domingo, 8 de dezembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro...."e....Taperoá.



  • 08/12/13                                             TAPEROÁ

    Vastas recordações comprimidas num espaço exíguo. Era quase uma aldeia. Um lugarejo. Primeiro me vem a praça. Jardim simples e bem cuidado circundado de casas em modesto estilo colonial. A casa do prefeito, não tão modesta, contrastando com as demais.

    Recordo-me de Alzirinha andando de bicicleta na praça. Nós, os filhos do médico, não podíamos pegar carona na bicicleta de Alzirinha. Provavelmente a menina era filha de gente da classe dominante. Quem sabe do prefeito? Também não podíamos ter bicicleta. Onde já se viu tamanho luxo em vida de filhos de comunista? Mas nada disso nos aperreava.

    Muito da rotina da cidade girava em torno daquela praça. Era lá que na escuridão, quando faltava luz -- e sempre faltava --, que alguém em tom fantasmagórico gritava : "Olha a onça!" Circulava o boato de que uma onça pintada se apoderava da praça quando o breu se fazia. Meu pai, desfazendo o ar assustador da lenda e com uma certa ironia, dizia que a onça era o próprio prefeito, devorando selvagem os impostos do povo humilde que vivia da pesca.

    Meu pai insistia em nos explicar que a onça era uma metáfora. E nós lá queríamos saber de metáfora? Queríamos saber de ter medo da onça e perder o sono, como faziam as outras crianças de Taperoá. Mas nada disso nos aperreava.

    Era também na praça que ficava a igreja de São Brás, o padroeiro. A festa de São Brás era o maior acontecimento. Havia uma longa escadaria para alcançar a igreja. Num dia de festa caí escadaria abaixo assustada com o barulho de um foguete e machuquei feio o nariz. Mas nada disso me aperreava.

    Taperoá era uma cidade de braço de rio se misturando ao mar que banhava o Morro de São Paulo. Havia pescadores. Muitos. "Seu" Luís de Abrão, talvez o mais velho deles, está ainda hoje na sala de minha casa num porta-retratos, com um chapéu de palhas de abas enormes. O decano dos pescadores era sogro de Conceição, nossa empregada doméstica. Como não lembrar de Concé com sua tatuagem em carne viva? Concé pegava castanha de caju ardendo em brasa para gravar na coxa o nome do seu amado. Ainda bem que o nome era curto. Ficava com a coxa toda queimada. Mas nada disso lhe aperreava.

    Além da pesca, vivia-se de catar cravo da Índia nas fazendas. Perfumada, colorida e poética atividade artesanal. As pessoas colocavam os cravos a secar em esteiras nas portas de suas casas. Eles iam secando numa gradação de matizes do verde ao preto. Havia também uma fábrica de azeite de dendê.

    Ninguém se surpreendia se encontrasse um caranguejo caminhando placidamente dentro de casa. Era a famosa andada do caranguejo. Algo do ciclo de vida desse bicho o fazia adentrar as casas sem a menor cerimônia. Como posso esquecer da caranguejada com o delicioso pirão que comíamos às escondidas quando nosso pai viajava? Bendita transgressão.

    Agora bem me recordo : havia um caranguejo gigante artesanalmente construído posto no coreto da praça. Sim, sim. Havia a Zameapunga. Festa folclórica muito particular. Mascarados dançando um ritmo próprio desfilavam pelas ruas e depositavam o caranguejo na praça. Todos dependurados nas janelas para ver a Zameapunga passar.

    Como esquecer de Chico Lecó, Cassiano, "seu" Pequenito, Dona Odete e tantos outros? Taperoá era sem dúvida a cidade de tipos humanos interessantes. Mais interessante ainda é que naquela época, transição dos anos 50 pra 60, meus pais se amavam e viviam namorando pela casa. Pra que aperreio?

    Chico Lecó era um doido que passeava solenemente pela cidade com flores espetadas nas narinas. O negro Cassiano, alto e forte, muito forte, fazia rodopio na beira da cisterna com cada um de nós de pé na palma de sua mão enorme. "Seu" Pequenito tinha uma loja de artesanato em cerâmica que nada deixava a dever a uma feira de caxixis. Vendia também tamancos. Dona Odete burlava as fronteiras entre campo e cidade morando num sítio bem defronte à nossa casa. Que doce de leite, o de Dona Odete!

    Que doce deleite memórias de infância quando os pais da gente se amam! Vontade de retroceder no tempo e nunca mais sair de Taperoá, cenário temporário de romance familiar temporário. Taperoá, o lugarejo. Vastas recordações comprimidas num espaço exíguo. Saímos de Taperoá. Mas Taperoá, quem disse, me sai da memória? Pra que aperreio?
                                                                                                            Marcia Gomes.