sábado, 25 de outubro de 2014

26/10/14                                        PIQUENIQUE.

Cara leitora, caro leitor,

Hoje estou começando uma série de crônicas dominicais intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Com isso, pretendo fazer relatos sobre eventos pitorescos e divertidos que tive a oportunidade de experienciar graças à personalidade mandona, corajosa, criativa, empreendedora, generosa e bem humorada de Dona Myriam Urpia, minha mãe. Mulher pioneira à frente no seu tempo na luta cotidiana pela afirmação feminina com independência e dignidade, Dona Myriam foi para nós um exemplo de enfrentamento das adversidades da vida com cabeça erguida. Nunca se deixou abater. Por isso, tenho hoje gratas recordações de episódios vividos na minha infância, adolescência e mesmo vida adulta, onde a presença de Dona Myriam foi determinante para que sejam relembrados hoje não só com bom humor, mas com muita, muita ternura e muito orgulho da mãe que possuo.

Escrevo principalmente para ela. Como não tem mais condições de manipular o computador, espero que meu irmão Lula ou seu neto Cauã Fraga, imprimam o texto para minha mãe ler. Temos conversado ao telefone sobre alguns desses episódios e isso tem feito com que ela dê gostosas risadas. Espero que você, leitor, nos acompanhe e se divirta com nossas aventuras e peripécias. Com isso, pretendo deixar um testemunho alegre da mulher extraordinária que é minha mãe.

Não se esqueçam que hoje é dia de votar. Votar, pra não voltar. Vote de acordo com sua consciência. Eu, também para homenagear minha mãe, vou votar em Dilma. Ainda ontem, muito lúcida, ela me disse que Dilma é muito melhor do que o neto de Tancredo Neves, que usa indevidamente o nome do avô por interesses eleitoreiros. Dona Myriam é assim. Faz questão de expressar sua opinião. Além de homenageá-la, vou votar exercendo meu direito de lutar para que a direita reacionária não volte a ocupar o poder. Vou votar para que não se jogue por terra o sonho de milhões de brasileiros por uma sociedade com menos  desigualdade social.

                                                                       PIQUENIQUE

Os tempos em que vivíamos só nós cinco, minha mãe, eu e meus três irmãos, poderiam ter sido de uma dureza dramática não fosse o jogo de cintura de Dona Myriam. Nossos pais estavam separados e nossa mãe nunca havia trabalhado antes. Era formada em música sem qualquer vocação para tal, qualificação que a deixava em dificuldade para arranjar um emprego que lhe desse condições para nos sustentar. Então primeiro trabalhou vendendo livros de porta em porta, em seguida foi secretária de Doutor Jorge Valente no Hospital das Clínicas, depois foi auxiliar de cartório. Finalmente fez concurso e passou brilhantemente para o cargo de escrivã no Fórum Ruy Barbosa. Só aí pudemos respirar quanto aos apertos  financeiros. Até fazer o concurso, o salário era uma coisica de nada. E haja privação!!

Por todo lugar que passava ganhando o pão de cada dia, minha mãe ficava reconhecida por sua competência e sociabilidade. Era querida, fazia amigos e também inimigos quando alguém tentava assediá-la, suborná-la ou desrespeitá-la nos seus direitos. Mexer com sua prole, nem pensar!! Quando ela era vendedora de livros, mesmo que mal tivéssemos o que comer, ela me presenteou com as obras completas de Fernando Pessoa, Drummond e Cecília Meireles.Mesmo estranhando um pouco, sempre estimulou meu gosto pela leitura e pela literatura e o dono da editora lhe facilitava a compra a prazo em infinitas prestações. Por isso tive o prazer de me deliciar com Drummond quando contava apenas 12 anos. Trabalhando no Juizado de Menores tornou-se muito respeitada e querida pelo juiz Doutor Armando Augusto Góes de Araújo. No tempo da cruel ditadura, graças a Doutor Armando eu, como militante de esquerda, fui salva de cair nas garras da repressão. Mas já que hoje é domingo, vamos à história do piquenique.

Morávamos em uma espécie improvisada de apartamento de sub-solo na casa de nossos avós maternos no bairro da Graça. Nossa mãe vendia livros de porta em porta para uma editora de nome "Aguilar", se não me engano. Eram livros de literatura e artes em geral.  Sandra, minha irmã mais velha, ajudava nas vendas. Ambas no fim do dia queixavam-se do dano ao solado dos sapatos que aquelas longas caminhadas com os livros pesados na mão causavam. A grana para o ônibus era curta. Mas quando chegavam em casa com calos nos pés, elas nos contavam entusiasmadas da aventura que era conversar com todos aqueles escritores e artistas plásticos, como Mário Cravo e Jenner Augusto.

Para o que tínhamos condições de comprar para comer, feijoada era um manjar dos Deuses reservado para ocasiões muito especiais. Se quiséssemos nos divertir, tínhamos que ser criativos. Nem pensar em restaurantes, cinemas, coisas assim. Nos tempos da dureza nunca fomos a um teatro. Mas fazíamos teatro no colégio público. Nem mesmo parques de diversões ou circos nos eram acessíveis. Mas nos divertíamos e como!!!

 Assim foi que juntada uma graninha boa, Dona Myriam nos comunicou que faríamos um piquenique com direito a feijoada. Nesse dia em que fomos comunicados do programa, de tanta alegria eu quase não dormi. Chegado o sábado antes do dia da farra, nossa mãe depois de chegar do trabalho passou boa parte da noite preparando a iguaria. Nunca aceitou que a ajudássemos na cozinha. Além de mandona, era centralizadora e também gostava de nos poupar. Além disso, tínhamos que dormir cedo para madrugar na direção do ponto de ônibus de Itapuã. O piquenique seria em Itapuã e, obviamente, de ônibus. Que farra!!!

No domingo, muito cedo descemos a ladeira com toda a tranqueira em direção ao ponto de ônibus. Tinha toalha de mesa para estender no gramado, o panelão com a feijoada, arroz, farofa, refrigerante, copos, talheres e pratos descartáveis à vontade. Nossa mãe, apesar da pobreza, gostava das coisas fartas e abundantes. Vestidos com nossas roupas de banho, distribuímos a tranqueira entre nós cinco, o panelão ainda quente, e sabe Deus como, chegamos ao ponto de ônibus.

 Na hora que o ônibus encostou, o primeiro arranca-rabo: o cobrador não deixou entrarmos com a tranqueira pela porta dos fundos. E Dona Myriam se manifestou. Discutiu, brigou, argumentou que havia outros passageiros com bagagens no fundo do ônibus, e depois de muito vai não vai que me deixava, tímida, meio envergonhada, fomos autorizados a seguir viagem com panelão e tudo mais.

Dentro do ônibus era uma festa só. O povão, acostumado a uma pobreza mais antiga que a nossa, saía em direção à praia com suas tranqueiras e fazendo batucada. Não sei como nos acomodamos dentro do ônibus, mas nos acomodamos e seguimos viagem felizes da vida. Eu, que sempre fui mais reservada, deixava pra lá o batuque e me encantava com a vista da praia na linda manhã que fazia. Observava os reflexos da luz do sol na água do mar e mesmo com batucada, escutava as diferentes espécies de sons do arremesso das ondas nos rochedos. Curiosa, me deleitava com o balé ao vento das folhas dos coqueiros que compunham a paisagem por onde o ônibus passava.

 E o ônibus seguia. Como me acomodei um pouco mais pra frente, a certa altura pude ver que o  motorista precisava fazer repetidos esforços para engatar a marcha e às vezes o ônibus não respondia à suas tentativas. Quando constatei que isso acontecia várias vezes, fui até nossa mãe que estava mais ao fundo e notifiquei o fato. Nossa mãe, diligente, logo passou à frente e perguntou ao motorista se estava havendo algum problema. Ele, com um senso de humor meio fora de hora e com cara de quem não quer nada, respondeu que aquilo era só chilique de fim de semana do ônibus e que estava tudo bem. Estávamos na altura do Jardim de Alah quando o ônibus empacou e não saiu mais do lugar.

Foi um alvoroço. Os batuqueiros fizeram os tambores reverberarem, crianças choravam, pessoas passavam por cima da panela de feijoada para ir à frente ver o que estava acontecendo, um Deus nos acuda!! Começou um empurra-empurra que resultou em briga. Dona Myriam foi até os beligerantes e lhes passou um sabão. Logo se acalmaram. E o ônibus parado. Então nossa mãe foi até o motorista e com voz firme de quem receava o seu piquenique com seus filhos ir por água abaixo, lhe tomou satisfação. Ele, diante de mulher tão valente, tentou sair de mansinho dizendo que aquilo já havia acontecido antes e que dali a pouco o ônibus ia se movimentar. E o ônibus parado. Alguns passageiros impacientes e pouco persistentes começaram a descer e ir embora. Nós ficamos e nossa mãe voltou a enfrentar motorista e cobrador, dizendo que nosso destino era Itapuã e que a Itapuã teríamos que chegar.

Àquela altura a nossa feijoada estava pra lá de esfriada e nossa mãe vendo que o ônibus estava definitivamente quebrado e não ia sair do lugar, exigiu que fosse providenciado um ônibus substituto que nos levasse ao destino. Foram providenciar quando já passava do meio dia. Mais passageiros começaram a se evadir do ônibus e nossa mãe, mais que depressa, os convidava a voltar persuadindo-os a permanecer lutando pelo direito de um transporte substituto. Algumas pessoas cederam ao apelo reivindicatório de Dona Myriam e permaneceram aguardando o novo ônibus chegar. Saímos de dentro do ônibus porque fazia muito calor, mas não arredamos pé. Colocamos as nossas tranqueiras na calçada e tocamos a esperar. Àquela altura permaneciam conosco na luta, por volta de uns 10 passageiros.

Mais de uma hora da tarde e finalmente aparece o tal ônibus substituto. E aí nossa mãe surpreendeu a todos. Disse aos funcionários da empresa que já que teve seu direito assegurado mas em hora tardia, mudou de ideia e resolveu fazer seu piquenique ali mesmo, no Jardim de Alah. E que fossem ônibus velho e ônibus novo para o quinto dos infernos. Generosa e solidária,  convidou os passageiros persistentes para comerem uma feijoada conosco. Eles, ao invés de seguirem viagem no ônibus novo, aceitaram nosso convite felizes da vida. Dona Myriam, embora vinda de família tradicional em Salvador, desde criança passou por dificuldades e aprendeu a dividir. Também por motivo de separação de seus pais, teve que partilhar um só prato de caruru com seus seis irmãos.

 Comida havia suficiente. Talvez não pudéssemos nos fartar com pratos muito cheios, mas mais importante era partilhar com nossos companheiros de empreitada. Os objetos descartáveis também davam para todo mundo. Dona Myriam é muito prevenida. Sempre fizemos gozação  porque em ocasião de um passeio ou  viagem,  carrega um monte de traste. Resultado: na hora que necessitamos de algo e temos que recorrer a ela, somos socorridos mas recebemos em troca, uma outra gozação. Talvez só o refrigerante não tenha dado pra todo mundo.

 Dona Myriam, com a ajuda de seus convidados estendeu a toalha na grama embaixo dos coqueiros e fez com seus filhos e companheiros de luta um senhor piquenique. Mais tarde todos tomaram um delicioso banho de mar, quando já estava toda a turma entrosada. Entrosada, só não estava eu, sempre um pouco arredia com pessoas desconhecidas. Sandra batia o maior papo com o pessoal, enquanto eu me refugiava distraindo-me com a beleza do Jardim de Alah. Estávamos, cada um a seu modo, muito contentes.

Assim é Dona Myriam. Multifacetada e de uma coerência com seus princípios que eu fiz questão de "herdar". Não é qualquer conversa mole que me demove daquilo que acredito. Muito menos me atemoriza passar dificuldades em nome das causas que defendo. Facilidades materiais não me seduzem. Devo isso a Dona Myriam. Branca, de olhos azuis, de família tradicional, tendo estudado em colégio de freiras, escolheu casar com um médico mulato e pobre. Quando não se sentiu mais amada, deixou o casamento para trás arcando com todas as consequências. Às vezes era braba. Às vezes também sou. Às vezes acho mais honesto a brabeza que a dissimulação.

Dona Myriam também é chorona. Não sei qual de nós duas é mais chegada à uma comoção. Não é sem dificuldade que lido com pessoas secas, contidas. Também lido com dificuldade com os que vivem a todo o custo fazendo o discurso do alegre. Aprendi com minha mãe que há horas que cabe ficar triste e chorar muito. Aprendi com ela que ficar triste não é necessariamente estar deprimido.

Desde que a conheço ia à missa aos domingos. Mas depois que mudou-se para Aracaju devotou-se fervorosamente à igreja, dedicando-se a causas sociais. Quando, há anos atrás, tomou o Hábito de Carmelita, tornou-se mais dócil, compassiva, tolerante. Talvez, por na sua compreensão, estar na mão de Deus, saber que não tem controle de tudo, tornou-se menos valente. Eu também por outras vias, à medida que fui envelhecendo, fui me dando conta, cada vez mais, que não temos controle de tudo. Não sabemos o que vai nos acontecer daqui a cinco minutos.

 Mas eu sei que daqui a cinco minutos estarei amando ainda mais essa mãe. Estarei grata à vida pelo que tenho de tão parecido com ela. Estarei grata à vida por cada cinco minutos que passo com ela ao telefone. Por que só ao telefone? Por que nesse exato momento, não posso deixar o computador e abraçá-la e dizer o quanto a amo? Só perguntando ao bom Deus dela. Só perguntando às ingratas contingências da vida e às escolhas que cada um faz e vai saber só depois. Agora tenho que pedir licença aos leitores. Está na inadiável hora de falar com Dona Myriam.
                                                                                                Marcia Gomes.

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