sábado, 20 de dezembro de 2014

21/12/14      Olá, amigos leitores!!!

Então, quem diria, e é o ano que finda. Para quem gosta, fazer o balanço de ganhos e perdas. Alguns sonhos realizados, uns tantos projetos frustrados, que movidos pelo desejo, podemos recolocar na pauta das possíveis realizações para 2015. Acho que uma das coisas que mais quero para o Ano Novo além de saúde, paz e ver Rafael, meu filho adotivo aprovado no concurso para professor da UFSB ( passou e muito bem na prova do currículum, segunda etapa do processo), é renovar meu anseio de me manter causada pela psicanálise. Estudar cada vez mais, fazer minha supervisão, escutar meus pacientes com compromisso e rigor.

Dona Myriam Urpia, minha mãe, vai bem obrigada. Seu processo de recuperação da cirurgia caminha com progressos. Provavelmente já está hoje curtindo a companhia dos familiares em sua casa em Maceió, e sentindo saudades dos que por quase dois meses a receberam com todo o carinho e dedicação em Aracaju. Para distraí-la e também para que vocês continuem fazendo contato com as facetas pitorescas da sua personalidade, continuo hoje a escrever  "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe".

Para fazer um contraponto à mídia, que não fala de outra coisa senão Natal, e, o que é pior, na perspectiva oportunista do consumo, resolvi escrever hoje sobre as experiências de minha mãe na dança de salão e como foliã de carnaval. Daí me dei conta de que aos 61 anos o funcionamento dos neurônios (será essa uma boa explicação?) cava um fosso às vezes fundo nas nuances das recordações. Dei-me conta que não me lembro mais principalmente de alguns nomes dos locais e que o enredo do que é relatado fica meio fragmentado por algumas lacunas. Aí vem a duplo propósito o nome da crônica de hoje. É um "lapso da dança".  Afinal, já faz muito tempo que escutei ou vivi essas histórias. Tomara que vocês, junto com Dona Myriam , se divirtam muito.

                                                          O  LAPSO  DA  DANÇA.

Dona Myriam é a caçula de 7 irmãos, três mulheres e quatro homens. Filha de família tradicional em Salvador, cujo pai tinha uma situação financeira confortável, nem por isso ficou livre de percalços e conflitos no seu desenvolvimento, particularmente na adolescência. É que Eduardo Urpia, meu avô, era muito repressor e severo e, o que é pior, avarento. Além dos gastos que fazia para prover a casa, não se dispunha a ter despesas que proporcionassem lazer aos filhos.

 Então Dona Myriam vivia se equilibrando na corda bamba de num momento, usufruir de bens e serviços compatíveis com a situação sócio- econômica de quem morava num casarão no bairro da Graça, e em outro momento passar por privações materiais descabidas. Parece que isso a ajudou a ser muito criativa. Ao lado disso, para contrabalançar a mão de vaca e a rabugice de meu avô, havia, felizmente, a enorme generosidade e alegria de Dona Orminda, minha avó, que não media esforços para ver seus filhos felizes.

Minha mãe sempre teve pendores para dança. Ainda criança parece que fez balé. Provavelmente financiado por tia Noêmia, uma espécie de madrinha adotiva que a paparicava estimulando suas inclinações. Entrando na adolescência tornou-se um pé de valsa. Quando se punha a desfilar e rodopiar nos salões do Clube Fantoches, da Associação Atlética e do Baiano de Tênis, não sobrava para mais ninguém. Era a rainha da festa. O grande problema era como chegar ao baile. Eduardo Urpia reprimia e não autorizava que minha mãe saísse com as amigas para dançar. Também parece que não era costume na época os pais autorizarem essas liberdades. Então minha mãe recorria à companhia de meus tios e junto com eles armava estratagemas inimagináveis para sair à noite de casa. Era levada aos bailes pelos seus irmãos, protegidos pelos mais criativos pretextos.

Um desses episódios muito interessantes que ela me contou, foi a respeito de um grande baile que ocorreria na Associação. Desculpa para enganar meu avô ela logo arranjou junto com tio Edmundo que iria acompanhá-la. Mas era uma festa muito especial e faltava o vestido. Passou-se uma semana das mais mirabolantes maquinações para ver como conseguir o dinheiro de Eduardo Urpia. E nada.... não teve estratagema certo. Na manhã do dia do baile minha mãe continuava sem o vestido. Então minha avó Orminda não contou conversa. Cortou um bom pedaço do tecido da cortina da sala e providenciou confeccionar o traje. Não era um baile à fantasia, mas minha mãe paramentada de cortina, rodopiou e deu show no salão. Fez o maior sucesso. Viram com quem ela aprendeu as peripécias de mãe criativa?

Se gostava de dançar, então seu comparecimento ao carnaval era garantido. Já casada, comprava bonitas fantasias para mim e Sandra, com direito a confete, serpentina e lança-perfume. Ai, como me lembro daquele cheiro! Ai, como era bom brincar de jogar lança-perfume no outro!! Bons tempos de carnaval. Sem assaltos, sem violência, durante o dia íamos aos bailes nos clubes e à tardinha assistíamos no centro da cidade ao encantador desfile dos carros alegóricos. Era uma época em que os moradores da Avenida Sete deixavam suas casas abertas e colocavam banquinhos nas calçadas sem qualquer receio. Lembro particularmente (eu devia ter 3 para 4 anos) do dia em que assistimos ao desfile fazendo nosso ponto de parada no Edifício Sulacap. Havia um carro alegórico com espécie de efeitos especiais luminosos muito bonitos, como se fosse em cascata. Lembro ainda hoje daquela imagem.

Na nossa adolescência, já não mais frequentávamos os clubes e saíamos mascarados junto com nossa mãe atrás do trio elétrico. O trio elétrico era ainda naquela época uma inocente "fubica" atrás da qual se comprimia uma multidão sem nenhum outro propósito senão dançar e se divertir. Entre a passagem de um trio e outro, Dona Myriam vestida de careta (como se chamava naquela época), encontrava pessoas conhecidas na avenida e brincava com elas lhes dirigindo os mais inocentes e divertidos gracejos. Acho que além da dança ela tinha vocação para teatro. Tamanha era a variedade de vozes que entoava e de gestos que encenava protegida pelo anonimato da máscara. Dizia-se que o melhor careta era aquele que passava grande parte de tempo brincando com alguém sem ser reconhecido. Apesar dos visíveis e grandes olhos azuis, Dona Myriam conseguia esta proeza. Nós ríamos muito tentando imitá-la, mas nem sempre conseguíamos. Muitas vezes no meio da brincadeira éramos literalmente desmascarados. Dona Myriam era um careta imbatível! Às vezes pegava no pé dos emproados juízes do Fórum e ninguém desconfiava da sua identidade.

Lembro especialmente de um carnaval em que fomos com minha mãe a um baile que tinha um concurso de gays fantasiados. Era um baile bonito, alegre, descontraído, muito famoso na época e, se não me engano, acontecia na sede do Teatro Villa Velha. A memória falha. Dona Myriam conseguiu no Fórum os ingressos para nós de última hora e tivemos que improvisar as fantasias. Ela vestiu-se de Chaplin mascarado. Prendeu o cabelo, arranjou não sei onde um fraque, as calças e os sapatos, pegou às escondidas uma cartola e uma bengala de meu avô, maquiou-se toda para não ser reconhecida, colocou a máscara e lá fomos nós.

 Dançamos muito, brincamos com muita gente até que encontramos um ex-namorado de minha mãe que tinha a infelicidade de ter um nome de sal de fruta. Tinham namorado quando ela tinha uns quinze anos, antes de conhecer meu pai e terminaram o flerte porque ela, de brincadeira de adolescente, uma vez ao invés de chamá-lo pelo nome, chamou-o literalmente de "sal de fruta".

 Minha mãe já há um bom tempo separada e ele sozinho na festa e sem máscara. Dona Myriam queria só brincar e se divertir e tirou muita onda com o rapaz sem ser reconhecida. De vez em quando ele dizia: "ainda não identifiquei quem você é, mas conheço esses olhos". Aí ela disfarçava, rodopiava, fazia mais um novo tom de voz e ele permanecia intrigado.

 Ela dizia a ele coisas sobre o seu passado de rapaz adolescente e nele ia crescendo vertiginosamente o desejo de reconhecê-la, sem sucesso. Dona Myriam, o Chaplin mascarado, estava se divertindo muito e ele cada vez mais intrigado. Ela foi se tornando cada vez mais brincalhona, até que inadvertidamente cometeu o maldito lapso. Ele a chamou para dançar no salão e ela respondeu: "agora não, sal de fruta, estou um pouco cansada". O homem não contou conversa: "você é Myriam. A única pessoa na vida que teve uma vez o atrevimento de me chamar assim". Cometido o lapso da dança o Chaplin estava irremediavelmente desmascarado. Não lembro mais o que fez Dona Myriam com a vergonha que passou e que resposta deu a Eno. Decididamente mais uma vez o flerte estava acabado.
                                                                                               Marcia Myriam Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário