domingo, 14 de setembro de 2014

14/09/14                              DIVISÃO,  DE  VISÃO.     

 Amanhã, setembro entre dois números quatorze, faz o mês oscilar na corda-bamba.Uma simetria quase primaveril equilibra a data que acabei de escrever. Hoje, sábado uma moldura plúmbea ainda invernal dá contorno à tarde. Prenúncios ainda vacilantes de uma primavera por vir me animam a pena. Mas teimo ainda em persistir no tom de inverno porque gosto da palavra "plúmbea". Tem peso, densidade e acho que a vi pela primeira vez num romance de Jorge Amado em que o mar encapelado ameaçava os corações das amantes à espera de seus pescadores. Acho que era "Mar Morto".

 Plúmbeo, o céu da tarde não me permite antever quão célere correrá o ponteiro do relógio para que chegue a primavera. Como o mês de setembro cortado pelo meio, meu coração se divide entre ditar um discurso de amante à espreita do que virá, ou um discurso de uma senhora desencantada que nada mais espera. O que prevalecerá?

Não sei, não sei. Só sei que ainda esta semana escrevi a umas colegas que jamais precisei de reposição hormonal e que sou uma incorrigível encantada com as surpresas do amor. Uma amiga querida me deu uma vez um livro de Ítalo Calvino intitulado "Os Amores Difíceis", dizendo ser esse título a minha cara. Por certo. Gosto das coisas dialetizadas, movidas por contradições. Mas ganhei este livro há anos atrás, quando ainda à meia noite não tinha as retinas fatigadas. Agora durmo cedo e acordo cedo. Troquei o hábito de um jantar farto por uma frugal refeição noturna que me preserva o estômago e o sono. Por certo. Gosto dos amores tormentosos, cheios de interdições, percalços. Mas isso era há anos atrás quando o corpo movia-se acompanhando a velocidade de um coração descompassado. Agora meus músculos estão um tanto flácidos e os ossos  cansados.

Será que deixo os prenúncios vacilantes da primavera me animarem a pena ou cedo à sensação de ser um Roland Barthes combalido e recolho os fragmentos do discurso para debaixo do tapete? Enquanto não sei responder, espio o céu da tarde. E o céu se abre. O plúmbeo vai concedendo lugar a um azul com nesgas de sol. Enquanto escrevo, assisto ao canal Arte 1 e me colhe uma cena de um seriado onde o amante rouba a amante de seu leito e a leva numa carruagem. Falam francês. E é aquela musicalidade de frases entrecortadas por arfares. O céu continua se abrindo. Devagar como uma mulher madura vai se abrindo com cautela ao cerco titubeante de um parceiro maduro. O aparelho de TV perde o sinal e a cena dos amantes se interrompe. O ruído de carros na Sabino Silva ilude a escuta, e me toma a sensação de um mar encapelado assustando os corações das amantes à espera de seus pescadores. A televisão volta ao ar e a amante diz ao parceiro que temia que ele morresse antes que se reencontrassem.

Então recordo uma discussão de quarta-feira passada na Letra Freudiana, onde a propósito das insígnias de poder que precisam os machos apresentar, alguém comentou que José Wilker morreu de um infarto de tanto que consumiu Viagra para comparecer viril a uma amante jovem. Penso que se é à custa de infartar, prefiro um parceiro não tão viril que consuma o seu Viagra com parcimônia para poder envelhecer comigo. Penso em Gabriel Garcia Marques e o seu lindo "O Amor nos Tempos do Cólera". E o céu continua a se abrir.

 Lembro também que na discussão da Letra Freudiana comentou-se que as insígnias da masculinidade não estão na posse de um órgão sempre ereto (um homem "neurótico normal" precisa sucumbir à realidade da detumescência para que possa ter uma vida amorosa saudável), mas no quanto um homem pode despertar admiração, respeito pela sua competência, sentimento de proteção e cuidado na sua parceira. Lembro que no início da minha adolescência eu ficava fascinada com um casal de idosos que ficava namorando, se olhando, se beijando e conversando muito, no largo do bairro da Graça. Quanta coisa pareciam os dois ter a conversar!! Eu achava lindo!

Agora o seriado acabou e há um ator sexagenário dando uma entrevista e dizendo que nos tempos atuais da internet e do Facebook, a experiência de intimidade está na criação artística. A amiga que me deu o Ítalo Calvino me telefona e meio sem pensar no que estou dizendo, lhe digo que escrevo sobre o amor na maturidade. Me assusto. Agora o ator entrevistado fala da sua ascendência portuguesa e no fundo da entrevista toca um fado. Me emociono. Acho que fado combina com o amor na maturidade.

 Penso que em começo de outubro Rafael, meu filho adotivo, vem com uma amiga ficar aqui em casa. Gosto muito de ter o status de mãe. Receber seus telefonemas para lhe aconselhar sobre seus planos como professor na universidade. Gosto de ser uma mãe respeitosa do seu desejo, só aconselho quando ele me demanda, e penso mesmo que o melhor que temos a oferecer a um filho é dar o exemplo de ser um sujeito desejante.

Agora volto a olhar o céu. É de um azul claro com nuvens totalmente brancas. Acabou-se o plúmbeo. Penso que hoje estou de visão do céu. Divisando. Divisão. O que faço agora que o céu é azul luminoso e tenho um corpo idoso? O que teria no meu corpo para oferecer a um parceiro? À essa altura da vida é difícil se confrontar com as estrias, as celulites, as adiposidades que despencam e ter que mostrar o corpo. Por que não mostrar? Por que não me ancorar no fato de que não preciso de reposição hormonal? Não é essa a evidência de que tenho ainda um corpo amorável? E pensar que vou ter coragem de postar este texto no Facebook amanhã...

 Vontade de conversar coisas dos meus interesses atuais. Vontade de partilhar, de ouvir sobre experiências. Alguém me contou com entusiasmo que visitou o Museu de Freud compreendendo a importância histórica daquele que trouxe à humanidade mais uma ferida narcísica. Penso que há até pouco tempo atrás eu escrevia num diário intitulado "Palavra Ferida". Vontade de conversar sobre as feridas narcísicas trazidas à humanidade. Acho que Copérnico, Darwin, Freud. Definitivamente gosto de quem compreende a importância histórica de Freud. Gosto de quem se faz respeitar.

Definitivamente o céu ficou azul. Me alegra saber que daqui pra frente haverá cada vez mais céus azuis. Eu, dividida, como o é um bom sujeito neurótico, me permito me alegrar com isso. Não há um bom papo que não cure tempos sombrios.

 Agora no Arte 1 estão passando um texto satírico de Hamlet.  Aprendi no meu curso de psicanálise e literatura que Shakespeare foi contemporâneo de Descartes. "Penso, logo existo." "Ser ou não ser, eis a questão." Hamlet, personagem emblemático da divisão subjetiva, não por acaso. Há então uma coincidência histórica entre o momento em que existem os pré-requisitos para o surgimento da ciência e em seguida da psicanálise, e os dilemas existenciais de Hamlet. Gosto de quem entende de razões históricas. Isso nos permite contextualizar, transcender. Isso nos permite deixar prevalecer a alegria do encantamento com a chegada da primavera. Divagar, pra não assustar, se fecha o ciclo do plúmbeo. É hora de amar de novo?
                                                                                    Marcia Gomes.

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