sábado, 15 de novembro de 2014

16/11/14        Queridas amigas e queridos amigos,

Hoje não vai ter "Blá, blá, blá domingueiro...". Hoje é o último domingo antes da delicada cirurgia a que minha mãe irá se submeter, no próximo dia 21 de novembro. Ela encontra-se em casa de Sandra, minha irmã mais velha em Aracaju onde ocorrerá a cirurgia. Eu estou indo para lá no dia 18, com uma passagem só de ida. Estou indo torcendo muito pelo restabelecimento da saúde de minha mãe, disponível para lá permanecer pelo tempo que for necessário, pelo tempo em que eu possa ser útil. Não vejo a hora de abraçá-la. Não vejo a hora de dizer pessoalmente o quanto a amo.

Escrevo a vocês em separado. Somente a vocês, meus amigos. Creio que a grande maioria de vocês sabe que sou chegada a de vez em quando escrever E-mails onde me exponho muito, dizendo o que sinto e penso. Na alegria e na dor. Também na raiva. Em momentos em que me torno mais intensa por algo que me comove muito, me alegra, me entristece, me causa revolta, indignação ou tudo isso misturado.

Desde 2012 tenho recorrido ao "Blá, blá, blá domingueiro...." para me expressar. Através desse escrito dou mais ou menos conta do quero dizer, contar, exprimir. Mas hoje é diferente. Envio o que costumo chamar de minha crônica domingueira a mais de 150 pessoas, entre amigos, colegas, conhecidos, pessoas que nem conheço e que dizem gostar de receber o meu texto, enfim, a um público variado. Mas hoje é diferente.

 Vocês sabem que há coisa de uns três domingos para cá, transformei a crônica de domingo num escrito para minha mãe ler, prioritariamente. Passei a escrever para diverti-la, entretê-la, levantar seu astral, como uma forma de contribuir para que ela entre na cirurgia à qual vai se submeter, em boas condições emocionais. Também para que vocês a conhecessem e eu melhor me apropriasse da mãe especial que tenho.  Desde que fiquei sabendo do seu diagnóstico e passei a escrever sobre ela, antes mesmo que para ela, precisei restringir o envio da crônica a um número menor de pessoas. Afinal, quem não me conhece não está muito interessado em saber que sinto dor e apreensão em relação à saúde de minha mãe. Nem eu queria e nem cabia me expor tanto assim.

Mas hoje é ainda mais íntimo e restrito. Somente para aqueles que têm compartilhado comigo essa vivência que vem desde o dia 30 de setembro, quando soube meio à queima-roupa que minha mãe tem um câncer e para tentar extirpá-lo passará por uma cirurgia muito delicada. Escrevo agora somente para as pessoas que me querem bem e têm me feito companhia nesses quase dois meses em que oscilo da mais viva esperança à mais tenebrosa apreensão. Acho que escrevo para mim, tomando-os como destinatários. E escrevo principalmente para agradecer.

Ficar sabendo que minha mãe tem um câncer e que posso perdê-la tem sido uma experiência de muita dor, mas de uma riqueza extraordinária. Confesso a vocês que eu não sabia exatamente o quanto a amo, não tinha a dimensão do tanto que significa para mim, do quanto com seu caráter irrepreensível contribuiu para eu ser a pessoa que sou. Quando depois de feita a biópsia, ela muito desamparada se queixava de dor no braço eu, para poupá-la desse sofrimento, passei a desejar que essa dor fosse em mim. Passei a viver meio em função das horas em que falaria com ela ao telefone. Ficava bem se a sentia bem disposta, animada, e chorava muito quando percebia nela qualquer sinal de abatimento ou desânimo. Aprendi a dissimular minha comoção para poder conversar com ela sem dar pistas da minha enorme apreensão. Passei a ler a Bíblia para abordar com ela assuntos que são do seu interesse.

 Muitos de vocês sabem que por longos anos mantive uma relação muito ambivalente com minha mãe. Para mim era difícil tolerar que ela não pudesse separar o que foi meu pai como marido dela, do que ele foi efetivamente como pessoa, pai e profissional. Também era muito difícil para mim aceitar a sua indisfarçável, acintosa preferência por meu irmão, muitas vezes em prejuízo meu e das minhas duas irmãs, suas filhas mulheres.

 Então por certas vezes eu e minha mãe nos atritamos. Ela era muito autoritária, controladora, voluntariosa e eu, bem sei, por outras razões, não sou uma pessoa nem um pouco fácil. Éramos duas pessoas difíceis que não sabíamos muito bem o que fazer com o grande amor que sempre houve entre nós, mesmo que perpassado por rusgas e alguns mal entendidos. Foram necessários muitos anos de análise para eu imprimir à minha relação com ela uma tonalidade onde predominam o amor e a aceitação de que ela é uma mulher extraordinária, independente dos defeitos que tenha. Escrevendo a crônica de domingo para ela, pude mais uma vez fazer contato com a mulher extremamente generosa e bem humorada que Dona Myriam sabe ser. A mulher que não se abate com as adversidades, com quem aprendi muitíssimo.

 Muitos de vocês são meus colegas e sabem quão mais doloroso pode ser esse momento do sofrimento de agora, quando a relação por muito tempo não pode ser um mar de rosas. É uma corrida contra o tempo. É um desejo quase desesperado de ter podido ter feito tudo diferente. E há muito sofrimento. Bate culpa, bate revolta contra a vida que pode estar nos roubando o tempo que nos resta para resgatar, bate um anseio de onipotência querendo fazer o possível e o impossível para mitigar o sofrimento dela. Há muita dor. E foi em meio a essa dor, que pude viver a riqueza extraordinária dessa experiência. Foi em meio a essa dor que pude receber das pessoas que me querem bem a grande dádiva da generosidade.

Se eu fosse citar todos os nomes, encheria mil páginas. Pessoas que só me conhecem através do "Blá, blá, blá domingueiro..." escreveram coisas muito tocantes, bonitas, emocionadas a respeito da personalidade de minha mãe e entraram na torcida pelo restabelecimento de sua saúde. Nesses quase dois meses de sofrimento, fiz novos amigos valiosos, de uma sensibilidade ímpar.

 Acho que só minha analista e as minhas duas amigas mais íntimas sabem, mas agora vou contar pra vocês. Nesses dias não muito fáceis para mim, através de um golpe na internet roubaram todo o pouco dinheiro que havia na minha conta bancária, deixando somente R$14,00. Vou logo adiantando que conto isso para poder agradecer a generosidade de algumas pessoas muito, muito íntimas. Mas por favor, peço que ninguém faça ofertas materiais, o que muito me magoaria, ofenderia mesmo. Mesmo porque o banco provavelmente fará o ressarcimento definitivo da quantia perdida. Estou acostumada a viver com pouco dinheiro. Mas a disponibilidade amorosa das minhas duas amigas mais íntimas nesses dias dos só quatorze reais, foi uma lição de vida de um valor inestimável. Só quem toma chuva e se molha muito, sabe o que significa alguém lhe oferecer um guarda-chuva em plena tempestade.

Pois é. As duas Anas, cada uma a seu modo, têm sido a grande lição do guarda-chuva. Para quem vive geograficamente longe dos familiares mais próximos e ao lado disso, experimenta uma dinâmica familiar onde é normal e aceitável que se privilegie pegar a mulher num curso de futilidades do que buscar o necessariamente urgente resultado de exame médico de um familiar gravemente enfermo, ter amigas como as duas Anas é uma questão de sobrevivência. Para quem experimenta telefonar a alguém para saber do estado de saúde de um familiar gravemente enfermo, de quem se está compulsoriamente longe geograficamente, e obtém como resposta "você está atrapalhando a hora do meu banho", ter amigas como as duas Anas é uma espécie de pára-raio que protege contra a possibilidade de se enlouquecer da dor do desamparo.

Ana Helena, amiga com quem rusgo às vezes por uma coisa fútil como pontualidade ou por um tom de voz que não me soa dos mais cordatos, nesses quase dois meses em que vivo a experiência da enfermidade de minha mãe, me levou para sair com ela incontáveis vezes, com uma escuta muito amorosa, muito continente, respeitando às vezes meu desejo de silenciar. Como a gente é pequeno, como a gente nessa vida globalizada de corre-corre onde as pessoas se tornam menos importantes do que as ocupações, se amesquinha! Brigar com Ana Helena por motivos tão pueris, diante da sua enorme disponibilidade para mim nas horas difíceis, me parece cruel. Ao contrário daqueles para quem cuidar dos cachorros é mais importante do que dizer uma palavra acolhedora a um familiar aflito, essa minha amiga já passou maus bocados na vida e sempre contei com ela em momentos cruciais. Ana Helena, querida, o mínimo que espero é poder retribuir.

Tenho recebido telefonemas de solidariedade de amigos que eu não via há muito tempo. Há quem se disponibilize a estudar Lacan comigo mesmo sabendo que não estou bem, nem preparei a lição. Alguém no saguão do prédio onde trabalho me aborda carinhosamente para dizer uma palavra amiga. Os colegas de turma de Psicologia cujo encontro aconteceu em 1 de novembro, além de compreenderem meu não comparecimento, tiveram o carinho de registrar minha contribuição para a realização do encontro e têm sido de uma amorosidade que cala fundo no coração. Alguns deles me telefonaram, muitos deles escrevem sobre o que conto sobre minha mãe na crônica de domingo. Todos estão na torcida pelo sucesso da cirurgia.

Tive a experiência gratificante de conhecer Doutor Justino. Doutor Justino é um magistrado muito religioso com quem minha mãe trabalhou por uns tempos quando era escrivã da Quinta Vara de Família no Fórum Ruy Barbosa. Naquele tempo, em que minha mãe embora católica não tinha ainda uma fé fervorosa, Doutor Justino deu a ela de presente um azulejo com um escrito de Santa Teresa D'ávila. Ela guardou. No momento em que adoece e sabe que vai fazer uma cirurgia, embora não sabendo seu diagnóstico, minha mãe consulta muitas vezes o escrito e me confessa que gostaria que eu encontrasse Doutor Justino aqui em Salvador, para que soubesse que ela guarda o escrito e que tomou o Hábito de Carmelita. Vou à igreja à procura dele mas não o encontro. Graças ao carinho dedicado de minha amiga irmã Ana Cecília, consigo localizar finalmente o magistrado. Doutor Justino é dessas grandes almas generosas. Uma pessoa muito especial. Tem feito telefonemas muito alentadores a minha mãe e a mim, e vai fazer uma corrente de orações no dia da cirurgia.

Como eu poderei esquecer que meu amigo José Carlos Ribeiro, que não é nem um pouco de religiões, foi à missa no dia em que eu procurava Doutor Justino na igreja especialmente para me dar um abraço de solidariedade? Como eu poderei esquecer o quão presente tem sido minha amiga Letícia? Como eu poderei esquecer que neste momento reavivei laços com primas distantes e que num bonito gesto, duas delas vão visitar sua tia Myriam em Aracaju na véspera da cirurgia? Como eu poderei esquecer os telefonemas solidários da prima Elyana Barbosa, sobrinha super querida por minha mãe? Como eu poderei esquecer que uma pessoa a quem nos últimos tempos eu cumprimentava apenas socialmente, me escreveu um E-mail muito solidário partilhando sentimentos de quem passa pela experiência de ter uma mãe idosa?

Jamais poderei esquecer. Sobre a continência respeitosa solidária e generosa da minha analista e do meu médico, por uma questão de discrição aqui não posso narrar. Mas quero deixar registrado.

Nunca me esquecerei que em meio à correria que é seu trabalho na Universidade Federal do Oeste da Bahia, meu amigo Sérgio Farias me escreveu um E-mail muito sensível falando do adoecimento de minha mãe e de como nós, já senhores sessentões somos forçados a nos preparar para eventualmente perdê-los. E que nunca nos sentimos preparados. Olival Freire Júnior, também muito ocupado com os afazeres da Pró-reitoria na UFBA me telefonou muito solidário e partilhou comigo a experiência de ter perdido sua mãe ainda relativamente jovem.

 Os colegas de seminário da Letra Freudiana mais próximos, tiveram sempre nesse período uma palavra de carinho e apoio. Minha amiga e ex-professora Eglê Pinheiro, muito presente, vai passar amanhã no meu consultório para deixar um livro que pode me entreter durante a minha estada em Aracaju.  Anamélia Carvalho, mesmo estando em recuperação de uma cirurgia, jamais esqueceu de me ligar e com seu estilo muito empático, está na torcida pela recuperação de minha mãe.

De diferentes lugares, de diferentes graus de proximidade, sendo mais ou menos frequentes, parecem todos os meus amigos saberem que estou passando por uma experiência limite. Os que me conhecem há mais tempo, a exemplo de Ana Helena que é minha amiga desde 1966 e de Ana Cecília, desde 1972, têm uma consciência mais aguda do doloroso que é essa experiência, porque são de certa forma testemunhas da complexidade do funcionamento da minha família e da ambivalência que por muitos anos perpassou a minha relação com minha mãe.O que importa é que sinto todos muito próximos. A certeza de que não estou só é imensamente alentadora.

Talvez a maior lição de vida que posso extrair dessa experiência é a impressionante amorosidade da minha irmã Sandra e do meu cunhado Alfredo. Minha mãe não cansa de dizer que o considera mais que um filho. Embora morando com meu irmão em Maceió, numa casa com suítes, piscina, canil e um enorme e muito bonito jardim num condomínio fechado, minha mãe escolheu se operar em Aracaju e está desde o dia 4 lá, na casa de Sandra.

 A casa é muito modesta, tem apenas dois quartos sem banheiro privativo. Um quarto é ocupado por minha irmã e meu cunhado. No outro se hospeda minha mãe. A casa não tem dependências de empregada e na sala funciona o salão de beleza onde minha irmã e meu cunhado trabalham às vezes até 22:00 h. É nesta casa que eu e minha irmã caçula vamos nos hospedar. É nessa casa que minha mãe vai passar seu período pós-operatório, que não sabemos quanto tempo vai durar.

Minha irmã, que não é aposentada, como eu, vive do que tece. É autônoma. Nesses dias em que minha mãe está em casa dela cercada de todo amor e carinho, Sandra não pode se dar ao luxo de parar de trabalhar só para se dedicar a cuidar da minha mãe. E cuida, e faz comida especial para ela e acorda de madrugada quando ela toca (comecei a chorar) a campainha e os chama para rezar com ela porque se sente angustiada.

 De manhã  Sandra e Alfredo têm que abrir o salão para trabalhar. Quando ela soube por meu irmão que minha irmã caçula não vai poder se hospedar na casa da filha dele por causa de um cachorro, Sandra disse que Lily é bem vinda na sua casa  e o que importa é que minha mãe fique bem.  Meus amigos, essa é a irmã mais velha que tenho. Sempre foi assim. E eu, o que faço? O que posso fazer para ajudar? Meus amigos, essa é a família que eu tenho. E eu o que faço? Dou uma divagada e sinto uma saudade quase insuportável do poeta Manoel de Barros que se foi pra não voltar.

Eu estou indo. Minha querida amiga Ana Helena vai me levar ao aeroporto. Não sei quando vou voltar. Vou para Aracaju acompanhar a cirurgia de minha mãe. Ainda agora estava falando com ela. Rindo muito, me disse que havia acabado de ler o "Blá, blá, blá.." onde eu conto a história da mala no veraneio da Ilha de Itaparica e acrescenta: "você exagerou muito. Você, minha filha, quando escreve é muito exagerada! Eu não me lembro que seu namorado cortou o pé. Essa parte você inventou". E dá muita risada. Isso me deixa muitíssimo feliz.

 Depois, generosa e protetora diz que tudo vai dar certo na cirurgia porque o cirurgião tem uma Nossa Senhora Aparecida bordada no jaleco e que ela simpatizou muito com o anestesista. Dona Myriam, uma mulher corajosa e de fibra de quem eu preciso e quero cuidar. Tem Dona Myriam, a mulher que sempre soube dar a volta por cima, nunca deixou cair a peteca. Agora chegou sua vez de receber colo e quero lhe dar colo. E tem vocês, meus amigos, que podem avaliar quão importantes são para mim. Obrigada de coração, pela lição de vida! Torçam por minha mãe! Quando a vejo assim tão bem humorada,  eu tenho a enorme  esperança de que  vai sair dessa e sobre ela e suas peripécias, ainda tenho muita história pra contar.
                                                                           Marcia Myriam Gomes. 

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