domingo, 1 de fevereiro de 2015

01/02/2015                       A  INFELICIDADE  DA  OSTRA

Noite de quinta feira. Missão cumprida, arrumo minhas tralhas para saindo do trabalho pegar o táxi que me conduzirá até em casa. Mas entre eu e o táxi, há a espera. E enquanto espero, haverá o papo amoroso. Um homem mais jovem do que eu, pelo menos uns 20 anos, que eu chamo de "Seu" nem sei mesmo por que. Acho que pra demonstrar o respeito, a quase reverência, que lhe tenho. Sim, o papo será amoroso.

 Em relação a homens jovens, quando se tem 62 anos que passaram rápido, a palavra "amor" também passou rápido e veio atropelando sentidos. Passou por aquela coisa erótica de fazer tremer o joelho, atravessou cordilheiras das representações variantes dadas pelas ebulições dos hormônios, e veio cair sossegada numa linear e uniforme planície sem arroubos, de puro respeito e quase reverência. Então posso dizer sem medo que sinto amor por "Seu" J., sem causar atentado ao pudor de senhor ninguém.

 Se ele fosse um sessentão como eu sou uma sessentona, aí não. Não me arriscaria a dizer, pelo menos em público. Deixaria para dizer no reduto indevassável da alcova. É. Para os sessentões, nos redutos indevassáveis das alcovas, a palavra "amor" pode sair do sossego da planície e como um alpinista se arriscar de novo a escarpar cordilheiras. O amor, nos tempos da madurez, não tem porque perder de vez em quando seus arroubos de erotismo. Só nos resta ter cuidado para não traumatizar ainda mais a coluna (risos). Quanto ao coração, este, de tantos traumas pelos quais provavelmente passou, deve estar já um tanto imunizado. 

J. é aquele rapaz mesmo. O mesmo rapaz que de dia estuda filosofia e à noite trabalha como vigia do prédio onde tenho consultório. Aquele que monta enormes quebra-cabeças e conversou bonito comigo sobre Manoel de Barros e Ariano Suassuna. Aquele a quem já dediquei uma crônica domingueira.

 Antes de descer o elevador, enquanto arrumava as tralhas, pensei que provavelmente naquela noite encontraria com ele. Então senti-me constrangida com os efeitos colaterais das medicações para refluxo esofágico que nesses últimos tempos vêm me dificultando articular normalmente a fala. Pensei com um certo desconforto que essa dificuldade poderia me impedir de deixar o papo fluir livremente.

 Pensei que seria uma pena se os arroubos do erotismo reservados para um  sessentão, viessem a ceder a esses acidentes gástricos. Como posso me aproximar de um sessentão interessante com esses acidentes gástricos me dificultando falar? Então resolvo por enquanto não pensar na perspectiva de nenhum sessentão para não rebaixar minha auto- estima. Penso em levar emprestados a J. mais alguns volumes de Manoel de Barros e imagino o que ele me contará sobre em que pé está sua leitura da biografia de Nietzsche.


Quando o encontrei, veio logo sorrindo em minha direção e se ofereceu para chamar um táxi pelo telefone. Digo que já chamei, que vai demorar um pouco, por isso teremos algum tempo para conversar. Digo que na próxima vez trago os novos volumes de Manoel de Barros. Como sempre me chamando de doutora, diz que não tem pressa, que eu traga quando me lembrar.


Em seguida ele logo me perguntou sobre o meu novo aparelho de DVD. Pergunta o que vou fazer no carnaval. Quando lhe digo que vou passar sozinha em casa e que moro dentro da festa que não gosto, promete que vai gravar vários filmes bons para me divertir. Agradeço comovida com o gesto. Já me presenteou com alguns filmes e sei que temos o mesmo gosto cinematográfico. Costumamos preferir diretores europeus, embora também apreciemos um bom americano.

 Então entabulamos um papo sobre música clássica. Me disse que gosta de Chopin, mas prefere Bach por ser mais angustiado. Comentei com ele que assisti no canal "Arte 1" um documentário sobre as cartas de Van Gogh a seu irmão Théo. Diz que assistiu também e ficou impressionado com a densidade dramática do pintor. Aí ele compara Van Gogh a Nietzsche e a Dostoievsky. Todos muito bons, todos muito angustiados. Noto que "Seu" J. está tentando me falar sobre o que passei o dia inteiro escutando: a angústia.

 Mas confissões sobre sua vida privada sei que não fará. Temos de certa forma uma relação profissional, por trabalharmos no mesmo prédio e ele sabe ser discreto. O máximo que já me falou de pessoal é que mora sozinho, faz sua própria comida e tem uma namorada que lhe deu um quebra-cabeça de presente. Então me tranquilizo constatando que meu dia de trabalho de fato se encerrou. Com certeza o que J. me dirá será algo da ordem da sensibilidade poética.  Aguardo, deixando com ele a iniciativa de falar, tomada pelos efeitos constrangedores do meu refluxo esofágico.

Então J. fala longamente da angústia como a força que engendra a produção artística. Seu discurso é belo e bem articulado. Fala com entusiasmo, gesticula com ênfase e tem um olhar melancólico. Penso recorrentemente no que faz desse homem um vigia noturno ao invés de um professor, um artista, um profissional liberal. Sinto uma ternura desmedida por ele e quase um ódio das condições que produzem e reproduzem a desigualdade social. Condições complexas, multifacetadas que interpenetram fatores subjetivos e sócio-econômicos, numa rede intrincada que é preciso erradicar a partir da raiz. Ele continua falando e menciona Rubem Alves como um pensador, um educador, um poeta de ideias inovadoras movidas por uma implacável angústia existencial.

Menciona que Rubem Alves costumava dizer que ostras felizes não produzem pérolas. Explica que a metáfora se apoia no fato verdadeiro de que a ostra só produz a pérola para se defender de uma doença mortífera que a acomete. E então se refere ao artista que produz o belo como uma ostra infeliz. Lamentavelmente meu táxi chega. A caminho de casa, num rompante narcísico de encantamento com a riqueza daquele homem pobre, beiro quase bendizer sua infelicidade de ostra. Chego à conclusão de que sim, um sessentão talvez seja bem vindo à minha vida. E por que não até um setentão? Mas sem uma alegria frívola que o faça prescindir da pérola. E eu sem o desaviso inconsequente de jogá-la aos porcos. Então entro na minha casa solitária.
                                                                                     Marcia Gomes.

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