólogos, não estava ainda regulamentado.

Acho que não é à toa que na literatura do materialismo dialético se diz que a contradição é o motor da transformação. Entrávamos no curso de Psicologia confrontados com as mais duras contradições impostas pelo regime militar, e ao invés de escolhermos competir com o colega que sentava ao nosso lado, junto com o Diretório Acadêmico lutamos e derrubamos o "provão". Nos engajamos na luta pela regulamentação do quinto ano e nos tornamos uma turma unida e solidária. Alguns de nós se tornaram ativos representantes do Diretório, outros escreviam no jornal "Reflexo" e vivemos com perplexidade e angústia a necessidade de nosso colega Acácio se refugiar na clandestinidade. Há alguns anos atrás soube por amigos do falecimento de Acácio por motivo de doença. Creio que jamais ele pode realizar o sonho de se tornar psicólogo.

O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga? Era um sonho antigo. Desde a adolescência comecei a me interessar pelas questões da subjetividade e do fazer clínico. A singularidade do outro me instigava e li autores como Balzac, Flaubert e Machado de Assis pelo quanto sabiam construir e descrever o perfil psicológico de seus personagens, ambientado em determinado contexto sócio cultural. Gostava de observar as pessoas e me tornei uma boa ouvinte das suas questões existenciais, seus dramas, seus dilemas, suas histórias de vida. Entrei no curso querendo ser psicoterapeuta e acreditando ter o psicólogo uma função  importante como agente de transformação, numa sociedade marcada pela desigualdade e pelo autoritarismo.

Ainda que sob alguns aspectos  não me furtasse a exercer uma certa liderança, eu era uma estudante tímida e muito aplicada. De modo que logo me refugiei num pequeno grupo de colegas muito estudiosos e politizados. Creio que a interação com a maioria dos colegas da classe ficava prejudicada pela timidez mal disfarçada por uma certa ascendência intelectual. No segundo ano de faculdade eu e meu grupo de amigos no qual eu vivia fechada, nos tornamos entusiastas do behaviorismo e muito devemos da nossa formação em Análise do Comportamento às professoras Anamélia e Eglê. De ambas nos tornamos monitores.

Já faz tanto tempo que não tenho certeza. Mas suponho que meu relacionamento com a grande maioria dos colegas se dava pela via de exercer a função de monitora. Pensando hoje, sinto muita falta de ter me relacionado com meus colegas mais de igual para igual, e uma enorme vergonha do preconceito com que eu lidava com professores psicanalistas e com colegas simpatizantes da psicanálise. Foram cinco anos que se eu pudesse retroceder no tempo muita coisa eu faria diferente. Sinto como se, fechada em meu grupo, tenha me privado de conhecer mais de perto outros colegas, de vislumbrar outras alternativas. Fico triste quando olho a foto da formatura em 76 e não me recordo do nome e mal reconheço alguns daqueles que durante cinco anos sentaram nos bancos escolares ao meu lado.

Na formatura, eu ainda estava muito tomada pelo luto de meu pai, mas tenho a bonita lembrança de mim no palco declamando a minha frase do jogral que toda a turma encenou. Foi um jogral de autoria da colega Ana Cecília que escreve muito bem, se não me engano, abordando a questão da função social do psicólogo. Lembro também que no nosso convite de formatura havia um poema "engajado" do colega Helson Ramos.

 Éramos jovens interpelados pelas questões que cercavam os tempos sombrios em que vivíamos, e na nossa maioria nos sentíamos convocados a lutar por uma sociedade mais justa e isso, como causa, nos movia como pessoas engajadas e responsáveis pela construção de um futuro. É claro que havia também entre nós aqueles "alienados" , acomodados aos fáceis confortos das suas vidinhas burguesas. Mas eram poucos. Tenho a clara lembrança de colegas de classe média alta ou mesmo alta escondendo em suas casas colegas perseguidos pela repressão, participando de assembléias e manifestações, e colaborando financeiramente para a luta contra a ditadura. 

Passada a formatura, a não ser do meu grupo de amigos, me afastei completamente de meus colegas. Com o grupo de amigos montei consultório para fazer Terapia Comportamental e lecionei alguns anos no curso de Psicologia da Ufba. No consultório, ainda muito politizados, prestamos  serviços a alguns militantes do PCdoB, atendendo-os em psicoterapia.

Na década de 80 mudei-me para São Paulo para fazer mestrado na USP, me desliguei da Ufba, não me casei oficialmente nem tive filhos. Voltei para Salvador na década de 90 e exerci, por vários anos, com muito sucesso a função de Terapeuta Cognitivo Comportamental até que em 2004, passando por um rico processo de análise, fiz, felizmente, minha passagem para a psicanálise e ocupo hoje com muito orgulho o lugar de psicanalista no meu consultório. Diante de tantas mudanças e reviravoltas, onde estavam os meus colegas de faculdade, o que andavam fazendo, o que fizeram de suas vidas? Eu os havia perdido de vista, como se nunca houvesse participado daquela turma.

Quando a gente se submete a um processo de análise, muitas coisas são ressignificadas. A gente, implicada no processo, se interroga sobre o destino que deu à própria vida, revê as escolhas que fez, arca com o ganho do que considera acertos, mas não deixa de pagar o preço pelos equívocos que cometeu, e corre atrás de se reinventar, fazer diferente.

Foi com esse espírito de querer me reinventar, que aceitei em abril deste ano o convite de uma colega que encontrei por acaso, para visitar um grupo de colegas da faculdade que se reúne uma vez por mês. Fui muito bem recebida no grupo. Senti prazer em rever as pessoas. Gostei das recordações tipo "hora da saudade" nas quais nos engajamos. E, de repente, muito espontaneamente, surgiu a ideia de 38 anos depois, fazermos um encontro das turmas de Psicologia que ingressaram em 71 e 72. Me deu um frio na barriga de medo mas achei a proposta bem interessante. O medo, acho, é efeito da timidez. Acho que anos de análise não curam timidez. Fico muito desajeitada em eventos sociais, particularmente em ambientes em que não me sinto pertencer. Como já disse, pelo meu fechamento e pelos meus preconceitos, é como não me sentisse pertencer àquela turma.

Diante da proposta senti-me dividida. Contudo o desejo de ver meus colegas, talvez poder abraçá-los como essa nova Marcia que sou, me fez embarcar no projeto. Trocaram-se E-mails e telefones, muitos colegas queridos e generosos apostaram na realização do evento que vai acontecer em 1 de novembro. A troca de mensagens para implementar a realização vai me dando conta de que somos uma turma carinhosa, cooperativa e com muita coisa pra compartilhar. Pode ser que na hora da festa me dê uma "caruara" e eu fique recolhida num canto. Mas o desejo agora é de rever aquelas pessoas das quais estive tão distante.

Fico impressionada com o número de pessoas que se disponibilizam para arcar com as tarefas de realização da festa. Alguns mais à frente, outros, nem tanto, mas todo mundo com desejo. Me emociona tanto esse impulso coletivo de reencontro, que acho que vou mandar esta crônica para toda a lista de contatos. Vou mandar a crônica para que todos saibam quão importante esse movimento de resgate é pra mim. Vai que na hora me dá a "caruara", então já me garanto contando na crônica.

Acho que foi minha a ideia de convidar aqueles que foram nossos professores. Agora que começo a envelhecer e tento me tornar mais humilde, sou grata a todos eles. Psicanalistas, behavioristas, pertencentes a quaisquer correntes teóricas, deram uma importante contribuição para nossa formação e uns mais, outros menos, estiveram todos juntos na jornada de fazer de nós os profissionais que somos.

 Não sei como será o encontro. Não sei no que se transformaram aquelas pessoas 38 anos depois. O que importa é que passamos 5 anos da nossa juventude convivendo diariamente juntos. Nos mais árduos anos da feroz ditadura. Éramos quase adolescentes. Quantas dúvidas, quantas inquietações, quantos projetos não tomavam cada um de nós? Dou-me conta de que somos hoje quase todos sexagenários. Muitos já perderam seus pais, ou são seus cuidadores. Muitos devem estar cheios de netos.Por quantas mudanças profissionais e pessoais não passamos? Quantos ganhos, quantas perdas, sonhos que se perderam, quimeras construídas, casamentos feitos e desfeitos?

 Podemos estar todos muito diferentes inclusive fisicamente. Em alguns pode ser que a pele não tenha mais o mesmo viço. Alguns podem estar acometidos dos achaques da PVC (porra da velhice chegando) ou da PVI (porra da velhice instalada). Talvez, como eu que não sou vaidosa, alguns prefiram mostrar seus cabelos grisalhos. Outros não. Fizeram plástica, lipoaspiração e fazem muito bem em malhar na academia. Não importa. Podemos, se quisermos, falar nesse encontro sobre tudo isso, até (por que não?) achando graça. Um senso de humor ancorado na ternura. Uma colega muito divertida, na troca de E-mails de preparação do encontro, sugeriu que usássemos crachás para sermos reconhecidos. De repente a ideia pega.

Acho que a riqueza do encontro vai estar em também nos reconhecermos nas nossas diferenças, respeitando a trajetória que foi possível para cada um, que cada um trilhou. Que possamos nos escutar com interesse e alegria. Somos testemunhas de uma época. A partilha de anos da juventude, para uns mais, para outros, menos, é um elo de ligação que transcende a passagem do tempo e todas as diferenças. Vamos então nos reconhecer em 1 de novembro. Vamos todos celebrar esse reencontro.
                                                                         Marcia Gomes.

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