domingo, 2 de agosto de 2015

02/08/2015                                                             ESCREVER                                  

Agosto é chamado de "mês do cachorro louco". Acho que é em São Paulo, nas suas idiossincrasias climáticas, que o vento uiva, vocifera como um cachorro acometido de hidrofobia, no mês de agosto. Agosto, mês que anuncia, inclemente, que mais da metade do ano já se passou e que estamos mais velhos, sem que necessariamente nossos projetos estejam se cumprindo. Meu projeto de publicar algumas crônicas domingueiras. Bem poucas. Aquelas que repercutiram melhor no cotidiano dos leitores. Aquelas sobre as quais mais leitores me escreveram comentando, ou disseram que me ler fez alguma pequena diferença nas suas vidas. É muito gratificante saber que alguns mais generosos me leem. Alguns mais sensíveis, talvez, adivinhos de que em mim uma subjetividade clama por se fazer presente numa interlocução com o outro, mesmo sabendo que interlocução não há e que o outro é mera suposição.

Acho que àqueles que apraz escrever, mesmo que como eu, não tenham exatamente talento literário, não sejam escritores, há o gosto por inventar uma interlocução possível com um outro suposto, que se deixa entrever por detrás do traçado percorrido pela pena. Cada vez que se toma a pena, sem saber a quem se dirige, sem saber a quem vai tocar, quem escreve sabe que constrói um interlocutor sem substância palpável, que serve para mitigar a dor de existir. A não ser aqueles autores de obras comerciais como a literatura de auto-ajuda, quem escreve não sabe para quem escreve. Não sabe a quem vai agradar, não pode escolher a quem endereçar o seu texto, oscila na corda bamba sem qualquer garantia. Escrever talvez seja o ato que melhor represente a angústia de ser montado, tomado pela linguagem, açoitado por ela, mergulhado no buraco negro de se arriscar sem eira nem beira, tendo como alento, como anteparo para a angústia, somente um leitor criado pela invencionice do faz de conta. Quem escreve o faz para um leitor que não tem rosto, um leitor criado para dar conta da solidão que é não saber nunca o que o outro quer.

Quem poderia dar conta de responder por quê numa tarde de sábado, ao invés de ir ao cinema, ir ao shopping, ir encontrar com amigos ou mesmo estudar, preparar um trabalho, arrumar a casa, eu escolho, por um certo tempo, escrever e enviar o meu texto para um número razoável de leitores que são meus amigos e/ou meus colegas, nos quais não penso quando componho meu escrito? Não penso em ninguém em particular no sentido de ser destinatário do meu texto, enquanto escrevo. No entanto, depois de enviado, o escrito passa a pertencer a quem o recebe, cuja leitura me importa muito. Gosto de saber que a leitura do meu texto tocou alguém, fez alguém ter alguma experiência estética, aprender sobre a vida, repensar algumas questões, concordar, discordar, ou que alguém simplesmente ficou sabendo de mim.

 Gosto de contar sobre mim por escrito. Por que? Para que? Não tenho resposta. É mistério. Só sei que desde que me entendo por gente gosto de escrever e levo isso a sério. Estou me lembrando agora que na quarta-feira passada, encontrei uma colega que raramente vejo, no Centro Médico Itamaraty. Ela me disse que lê minha crônica domingueira e falou : "você anda lendo Valter Hugo Mãe, não é?" Fui tomada de um contentamento muito singular ao ouvir aquela pergunta. A pergunta dava conta que a colega me leu. Fui tomada também por uma vergonha, um pudor, quase uma culpa, porque entabulamos uma conversação muito tímida sobre Valter Hugo Mãe, já que no momento da conversa eu sentia forte dor no corpo, não podendo ficar muito tempo de pé, razão pela qual tive que abreviar o nosso promissor bate papo. Mas registrei que ela me disse que aquele autor escreveu um livro intitulado "A desumanização".

Na quinta-feira encontrei no shopping com outra colega que havia me escrito no domingo dizendo ter ficado tocada por meu texto. Ao me encontrar, ela teve o cuidado de perguntar se eu estava melhor da dor, e voltou a me dizer que mesmo escrito com dor, meu texto era bonito. Fiquei muito contente. Um poeta que considero ter o estatuto de um Carlos Drummmond escreveu e dedicou um poema a mim, a propósito do meu texto de domingo passado. Isso me deu um contentamento enorme. Gosto de responder a todos que me escrevem comentando meu texto. Sinto alegria de saber que meu escrito foi lido e tocou alguém de algum modo. Evidentemente deve haver muitas pessoas que não gostam de me ler e por isso, não me escrevem dando qualquer retorno. Assim como há as que leem, mesmo que não me escrevam.

Nesses tempos em que estou muito maltratada pelo problema na coluna de difícil solução ( não quero me submeter a uma cirurgia e minha dor é refratária a medicações e tratamentos alternativos), escrever tem sido fundamental. Em geral, por causa da dor, fico indisposta para conversas muito longas. Enquanto que posso ficar mais livre quanto à hora que escolho escrever, e fazer pausas para descansar da dor. Talvez escrever seja um estratagema para burlar a morte que nos espreita. Escrever tem algo a ver com estar na vida, ainda que a falta de garantia soe um pouco a um salto mortal. Quem sabe um salto mortal circense com rede de proteção? Quem sabe a rede de proteção não é esse outro que inventamos como interlocutor? E por que, no ato da escrita, a um outro encarnado com rosto e corpo, preferimos o outro inventado? Não será este outro inventado mais alentador, por sabermos que na confrontação com a morte estamos absolutamente sós?

Por coincidência, depois da conversa com minha colega sobre Valter Hugo Mãe, pude compartilhar no Facebook uma entrevista desse escritor tão interessante, falando justamente do seu livro "A desumanização". Na entrevista (WWW.FRONTEIRAS.COM)  ele cita um escritor tcheco que vive em Portugal chamado Jorge Listopad que disse : "quem não morreu está a morrer". Pude ler esta frase como estamos todos fadados à morte. Se alguém não morreu ainda, está a morrer pela inexorável passagem do tempo. Mas, de certa forma, o ato de escrever não suspende a passagem do tempo? Escrever é eternizante?
                                                                                                                       Marcia Gomes.                       


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