sábado, 27 de setembro de 2014

28/09/14                                  CAPRICHO  À  ITALIANA

O encontro das turmas de Psicologia que ingressaram na Ufba em 71 e 72 vai ganhando corpo de acontecimento memorável. Como pré-aquecimento do evento que ocorrerá em 1 de novembro, muita troca de E-mails no grupo que participará. Num primeiro momento foram mensagens um tanto mais formalizadas, tentando dar conta da organização do festejo. A busca por localizar o maior número de colegas e professores, votação para escolher onde vai ser o evento , o que será servido, como efetuar o pagamento da despesa, etc. Muito trabalho e um esforço muito dedicado para que as decisões sejam coletivas, tentando agradar a gostos de gregos e troianos.

Não me recordo bem como começou, talvez com a brincadeira de uma colega perguntando como nos reconheceríamos no momento da festa, já que somos no mínimo sessentões, muitos que não se encontram há 38 anos. O fato é que começou a circular na internet uma troca de figurinhas muito informal que vai dando conta do quão seletiva é a memória, e de que o que representou muito para um, sequer é recordado pelo outro. Assim, juntando fragmentos vai se montando um lindo caleidoscópio de recordações, que muda de configuração a cada vez que cada um lhe dá um giro.

Vários foram enviando fotos atuais, dizendo quem são, o que fizeram nesses 38 anos e o que andam fazendo. Alguns já usufruem do gostoso convívio com os netos, outros passaram por importantes mudanças profissionais, conta-se sobre perdas, ganhos, fazem-se confidências.  Na foto de cada um, as marcas deixadas pelo tempo vão sulcando uma certa doce sabedoria no olhar e no sorriso.  O cabelo, às vezes numa nova conformação, qual moldura vai contornando cada rosto  que parece dizer nas entrelinhas o muito do que se aprendeu nesses quase quarenta anos. Sem dúvida nos tornamos mais bonitos, de uma beleza generosa e compassiva.

Uma colega muito cooperativa e empenhada na realização do encontro, cria no Facebook uma página do grupo que se formou em 76. Lá estão fotos da nossa formatura, fotos nossas já sessentões, fotos da  Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) sediada na antiga Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus, fotos da FFCH sediada no antigo casarão próximo à Igrejinha de São Lázaro, foto com relato sobre vida e obra da querida e saudosa Professora Mercedes Cunha, incansável defensora dos direitos humanos, e entusiasta lutadora contra a ditadura. Como é usual no Facebook, cada um vai colocando comentários ao que está postado, deixando marcas da singularidade de suas impressões.

E haja singularidade!! Para uns, a memória de quando estávamos no Terreiro de Jesus é mais vívida. Parece que lá ficamos de 72 a 74. Para outros, as recordações tomam mais corpo depois que fizemos a mudança para São Lázaro. Uma colega também muito empenhada na realização do encontro, enviou por E-mail fotos de como está São Lázaro atualmente. Isso desencadeou uma bonita hora da saudade inclusive com lindos poemas da querida amiga Ana Cecília. Os poemas de Ana nos fizeram lembrar do ano em que em razão de uma greve, a polícia repressiva ocupou a universidade e não podíamos nos agrupar em mais de 3.

 A propósito disso, lembramos de uma assembléia na Escola de Engenharia em que, enfrentando a repressão, num gesto heróico e corajoso o então presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) discursou dizendo estar disposto a deixar derramar seu sangue na defesa dos companheiros. Tempos duros, tempos difíceis, tempos de uma beleza ímpar pela corajosa esperança que animava nossos corações de jovens entusiastas com um futuro promissor sem militares prendendo, torturando, assassinando pessoas por defenderem o ideal de uma sociedade mais justa e igualitária nos direitos.

Não é na memória de todos que os cruéis anos da ditadura ganham destaque de figura. Para alguns, foram mais fundo. E na troca de E-mails fala-se também de episódios do cotidiano, lembranças marcantes no convívio desse ou daquele grupo, imagens, impressões sobre o espaço que compartilhávamos, corredores, janelas, anfiteatros, percepções sobre o que ocorria nas ruas próximas de onde assistíamos aulas, características desse ou daquele professor, enfim uma colcha de retalhos de cenas, costurada com a candura própria ao olhar de jovens entre 18 e vinte e poucos anos. Tínhamos alguns colegas mais velhos que a maioria de nós, mas por certo acalentados pelo mesmo viço juvenil de nossos ideais. 

Muito me comoveu o relato sempre de escrita impecável de Ana Cecília (ela é poeta com livros publicados e ganhou o prêmio BRASKEM de poesia. Endereço do blog de Ana Cecília:  casulotemporario.blogspot.com.br) contando que nossa aproximação se deu por sermos as únicas na turma a usar calças de marca TOPEKA. Não tínhamos dinheiro para comprar calças de marca melhor. Eu, naquela época, morava no Conjunto Residencial Santa Madalena, uns apartamentos desconfortáveis e minúsculos na Vasco da Gama.  Ana era filha de uma família numerosa (9 filhos) recém chegada do Crato, no Ceará. Pobres e apaixonadas por poesia, nossa amizade se consolidou com  trocas a respeito de Drummond.

 Tem se falado até em escrever um livro com tantas histórias que estão sendo contadas. Gomersinda, uma colega, escreveu uma crônica de verdadeiro valor literário sobre a sua experiência na FFCH do Terreiro de Jesus. Linda crônica!! E que memória sensível a de Gomersinda!! Bolota (Eulina) também escreve bonito. E que pitorescos e bem humorados os relatos da colega Judith! Talvez nem valha a pena ficar citando nomes, tão belas que são todas as contribuições. Eu mesma já escrevi, não sei se belas, duas crônicas domingueiras sobre o assunto. Uma, "Reencontro", dizendo do significado que o encontro tem pra mim. Outra, "O Cisne Vivo", uma homenagem ao colega Caria que foi meu primeiro amor e que infelizmente não está mais entre nós.

 Uma correspondência muito enternecedora se estabeleceu entre as pessoas do grupo que vêm mostrando que quando  vivemos de modo tocante  e intenso, a experiência pode se tornar uma peça literária. De modo que estamos nos revelando todos, escritores potenciais. Trinta e oito anos depois, quem suspeitaria que as recordações dos tempos da Faculdade estariam tão vivas e frescas nas nossas memórias? Sem dúvida estamos atestando que os anos da juventude tão cheios de inquietações e dúvidas existenciais são de beleza rara e importantes na nossa constituição como sujeitos.

 Parece que para mim, embora eu não tivesse uma posição de destaque nem fizesse parte dos quadros do movimento estudantil (ME), as lembranças são muito perpassadas pelo histórico do processo de luta contra a ditadura e pelo como isso imprimia marcas à nossa vida de estudantes.

De quando o curso de Psicologia se alojava na antiga Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus, algumas recordações são marcantes para mim. Aquele prédio, na sua beleza arquitetônica, me impressionava muito. Também porque ali estudou meu pai que se formou em medicina. No jardim onde havia dois patinhos, eu e Ana Cecília jogávamos conversa fora sobre a antipsiquiatria de Laing sob o olhar um tanto cético e irônico de Ana Helena e Virgílio que sempre foram mais objetivos e não curtiam muito essas viagens de malucos.

 Lembro muito da minha experiência com esse grupo de amigos como monitores das Professoras Eglê e Anamélia, na época, duas entusiastas do pensamento behaviorista. Recordo com satisfação e alegria como nos sentíamos crescer intelectualmente com tudo aquilo que aprendíamos com elas. Fizemos um trabalho de modificação de comportamento numa escola pública do Pelourinho cujas crianças eram na sua maioria filhos de prostitutas. Entrar em contato com aquela realidade nos enchia de sonhos de nos tornarmos psicólogos atuando em trabalhos socialmente relevantes.

 Lembro também, logo no primeiro ano, das aulas com a Professora Alda Mota, com sua sociologia engajada que muito me encantava e a quem sou muito grata. A convite de Alda Mota participei de uma pesquisa sobre o imaginário das empregadas domésticas em Salvador. Meu trabalho como pesquisadora era representar o papel de empregada num curso de arte culinária na Paróquia da Vitória. Eu me vestia, falava, e gesticulava como empregada doméstica e ia com as minhas amigas olhar as lojas da Baixa de Sapateiros, antes de voltar para a casa de "minha patroa". Assim igualada a minhas colegas de curso, eu podia conversar com elas sobre suas crenças, valores, ideologias, estilos de ver e estar no mundo. Foi uma experiência muito rica.

Do Terreiro de Jesus lembro muito do dono da cantina da faculdade, de apelido "Bahia", por ser um fanático torcedor do time. A cantina de Bahia ficava na passagem das salas de aula para a sala do Diretório Acadêmico. Como eu e meu grupo de amigos vivíamos enfiados no diretório, toda hora era hora de um dedo de prosa com Bahia, uma figura muito particular, que cheio de segredos por medo da repressão, apoiava as causas estudantis.

 Lembro de algumas assembléias ocorridas no prédio da antiga Faculdade de Medicina e de quão gratificante era colaborar na redação do jornalzinho intitulado "Reflexo". Se não me engano o nosso colega Acácio que saiu para a clandestinidade participava daquelas sessões de redação onde conversávamos muito e trocávamos confidências. Confidências sempre perpassadas por alguma cautela quanto a o que revelar, evitando transgredir as normas de segurança. A poesia "engajada" sempre se fazia presente e eu conversava muito com as colegas poetas.

De resto, a memória focaliza as nossas frequentes idas à sede do Diretório Acadêmico, inicialmente dirigido por Sônia Sampaio (Sônia Pata) e em seguida por nosso colega de turma Virgílio. Para frequentarmos o Dapsi não nos acanhávamos de "filar" as aulas que nos pareciam irrelevantes. O mais relevante para nós era a transformação social. Por experiências políticas muito precoces e não muito bem sucedidas na adolescência, de meu grupo de amigos na militância estudantil talvez fosse eu a que se mantivesse mais "a reboque". Isso quer dizer que eu tinha posições de "massa avançada" mas sem me sentir tentada a assumir cargos de direção.

 Mas ainda assim participava de reuniões de leitura e discussão de textos sobre o materialismo dialético e a revolução socialista. Na sede do Diretório Acadêmico, além de participarmos de reuniões, ouvíamos música popular brasileira, líamos poesia, promovíamos atividades culturais e conversávamos com colegas com mais experiência política sobre nossos dilemas existenciais e os riscos dos desvios pequeno burgueses.

Da passagem do prédio do Terreiro de Jesus para o prédio em São Lázaro em 1974 a memória não é tão nítida. Perdi meu pai com apenas 45 anos em janeiro daquele ano e passava por um doloroso processo de luto. Mas recordo que o Diretório ficava na mesma área da cantina de "Seu" Farias e Dona Dalva, pessoas adoráveis. Lá costumávamos almoçar com grana muito curta. Recordo também da importância que teve a Comissão de Finanças no trabalho do DCE , do Jornal "Viração" e da luta pela compra de um mimeógrafo, se não me engano.

 Lembro que a repressão pegou pesado com alguns representantes estudantis que eram meus amigos quando eu os ajudei a se resguardarem na casa de colegas, uma das quais morava no Morro Ipiranga vizinha à casa do reitor da Ufba. Fui até o Morro Ipiranga levar mantimentos à colega que lá recebia guarida e por engano toquei a campainha na casa do reitor. Naquele tempo o reitor tinha uma função totalmente diferente do que tem hoje, obviamente não era eleito diretamente e era cúmplice da repressão. Devo ter dado uma desculpa muito bem dada quando me dei conta que tocara na casa errada. O que sei é que entreguei os mantimentos à minha amiga sem que nada de prejudicial lhe acontecesse.

Quando vejo colegas do grupo na conversa coletiva por E-mail, recordando vivamente das características desse ou daquele professor, de travessuras que aprontavam, das ternuras inocentes que trocavam nos tempos da faculdade, dou-me conta que eu e meu grupo de amigos vivíamos, uma boa parte do tempo, em outro diapasão. Éramos muito estudiosos mas estávamos mais tomados pelo ideal de fazer a revolução, não nos sobrando muito tempo e energia para além de estudar desfrutar das pequenas alegrias que animavam os colegas e de nos relacionarmos mais ingenuamente com eles.

 Ainda assim, lembro de uma professora de estatística chamada Ivone a quem sou muito grata. Ivone sabia que eu sofria de discalculia. De modo que nas provas eu resolvia com o raciocínio correto todos os quesitos, mas na hora dos cálculos eu precisava "pescar" de uma amiga muito boa em matemática.  Ivone, generosa, fazia de conta que não estava vendo eu "pescar". Só assim eu podia ser aprovada com boas notas.

Não tenho como esquecer a deslumbrante vista do mar de São Lázaro. De lá, víamos o por do sol. Gostava de assistir com interesse aos rituais festivos às segundas-feiras em celebração a Omolu que aconteciam na Igrejinha, bem próxima da faculdade. Lembro também com muita ternura das nossas sessões de estudo noturnas quando tínhamos que entregar trabalhos em cima da hora, particularmente a professores de vertente mais psicanalítca aos quais não dávamos nenhum cartaz e de cujas aulas às vezes escapávamos para fazer trabalho político como passar nas salas de aula para dar avisos, convocar para reuniões, etc.

Às vezes penso que não só o trabalho político assumiu o lugar de figura na minha vida dos tempos de faculdade. Na verdade por dois anos cursei paralelamente Psicologia na Ufba e Letras na Católica. Nesse período eu era quase noiva de um rapaz lindo, estudante de arquitetura. Mas Dona Marcia de vez em quando apronta das suas. Quase noiva e fui me apaixonar perdidamente por um professor da Católica, muito mais velho que eu. Ele, provavelmente encantado com a boa aluna, eu provavelmente dando vasão a meu Édipo mal resolvido.

 O fato é que nos envolvemos e enquanto meus colegas de Psicologia usufruíam inocentes do seu saudável convívio com os amigos e professores, eu passava grande parte do meu tempo pensando no professor da Católica e amargando uma culpa intolerável em relação a meu quase noivo.Eu visitava o professor na sua casa e ouvíamos uma música chamada "Capricho Italiano".

 Ele era muito politizado, progressista e culto. Rolava muito papo filosófico. Conversávamos muito sobre literatura e ele caia de encantos pelo fato de eu alfabetizar duas crianças filhos da baiana do acarajé, enquanto aguardava o início da aula no período noturno da Católica, cujo prédio ficava no Largo da Palma.Apesar do encantamento mútuo, éramos corretos. Eu, sendo quase noiva, entre nós nada acontecia a não ser uma carícia "inocente" na mão,  olhares e conversas.


 No dia que finalmente nos declaramos um para o outro, resolvemos que o mais honesto era eu romper com meu quase noivo. Saindo da casa do professor, assim o fiz. No dia seguinte, passando dentro de um táxi, avisto meu ex- quase noivo na Ladeira da Barra, chorando aos prantos no ombro do meu irmão. Condoída, desço do táxi e vou consolá-lo.

 A partir daí saio à francesa (ou à italiana?) da vida do professor, nunca mais aparecendo na Católica.  Passei o resto do curso de Psicologia morta de saudades pensando nele que, obviamente, não me procurou mais. Perdi meu curso de Letras, perdi talvez um grande amor e não me casei com meu lindo quase noivo. Fui me apaixonar em novas plagas.

 Mais de 40 anos depois, quando às vezes recordo desta experiência, só me resta sorrir com uma certa complacência da tamanha inabilidade de uma jovem em torno de 19 anos, para lidar com as tortuosas e complexas vias do amor . Confundir compaixão e amor, fugir do próprio desejo a ponto de sumir da vida do professor sem sequer dar uma satisfação, convenhamos!! Haja inabilidade!!

 Será que na idade adulta conseguimos estar melhor aparelhados para manejar essas questões? Ou apaixonados, em qualquer idade, ficamos acometidos de uma certa crise de regressão à adolescência? Pelo que a gente escuta no consultório, parece que em qualquer idade somos seres de linguagem sujeitos às contingências do amor com seus imprevisíveis encontros e desencontros. Capricho à italiana? De que nacionalidade são os caprichos do coração? Fico às vezes desconfiada que o coração é apátrida, "terra em que ninguém passeia", como diz o sábio dito popular. Só nos resta viver nesta errância. E usufruir, porque ninguém é de ferro.
                                                                                                 Marcia Gomes.

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