terça-feira, 23 de agosto de 2016


  20/05/2016                                        DEPOIMENTO  COMOVIDO



Estou chorando. Sou muito sensível e assim estou, particularmente neste grave momento que o nosso país atravessa. Mas é um choro bom. De gratidão à vida porque quando a gente menos espera, encontra pessoas bonitas, de corações valentes cuja existência me faz acreditar que algum dia, mesmo que tarde, teremos um Brasil mais justo, com muito menos desigualdades sociais, onde as pessoas  serão valorizadas pelo que são e não pelo que possuem materialmente. Porque todos terão o que é materialmente necessário para ter uma vida decente e digna e viver bem e confortavelmente. Viver bem não será privilégio de ninguém, muito menos evidência de "competência" e sucesso. Será um direito conquistado por todos, porque alguns lutaram com firmeza e sem vacilações oportunistas por isso. Ninguém terá além do necessário.

Hoje trabalhei muito e estudei muito.Ao fim do dia estava cansada e resolvi ir ao cinema. Olhei na programação e vi um filme documentário que muito me interessou. Liguei para uma amiga para ver se queria ir comigo. Às 19:00 h cheguei sozinha no Cinema da Ufba. Fiquei perplexa pelo filme ser de graça. O rapaz da bilheteria me explicou que tratava-se de um projeto em convênio com o cinema. Antes que o filme começasse um jovem com jeito de universitário avisou que ao final haveria um bate-papo.

O filme chama-se "Retratos de Identificação" e é feito por uma mulher de nome Anita Leandro. Trata-se de depoimentos de pessoas que foram militantes das organizações de esquerda Var Palmares, Colina, MR8 e ALN e que foram presas e violentamente torturadas e seviciadas pela ditadura de 64, e por um triz conseguiram sobreviver. Algumas por conta dos sequestros dos embaixadores. Além desses depoimentos, há também farta documentação sobre pessoas que foram assassinadas, colhida nos arquivos da antiga repressão que parece, com o GOLPE já estar voltando. Fala-se que o filme foi proibido por José Serra de ser exibido em Paris.

 O filme mexeu muito comigo. Particularmente a história de Dôra, uma militante que sem jamais trair seus companheiros, não suportando as torturas físicas e psicológicas, passou a ter eventuais manifestações de sofrimento psíquico que alguns psiquiatras costumam chamar de surtos psicóticos. Nos seus momentos de lucidez, não sem razão, Dôra refletiu que não sendo verdadeiramente louca, (louca era a situação do nosso país, que ameaça voltar) não achava justo viver com o estigma imprimido pelos rótulos psiquiátricos, e suicidou-se atirando-se na linha de um metrô. Sofri muito imaginando a insuportável dor de Dôra.

Chorei muito lembrando do lindo rosto de Virgínia, minha companheira na Var Palmares que foi, aos 17 anos assassinada pela ditadura. Da morte de Virgínia ficou comigo uma enorme dor e o seu nome, que pude ficar sabendo somente depois de sua morte. No dia em que chorei copiosamente vendo a dignidade e integridade emocional com que a presidente Dilma discursava se despedindo do seu povo, sofri muito pensando que todos os anos do fim da ditadura pelo qual lutei, eu me consolava da perda de Virgínia, pensando que não foi em vão. E agora? Como vou me consolar da morte de minha companheira de causa quando eu contava apenas 15 anos?

Ao término do filme imediatamente comecei a aplaudir e todo o restante do público me acompanhou. Muito comovente. No bate-papo várias pessoas falaram emocionadas, pontuando o momento atual que estamos vivendo onde um GOLPE está em curso, havendo pessoas que parecem ter "recalcado" o que foi a ditadura de 64, estando "cagando e andando" diante do eminente risco de vivermos algo muito parecido de novo. Eu, muito emocionada, levantei e falei me identificando como ex-militante da Var Palmares.

 Contei a morte de Virgínia, e para todo aquele público que estava no cinema, denunciei repudiando, psicanalistas que ao saírem de um seminário onde se estuda seriamente, contam rindo muito a seguinte "piada" fascista, perversa, de péssimo gosto: Adivinhe o que disse a Dilma "estou contigo e não abro"? Resposta: um pára-quedas. Denunciei repudiando psicanalistas que em rodas sociais onde se divertem, dizerem que intitular um Coletivo de psicólogos de Iara lavelberg é uma espécie de identificação masoquista com gente que foi torturada e assassinada.

 Denunciei repudiando essas mesmas psicanalistas que na sua roda social em torno de uma mesa muito bem servida, da qual fazia parte uma famosa mestra (mestra do diabo, não minha, diga-se de passagem. Mestra daqueles que dizem que preferem não se posicionar politicamente para não se indispor com ela e similares) dizem que Marcus Vinícius atuar na demarcação de terras indígenas só podia ser um desejo de ser assassinado. Ao que uma "coleguinha" acrescentou: "Ele devia ter permanecido só com a causa dos malucos (Marcus Vinícius era militante do importante movimento Luta Antimanicomial). Assim não seria morto. Maluco não é nada. Quem está ligando para maluco?" Quando em seguida a "Mestra" comentou que Nise da Silveira, com quem estudou, era louca. "Quem abraça com essa dedicação causas como essas, não está bem emocionalmente. Ainda mais com aqueles gatos subindo e descendo em tudo, o que me enchia de nojo". Não me retirei acintosamente daquela mesa em respeito a uma senhora de 83 anos, de quem gosto muito. Mas assim que pude me retirei.

Contei tudo ao público do cinema. Advertindo-os que essas coisas não são causadas pelos solidários pensamentos de Freud e Lacan. É mesmo o pernicioso veneno da origem de classe, que ataca mesmo àquelas que quando convém atuam como se fossem politizadas. Quando não convém, "Eu não quero saber nada disso..." É pena eu não ter o e-mail da tal  Mestra. Adoraria mandar para ela esta mensagem. Não tenho medo de bicho papão, embora prefira ficar longe deles. 

Ao final do bate-papo no cinema, eu muito emocionada, fui abraçada por um rapaz muito sensível, que em nome do Brasil me pediu perdão por eu ter perdido minha companheira de luta. Me deu um nó na garganta e chorei. De repente, estava um monte de gente me abraçando e se abraçando. Trocamos contatos. Uma professora, que burlando a ementa da disciplina levou sua classe inteira de alunos para ver o filme, me perguntou se eu aceitaria o convite para ir dar meu depoimento em outros espaços. Respondi que é claro que irei. Sou uma psicanalista e pobre. Então não tenho razão alguma para desejar e muito menos acreditar que é possível ser coerente e corajoso sem arcar com perdas. Sei que tenho que arcar. De mais a mais, "antes só do que mal acompanhado". Meus verdadeiros amigos e companheiros são aquelas pessoas simples e calorosas que estavam no cinema. Meus verdadeiros amigos são aqueles que se dispuseram a ir comigo à uma jornadinha de psicanálise, para que eu me sinta apoiada. As "coleguinhas" às quais denunciei e repudiei, várias delas receberão esta mensagem e provavelmente me interpretarão como interpretaram Iara Iavelberg, Marcus Vinícius e Nise da Silveira. E eu com isso?

Só lamento não ter podido dar uma carona de táxi a Ana Virgínia, de quem gosto muito. De resto, deixo com vocês informações sobre esse bonito projeto de cinema de graça que se chama "Projeto Cinemas em Rede".  proextcinema@ufba.br  . Para ver a programação, www.ufba.br (acrescentar : extensão ou agenda).  Eles falaram que se houver um grupo grande interessado em ver o filme, podem tentar programar uma sessão junto ao cinema. Gente, vivi hoje uma coisa de muitos bons presságios. O lado bom da crise. O povo brasileiro (o verdadeiro. Não esses progressistas de duas caras) está aos poucos acordando, ocupando espaços, se posicionando.É a velha lição do materialismo dialético: a contradição é que move o mundo. Quem não acredita nisso, porque ao fim e ao cabo, não tem contradições, posa de politizado quando não corre o risco de se indispor com as "coleguinhas".
                                                                                                                                Um abraço,
                                                                                                                           Marcia Myriam.

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