sábado, 27 de dezembro de 2014

28/12/14  Cara leitora, caro leitor,

É o ano de 2014 que se despede. Ano cheio de altos e baixos. Passei o primeiro semestre tomada pelo encantamento com a psicanálise que sempre se renova em mim. Nem sempre pude estudar tanto quanto gostaria. Alguns problemas de saúde próprios da idade trouxeram percalços. Mas ainda assim, senti-me animada com o esboço de possibilidade do amor voltar a bater à minha porta. Vivi muito a falta das minhas sessões de supervisão. Quando a gente chegou há relativamente pouco tempo na psicanálise ( trabalhei em torno de 30 anos como terapeuta cognitivo comportamental), o investimento no tripé formação teórica- análise pessoal- supervisão tem que ser muito alto para se dar conta de fazer uma clínica com rigor. E às vezes, a depender do momento, tem que se fazer escolhas, nem sempre as mais agradáveis.

Veio o segundo semestre. Eu ainda encantada com as vivificantes surpresas do discurso amoroso, fico sabendo que Rafael, meu filho adotivo que esteve aqui em outubro, vai se submeter ao concurso para professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, que tem um belíssimo projeto de funcionamento. Já está se submetendo e tem se saído muito bem. Isso me enche de ânimo e alegria. Também me alegrou muito participar dos preparativos do encontro das turmas de Psicologia de 71 e 72 que aconteceu em novembro, ao qual, infelizmente, não pude comparecer.

No final de setembro tudo se modifica quando recebo a notícia da doença de minha mãe. Isso ressignificou todas as coisas. Entre o diagnóstico, a cirurgia e o processo de recuperação que está em curso, me vi uma nova pessoa. Uma urgência de resgatar na minha relação com ela o que pudesse haver do tempo a ser aproveitado minuto a minuto, me fez ficar quase que inteiramente com a atenção voltada para Dona Myriam. Não vejo a hora de chegar em Maceió e abraçá-la, poder passar o Ano Novo com ela, assistir a todas as missas que ela quiser e a que tem direito e, principalmente, auxiliá-la nas atividades de rotina que ainda não pode fazer sozinha.

Nesse processo difícil pelo qual passa minha mãe, houve sofrimento meu e dos meus irmãos e familiares, muita solidariedade dos amigos, muitas descobertas gratificantes sobre o outro, muito medo e sobretudo uma aguda tomada de consciência sobre a questão do idoso. Hoje não vou escrever sobre "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Não vou escrever sobre coisas do passado, porque vivo agora, no presente, uma história com minha mãe que sinto vontade de escrever sobre alguns aspectos como o meu texto de finalização de ano para vocês.

Como pude passar tantos anos pouco atenta e talvez até pouco sensível às questões que cercam a vida dos idosos? Dou-me conta hoje que essa que vos escreve é uma pessoa idosa. Somente há poucos meses me vi seriamente defrontada com o fato de que em torno de setenta por cento dos meus pacientes estão na faixa dos sessenta anos.

Talvez a primeira vez que me vi envolvida e de perto com os dilemas que cercam a vida de um idoso, foi quando uma amiga minha muito querida, passou a sofrer e se inquietar com o quanto é desafiador para nós, já na faixa dos 60 anos, viver em relação aos pais essa difícil inversão de papéis da posição de como filho ser cuidado, para a posição de filho cuidador. Quando minha mãe começou a envelhecer, já vivíamos geograficamente distantes e nosso contato ficava restrito às visitas que eu lhe fazia, em geral em viagens de férias. Às vezes só pude acompanhar o processo de envelhecimento de minha mãe por telefone, sem esse corpo a corpo tão necessário para que a nossa ficha caia.

A experiência vivida por minha amiga com seus pais, particularmente com sua mãe, pessoa por quem eu nutria grande afeto e que foi afetada por uma doença devastadora vindo a falecer em curto espaço de tempo, mexeu muito comigo. Isso aconteceu no ano passado. Acompanhar o sofrimento da minha amiga quando a minha mãe, com a saúde fragilizada e já apresentando alguns lapsos de memória começou a despertar em mim um enternecimento muito grande e um desejo de cuidar, contribuiu muito para que em 2014 eu fosse visitar Dona Myriam em junho, época de nossos aniversários, enxergando-a de um outro lugar. Felizmente fui visitar minha mãe em Maceió num momento em que pude lhe dispensar todo meu amor e carinho. Nem de longe eu poderia imaginar que em setembro estaríamos vivendo esse turbilhão de emoções e apreensões em torno do seu adoecimento e da perspectiva da cirurgia.

Quando visitei minha mãe em junho, pude observar mais de perto o quanto a condição de pessoa idosa que já não pode dispor da própria vida do modo que quer a estava afetando. Conversou muito comigo sobre seu constrangimento e aborrecimento por precisar deixar o seu dinheiro sob o controle de meu irmão, com quem mora. Confia irrestritamente nele, mas sofria por não se sentir mais dona de suas decisões. Falou também o quanto se sentia acanhada por não poder mais ajudar integralmente minha cunhada nas tarefas de casa aos domingos, quando não têm empregados. Confessou seu sofrimento em se sentir dividida entre se alegrar com a presença dos bisnetos na casa e num momento seguinte sentir uma certa irritação com a sua natural movimentação, o que às vezes a levava a ficar recolhida por muitas horas no seu quarto.

Havia muitos momentos em que interagia muito alegre e carinhosa com Iasmin, a sua bisnetinha mais nova. Fez questão de recordar com muita alegria e vivacidade episódios vividos conosco, seus filhos, quando éramos crianças. Sua memória para eventos do passado está impecável e ela sentiu muita necessidade de relembrar traquinagens e peripécias nossas, como se quisesse se deixar tomar inteira por aquelas imagens.

 Falou de um parente seu pela linha materna que viu na televisão e que vivia em Maceió, e confessou que gostaria de encontrá-lo para partilhar com ele alguns documentos de família. Eu a auxiliei na tentativa de localizar o parente que é professor da universidade. Minha mãe oscilava entre os momentos em que mostrava empenho na busca e os momentos em que fazer aquela pesquisa a deixavam cansada e irritada. Algum tempo depois, felizmente, encontrou o parente e partilhou o que queria com ele.

Não conseguia mais manipular o computador nem entrar no Facebook. No dia do seu aniversário eu entrei na sua página e li para ela as inúmeras mensagens de congratulações que recebeu. Fez questão de telefonar a cada um agradecendo. Agora recentemente, quando estive em Aracaju por ocasião da sua cirurgia, fiquei sabendo que ela já esqueceu suas senhas. Uma pena...Ela me pediu tanto para lhe mostrar as fotos do casamento de Ana Clara (filha de uma amiga minha muito querida por Dona Myriam) e acabou não podendo ver. Gosta muito de ler o "Blá, blá, blá...." com as "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Mas para isso ela precisa que alguém faça a gentileza de imprimir.

Creio que todos vocês sabem que minha mãe ter mais recentemente tomado o Hábito de Carmelita e ter vivido uma intensa atividade religiosa num período mais remoto na Paróquia de Santa Luzia em Aracaju são os acontecimentos centrais da sua vida. Encontrou na religiosidade um alento e uma resposta satisfatória para suas indagações existenciais. Tem em torno de 50 cadernos manuscritos com suas reflexões bíblicas, um dos quais está agora comigo, presenteado por ela. Na visita que lhe fiz em junho, confessou-se apreensiva quanto ao destino que seria dado a esses cadernos quando ela não estiver mais conosco. Falou muito em morrer e no receio de em vida ter cometido vários pecados. Ficava feliz quando eu dizia que pela mãe dedicada que sempre foi, seus pecados, certamente inocentes, estavam com certeza todos perdoados.

A confrontação com a morte em uma pessoa idosa deve ser um processo doloroso e controvertido. Minha mãe oscilava entre momentos em que dizia saber estar sua hora chegando e isso ser um alívio, e momentos em que era visível seu medo de morrer. Muito difícil para mim saber o que dizer numa hora dessas. Felizmente a religiosidade traz o necessário conforto de saber que as questões da vida e da morte estão na mão de Deus. E era isso que eu tentava dizer à minha mãe, nos momentos em que sentia que estava vivendo um dilema entre viver e morrer.

 A perspectiva de perda de uma mãe é uma experiência muito penosa. Perdi o meu pai quando eu tinha apenas 21 anos e julgava ter sido um processo muito traumático. Hoje já não sei mais. Me parece muito difícil perder uma mãe aos 62 anos. Talvez, um tanto enrijecidos pela idade, estejamos menos aparelhados para vivermos processos de luto, além de nesta circunstância sermos confrontados com a nossa própria morte.

Agradeço à vida estar podendo encerrar esse ano junto de minha mãe. Agradeço à vida ter tido tempo de resgatar a nossa relação que foi no passado às vezes conturbada. Agradeço à vida, quando ouço a sua vozinha frágil, só sentir ternura, vontade de acolher, saudade. Sim, sinto muita saudade. E sofro também quando sinto seu humor um tanto deprimido. E sofro também de saber que ela ainda sente dor no lugar onde foram feitos os cortes cirúrgicos e padece por ter que lidar com algumas limitações às quais está ainda submetida. Por exemplo, se constrange muito por não poder ainda tomar banho sozinha e ter que "dar trabalho" a meu irmão e minha cunhada.

 Imagino que uma das coisas que entra em questão quando já se é idoso e se tem uma mãe idosa, é avaliar o quanto pudemos elaborar e deixar para trás conflitos familiares, mal entendidos, ruídos na comunicação. Quando um ente querido adoece gravemente, naturalmente devem vir à tona questões familiares mal resolvidas. Particularmente disputas e ciúmes entre irmãos, tentativas de uns exercerem poder sobre outros, jogos de predileção e preferências, falta de diálogo e de partilha nas decisões. Deve ser muito, muito solitário enfrentar o adoecimento o mesmo a perda de uma mãe quando os irmãos são desunidos.

Por isso, tenho torcido muito pela minha união com meus irmãos. Tenho pensado em qual pode ser a melhor forma de nos conscientizarmos que nesse processo de recuperação de uma cirurgia delicada, nossa mãe precisa muito que nos mantenhamos sensatos, cordatos, amorosos uns com os outros, dedicando cada um a ela o melhor de si, tentando ao máximo transcender questiúnculas de desavenças familiares, de discórdias entre irmãos, de prevalência do poder de um sobre o outro. Acho que tentar não se deixar tomar por essas questões é o projeto de Ano Novo que deixará Dona Myriam melhor e que nos deixará bem cada um com o outro.

Evidentemente tenho meus projetos profissionais, culturais, sociais e amorosos para 2015. Desejo que todos vocês realizem os seus. Entretanto o meu projeto maior é tentar me manter unida de igual para igual com meus irmãos para que possamos dispensar a Dona Myriam todo carinho e cuidado que ela precisa e merece. Esse texto depoimento de hoje vai ser publicado no Facebook para que minha irmã Lily que mora em Rio de Contas tenha acesso. Fora isso, será enviado somente aos amigos íntimos e àqueles que vêm acompanhando com carinho o processo de recuperação de Dona Myriam. No dia 4 de janeiro estarei em Maceió na companhia de minha mãe. Por isso não escreverei "Blá, blá, blá..." FELIZ  ANO  NOVO  A  TODOS !!!!!!!!!!!!!!!!!

                                                                 Marcia Myriam Gomes.  

sábado, 20 de dezembro de 2014

21/12/14      Olá, amigos leitores!!!

Então, quem diria, e é o ano que finda. Para quem gosta, fazer o balanço de ganhos e perdas. Alguns sonhos realizados, uns tantos projetos frustrados, que movidos pelo desejo, podemos recolocar na pauta das possíveis realizações para 2015. Acho que uma das coisas que mais quero para o Ano Novo além de saúde, paz e ver Rafael, meu filho adotivo aprovado no concurso para professor da UFSB ( passou e muito bem na prova do currículum, segunda etapa do processo), é renovar meu anseio de me manter causada pela psicanálise. Estudar cada vez mais, fazer minha supervisão, escutar meus pacientes com compromisso e rigor.

Dona Myriam Urpia, minha mãe, vai bem obrigada. Seu processo de recuperação da cirurgia caminha com progressos. Provavelmente já está hoje curtindo a companhia dos familiares em sua casa em Maceió, e sentindo saudades dos que por quase dois meses a receberam com todo o carinho e dedicação em Aracaju. Para distraí-la e também para que vocês continuem fazendo contato com as facetas pitorescas da sua personalidade, continuo hoje a escrever  "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe".

Para fazer um contraponto à mídia, que não fala de outra coisa senão Natal, e, o que é pior, na perspectiva oportunista do consumo, resolvi escrever hoje sobre as experiências de minha mãe na dança de salão e como foliã de carnaval. Daí me dei conta de que aos 61 anos o funcionamento dos neurônios (será essa uma boa explicação?) cava um fosso às vezes fundo nas nuances das recordações. Dei-me conta que não me lembro mais principalmente de alguns nomes dos locais e que o enredo do que é relatado fica meio fragmentado por algumas lacunas. Aí vem a duplo propósito o nome da crônica de hoje. É um "lapso da dança".  Afinal, já faz muito tempo que escutei ou vivi essas histórias. Tomara que vocês, junto com Dona Myriam , se divirtam muito.

                                                          O  LAPSO  DA  DANÇA.

Dona Myriam é a caçula de 7 irmãos, três mulheres e quatro homens. Filha de família tradicional em Salvador, cujo pai tinha uma situação financeira confortável, nem por isso ficou livre de percalços e conflitos no seu desenvolvimento, particularmente na adolescência. É que Eduardo Urpia, meu avô, era muito repressor e severo e, o que é pior, avarento. Além dos gastos que fazia para prover a casa, não se dispunha a ter despesas que proporcionassem lazer aos filhos.

 Então Dona Myriam vivia se equilibrando na corda bamba de num momento, usufruir de bens e serviços compatíveis com a situação sócio- econômica de quem morava num casarão no bairro da Graça, e em outro momento passar por privações materiais descabidas. Parece que isso a ajudou a ser muito criativa. Ao lado disso, para contrabalançar a mão de vaca e a rabugice de meu avô, havia, felizmente, a enorme generosidade e alegria de Dona Orminda, minha avó, que não media esforços para ver seus filhos felizes.

Minha mãe sempre teve pendores para dança. Ainda criança parece que fez balé. Provavelmente financiado por tia Noêmia, uma espécie de madrinha adotiva que a paparicava estimulando suas inclinações. Entrando na adolescência tornou-se um pé de valsa. Quando se punha a desfilar e rodopiar nos salões do Clube Fantoches, da Associação Atlética e do Baiano de Tênis, não sobrava para mais ninguém. Era a rainha da festa. O grande problema era como chegar ao baile. Eduardo Urpia reprimia e não autorizava que minha mãe saísse com as amigas para dançar. Também parece que não era costume na época os pais autorizarem essas liberdades. Então minha mãe recorria à companhia de meus tios e junto com eles armava estratagemas inimagináveis para sair à noite de casa. Era levada aos bailes pelos seus irmãos, protegidos pelos mais criativos pretextos.

Um desses episódios muito interessantes que ela me contou, foi a respeito de um grande baile que ocorreria na Associação. Desculpa para enganar meu avô ela logo arranjou junto com tio Edmundo que iria acompanhá-la. Mas era uma festa muito especial e faltava o vestido. Passou-se uma semana das mais mirabolantes maquinações para ver como conseguir o dinheiro de Eduardo Urpia. E nada.... não teve estratagema certo. Na manhã do dia do baile minha mãe continuava sem o vestido. Então minha avó Orminda não contou conversa. Cortou um bom pedaço do tecido da cortina da sala e providenciou confeccionar o traje. Não era um baile à fantasia, mas minha mãe paramentada de cortina, rodopiou e deu show no salão. Fez o maior sucesso. Viram com quem ela aprendeu as peripécias de mãe criativa?

Se gostava de dançar, então seu comparecimento ao carnaval era garantido. Já casada, comprava bonitas fantasias para mim e Sandra, com direito a confete, serpentina e lança-perfume. Ai, como me lembro daquele cheiro! Ai, como era bom brincar de jogar lança-perfume no outro!! Bons tempos de carnaval. Sem assaltos, sem violência, durante o dia íamos aos bailes nos clubes e à tardinha assistíamos no centro da cidade ao encantador desfile dos carros alegóricos. Era uma época em que os moradores da Avenida Sete deixavam suas casas abertas e colocavam banquinhos nas calçadas sem qualquer receio. Lembro particularmente (eu devia ter 3 para 4 anos) do dia em que assistimos ao desfile fazendo nosso ponto de parada no Edifício Sulacap. Havia um carro alegórico com espécie de efeitos especiais luminosos muito bonitos, como se fosse em cascata. Lembro ainda hoje daquela imagem.

Na nossa adolescência, já não mais frequentávamos os clubes e saíamos mascarados junto com nossa mãe atrás do trio elétrico. O trio elétrico era ainda naquela época uma inocente "fubica" atrás da qual se comprimia uma multidão sem nenhum outro propósito senão dançar e se divertir. Entre a passagem de um trio e outro, Dona Myriam vestida de careta (como se chamava naquela época), encontrava pessoas conhecidas na avenida e brincava com elas lhes dirigindo os mais inocentes e divertidos gracejos. Acho que além da dança ela tinha vocação para teatro. Tamanha era a variedade de vozes que entoava e de gestos que encenava protegida pelo anonimato da máscara. Dizia-se que o melhor careta era aquele que passava grande parte de tempo brincando com alguém sem ser reconhecido. Apesar dos visíveis e grandes olhos azuis, Dona Myriam conseguia esta proeza. Nós ríamos muito tentando imitá-la, mas nem sempre conseguíamos. Muitas vezes no meio da brincadeira éramos literalmente desmascarados. Dona Myriam era um careta imbatível! Às vezes pegava no pé dos emproados juízes do Fórum e ninguém desconfiava da sua identidade.

Lembro especialmente de um carnaval em que fomos com minha mãe a um baile que tinha um concurso de gays fantasiados. Era um baile bonito, alegre, descontraído, muito famoso na época e, se não me engano, acontecia na sede do Teatro Villa Velha. A memória falha. Dona Myriam conseguiu no Fórum os ingressos para nós de última hora e tivemos que improvisar as fantasias. Ela vestiu-se de Chaplin mascarado. Prendeu o cabelo, arranjou não sei onde um fraque, as calças e os sapatos, pegou às escondidas uma cartola e uma bengala de meu avô, maquiou-se toda para não ser reconhecida, colocou a máscara e lá fomos nós.

 Dançamos muito, brincamos com muita gente até que encontramos um ex-namorado de minha mãe que tinha a infelicidade de ter um nome de sal de fruta. Tinham namorado quando ela tinha uns quinze anos, antes de conhecer meu pai e terminaram o flerte porque ela, de brincadeira de adolescente, uma vez ao invés de chamá-lo pelo nome, chamou-o literalmente de "sal de fruta".

 Minha mãe já há um bom tempo separada e ele sozinho na festa e sem máscara. Dona Myriam queria só brincar e se divertir e tirou muita onda com o rapaz sem ser reconhecida. De vez em quando ele dizia: "ainda não identifiquei quem você é, mas conheço esses olhos". Aí ela disfarçava, rodopiava, fazia mais um novo tom de voz e ele permanecia intrigado.

 Ela dizia a ele coisas sobre o seu passado de rapaz adolescente e nele ia crescendo vertiginosamente o desejo de reconhecê-la, sem sucesso. Dona Myriam, o Chaplin mascarado, estava se divertindo muito e ele cada vez mais intrigado. Ela foi se tornando cada vez mais brincalhona, até que inadvertidamente cometeu o maldito lapso. Ele a chamou para dançar no salão e ela respondeu: "agora não, sal de fruta, estou um pouco cansada". O homem não contou conversa: "você é Myriam. A única pessoa na vida que teve uma vez o atrevimento de me chamar assim". Cometido o lapso da dança o Chaplin estava irremediavelmente desmascarado. Não lembro mais o que fez Dona Myriam com a vergonha que passou e que resposta deu a Eno. Decididamente mais uma vez o flerte estava acabado.
                                                                                               Marcia Myriam Gomes.

domingo, 14 de dezembro de 2014

14/12/2014    Cara leitora, caro leitor,

O Natal vai chegando. As compras consumistas me consomem a ponto de fugir quilômetros delas. As convenções oportunistas do comércio capitalista não me fisgam. Mesmo que fisgassem, profissional autônomo não recebe décimo terceiro salário e essa época de festas de fim de ano os pacientes debandam, fazendo longos recessos de férias. Então ainda acho mais verdadeiro e oportuno o Natal com Jesus menino numa manjedoura.

Tenho muito a celebrar e a agradecer à vida neste fim de ano. Meu filho adotivo tirou uma excelente nota na primeira etapa do concurso para professor da UFSB, a universidade de seus sonhos. Dona Myriam Urpia, minha mãe, mulher admirável por sua força criativa diante das adversidades, vai se recuperando bem das duas cirurgias a que se submeteu. Finalmente já tirou o dreno. Não sabe ainda se já retorna a Maceió porque ainda sente dores e está vulnerável para encarar a viagem.

Quero agradecer muito a Graça, sua cuidadora diurna, pela dedicação, carinho e competência que não mede sacrifícios para dispensar a Dona Myriam. A minha querida irmã Sandra e a meu cunhado Alfredo, que a receberam na sua casa desde o dia 4 de novembro, com uma inacreditável disponibilidade amorosa, jamais encontrarei palavras ou gestos para agradecer. Também sou muitíssimo grata a meu irmão Lula e a Lindaura, minha cunhada, por tudo que têm feito por minha mãe.

Eu vou sendo acalentada pelo forte desejo de estar com Dona Myriam em breve. Enquanto isso não acontece, além dos telefonemas diários que diminuem só um pouquinho a saudade, para diverti-la e me sentir presente no seu cotidiano, continuo escrevendo a série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". O episódio narrado hoje, ocorrido quando eu tinha 2 anos, provavelmente me foi contado por ela, mesmo que eu teime em pensar que me recordo daquele dia. Bom, deixemos de lero lero e vamos à história!!!

                                               PAPAI  NOEL,  PAPAI  DO  CÉU.

Segundo me contam, eu nasci chorona. Para alguns, era uma criança dengosa e chata. Fortes, não é, esses significantes? Para outros, era uma criança muito sensível, que demandava um certo cuidado especial. E para Bantu, apelido de nossa empregada que fazia as vezes de babá, eu era menina chegada a um "calundu".

Na verdade, eu nasci prematura de peso e muito doentinha. Tive duas pneumonias que quase me levaram à morte nos primeiros meses de vida e não me alimentava bem. Tinha Lió, minha madrinha que me paparicava muito e também de certa forma recebi atenções especiais de meu pai, que era médico. Minha mãe me enchia de cuidados para eu não adoecer.

 Longe de mim fazer interpretações de colorido psicanalítico sobre o fato de eu ter sido uma criança que chorava muito, que estranhava num primeiro momento situações novas, um tanto assustadiça. Psicanálise feita com rigor, escapa de querer adivinhar o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha. De mais a mais, aqui sou apenas uma "escrevinhadora". Portanto deixo as construções fantasmáticas a respeito das razões de eu ter sido assim ou assado, para outro espaço mais apropriado.

Estávamos em 1955. Morávamos com minha avó paterna e mais a família de tio Zezito, na Rua Pedro Júlio Barbuda no bairro de Nazaré. Não preciso dizer porque vocês já sabem, mas digo que éramos pobres. Não me lembro se quando eu contava 2 anos meu pai já estava formado em medicina. Mas com certeza ainda precisava recorrer a seus talentos de fotógrafo para manter a família.

Havia chegado o mês de dezembro e lá em casa sempre se celebrava o Natal. A árvore já estava armada com todos os presentes e saíamos à noite para ver a iluminação da Avenida Sete e da Rua Chile, num tempo feliz onde se consumia muito menos e não havia ainda a praga dos shoppings centers.

 Numa dessas idas à rua, provavelmente sem a minha presença, é que meus pais tiveram a ideia de comprar o insólito objeto. Era um grande cartaz colorido com uma vistosa figura de rosto de Papai Noel. Talvez pensassem com aquela figura em reforçar para mim o conceito sobre o bom velhinho. Segundo me contam, àquela altura, eu já era capaz de responder "Papai Noel" quando me perguntavam quem viria entregar na noite de Natal os presentes que estavam na árvore.

O cartaz era muito bonito e vistoso. Um Papai Noel com gordas bochechas bem rosadas e olhos azuis muito vivazes. Para fazerem surpresa, enquanto eu dormia colocaram a figura do bom velhinho na parede de meu quarto. Não sei o que pensavam os adultos. E a gente lá sabe, o que pensam os adultos? Provavelmente pensavam que ao acordar eu seria capaz de reconhecer o Papai Noel e ficar feliz de ver sua figura, associando-a com todos os presentes que me traria no Natal.

Ledo engano. Eu era mesmo chegada a um "calundu". Quando acordei e bati os olhos na figura, abri o maior berreiro. Entrei em pânico. Vieram Lió, meu pai e minha mãe me consolar explicando que aquele era o bom velhinho do Natal que nos entregaria os presentes. Eu chorava mais ainda. Fiz birra, esperneei. E dizia: "não, não, não quero Papai Noel". Todas as técnicas de persuasão foram usadas sem sucesso. Enquanto  o cartaz permaneceu na parede eu chorava desconsoladamente e até vomitei.

Depois do transtorno gástrico, resolveram tirar o cartaz da parede, rasgar e jogar no lixo. Ainda assim eu não aquietei. Segundo minha mãe me contou, somente quando ela ficou sozinha comigo, me pôs no colo e me acariciando falou baixinho que Papai Noel era na verdade um mensageiro de Papai do Céu, eu comecei a me acalmar e parei de chorar.

Quando Dona Myriam ler essa crônica e comentar comigo, sendo ela uma religiosa que tomou o Hábito de Carmelita, provavelmente fará uma interpretação religiosa do acontecido. Poderá até supor que eu já tivesse um conceito e bom conceito de Papai do Céu. Eu tenho cá minhas dúvidas. Acho que para uma criança de 2 anos, ainda tanto faz Papai Noel ou Papai do Céu. Ainda mais naquele tempo em que meus pais não eram religiosos. Posso estar enganada, mas penso que o segredo do meu apaziguamento está na fala baixinha de Dona Myriam me dando colo, independente do que ela estivesse me dizendo. A voz de Dona Myriam sempre foi tão musical !!!

Acho que ainda hoje quando tenho meus medos dessas estranhas figuras de "Papai Noel" que assustam o imaginário dos adultos, como a violência contra os socialmente desfavorecidos, contra os que padecem de sofrimento psíquico, contra os negros, os indígenas, os deficientes, os idosos, as mulheres, as crianças, ou mesmo quando sou assombrada por meus fantasmas existenciais, corro para o telefone para ouvir a voz musical de Dona Myriam. E fica tudo certo, não importa o que ela diga. O que importa é a voz.
                                                                                                            Marcia Myriam Gomes. 

domingo, 7 de dezembro de 2014

07/12/14  Cara leitora, caro leitor,

Aqui vou dando prosseguimento à série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", com a principal finalidade de entretê-la no seu processo de recuperação da cirurgia que, felizmente, também graças ao apoio de vocês, vai de vento em popa. Dona Myriam está mais alegre e animada. Não sei se Sandra, Alfredo ou Daniela. Alguém muito gentilmente imprimiu o "Blá, blá, blá..." de domingo passado para ela ler. Leu e se divertiu muito recordando-se das histórias de Taperoá.

 Passado o momento mais traumático que lhe atrapalhou um pouco a memória, Dona Myriam está muito lúcida e inclusive se lembrou muito vivamente de episódios vividos em Taperoá dos quais eu não me lembrava. Lembrou por exemplo, de um fora muito indiscreto e inconveniente que eu com 4 anos, dei com "Seu" Cazuza, chamando-o de fantasma, numa noite de festa em nossa casa. Ele, para a minha cabeça de criança, era um senhor muito esquisito, que além de usar um sapato branco, coisa inusitada para a época, por ter um defeito nas cordas vocais, falava fino e grosso.

Dona Myriam todo dia me pergunta quando será o aniversário de Iasmin, sua bisnetinha que mora em Aracaju. Está entusiasmada com a perspectiva do evento que ocorrerá nos dias próximos. Se tudo der certo tirará o dreno da cirurgia na próxima terça-feira. Está melhor adaptada à presença das cuidadoras, ciente de que este é um momento passageiro e que em muito breve ela poderá estar de volta a seu quarto em Maceió, fazendo as arrumações de que tanto gosta.

 Sandra, Alfredo e Daniela, cada um fazendo uso das melhores habilidades que tem, continuam cuidando dela com desvelo. Lula, meu irmão e Lindaura, minha cunhada, fizeram num primeiro momento uma espécie de ponte Maceió-Aracaju, para prestar assistência a minha mãe. Nos falamos pouco para Dona Myriam não se cansar, mas diariamente. Eu fico aqui torcendo para que possa chegar um momento de abraçá-la de novo com todo meu amor.

Esperando que Sandra ou Alfredo ou Daniela possam imprimir o texto para Dona Myriam ler, conto hoje mais um episódio que dará a vocês o prazer e alegria de se defrontarem com a generosidade e a criatividade desta mulher maravilhosa que eu tenho o privilégio de ter como mãe.
                                                      BOA  INTENÇÃO  DE  MÃE.

Estávamos em 68. A dureza da ditadura militar e eu na militância de esquerda. Anos de chumbo. Dona Myriam trabalhava arduamente para sustentar os quatro filhos e vivia muito preocupada com a possibilidade de eu ser presa e torturada pela violenta repressão. Ela era secretária do setor de urologia do Hospital das Clínicas, chefiado pelo muito simpático e doce velhinho de olhos azuis, Doutor Jorge Valente.

 Salário curto o de minha mãe. Mas muito carinho e elogio a seu desempenho por parte de seu chefe. De vez em quando minha mãe nos levava a visitar o setor, para prestarmos solidariedade principalmente aos idosos e às crianças que lá estavam internados. Assim aprendíamos que viver com dificuldades financeiras não era a coisa pior do mundo, e ao invés de olharmos para nosso próprio umbigo, olhávamos para o outro que sofre, com generosidade e respeito. Dona Myriam era a organizadora da festa de Natal do setor de urologia e arrecadava fundos no hospital inteiro para presentear os pacientes.

Nesses dias em que estive muito próxima dela acompanhando sua cirurgia em Aracaju, muito emocionada, ela me confidenciou o quanto de saudade e gratidão sentia por Solange Barbosa, minha tia, sua irmã bem mais velha e queridíssima, que lhe conseguiu aquele emprego com o bondoso Doutor Jorge Valente. Trabalhando no Hospital das Clínicas Dona Myriam fez muitos amigos, entre eles o muito afetuoso e na época residente de medicina Antônio Vinhais. Vinhais frequentava muito a nossa casa para nos visitar e comer o vatapá primorosamente preparado por minha mãe.

Morávamos no bairro da Graça na casa de meus avós maternos. Tempo em que precisávamos dar nó em pingo d'água para elaborarmos a aguda contradição de vivermos num casarão de família tradicional e passarmos pelas mais duras privações materiais. Pois em junho de 68 eu estava fazendo 15 anos. Nos meus hábitos nada burgueses de militante, eu não cogitava de fazer uma festa de aniversário e mesmo que cogitasse, não tínhamos recursos para isso. Então a data do meu aniversário que caiu num dia de semana, passou em brancas nuvens. Talvez um modesto bolinho para nós cinco e acabou-se a conversa.

No sábado seguinte a meu aniversário, logo de manhã minha mãe me pede para passar num armarinho da Avenida Sete para pegar um embrulho de encomenda. Não me disse o que era, nem eu perguntei. Em seguida ela me passou o telefone para eu falar com uma prima paterna que me convidou para passar o sábado inteiro na sua casa. Assim foi feito. Peguei a encomenda de minha mãe na Avenida Sete e passei o resto do dia na casa de minha prima, só retornando à minha casa na Graça lá pelas oito da noite.

Chegando no fim de linha do Bairro da Graça, saí do ônibus e desci a Euclides da Cunha para voltar para casa. Ao chegar mais perto, vi que algo fora da rotina se passava. Dona Myriam e um grupo grande de pessoas me esperavam na varanda, acenando. Subi as escadas muito curiosa, talvez até um pouco assustada. Mal deu para eu reconhecer Vinhais e alguns colegas meus do Manoel Devoto, e todos começaram a cantar "Parabéns".

 Eu, rubra de vergonha, agradeci os cumprimentos compreendendo que havia ali uma festa organizada em homenagem a meu aniversário. Então minha mãe toda feliz me disse que só faltava eu vestir o vestido. Perguntei: "que vestido?" E ela respondeu: "Esse que você traz na mão". A moral da história era que o embrulho que Dona Myriam me mandou pegar pela manhã no armarinho, era meu vestido de festa de aniversário que ela havia mandado confeccionar. Como esquecer dele? Cor de rosa com bolinhas brancas, de mangas compridas, saia bem rodada, punhos e gola brancos com biquinho de renda. Eu muito comovida e ainda um pouco envergonhada, entrei para por o vestido e me arrumar à altura da ocasião.

Enquanto me arrumava dava pulos de alegria e tremia de emoção. Compreendi que o telefonema da prima era parte da armação para me manter fora de casa enquanto se faziam os preparativos.  Bem de acordo com o mês de junho, era uma festa de São João. A varanda estava toda enfeitada de bandeirolas. No quintal havia uma fogueira assando milho e batata doce. Além das comidas todas típicas de São João havia também sarapatel primorosamente preparado por Dona Myriam. Minha mãe havia armado uma das dela e eu nem de longe desconfiara. Depois fiquei sabendo que ela vinha há muitos meses juntando tostões para fazer a festa. Dona Myriam (ai, as lágrimas), é assim.

Mas a maior surpresa ainda estava por vir. Alguns dias antes eu havia confidenciado a minha mãe que no Manoel Devoto estava sendo paquerada por um rapaz muito bonito de nome Vanilo. Naquele momento eu estava sofrendo muito por ter sido descartada por um namorado por quem era apaixonada. Quando eu entro na sala onde tocava música dançante, quem estava lá? Vanilo em pessoa que logo me tirou para dançar. Dançamos muito e começamos a namorar naquela noite.

 O namoro foi um excelente remédio para minha dor de cotovelo mas durou pouco. Vanilo era bonito mas na intimidade não fazia o meu tipo. Não era politizado, não gostava de ler, e envaidecido com sua beleza esqueceu-se de tornar-se sensível. Quando pus fim ao namoro, toda vez que no colégio eu passava por ele, escutava o assovio daquela famosa canção que diz assim: "Esse amor que eu não esqueço e que teve seu começo numa festa de São João, morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar, sem violão...." e assim por diante.

 Vanilo me esquecer, foi difícil. Agora estou recordando que no ano passado encontrei-o no prédio onde tenho consultório. Acenou para mim, mas não o reconheci e ele se identificou. Continua um senhor bonito. Será que com o passar dos anos tornou-se mais sensível? Naquele encontro não deu para saber. Conversei com ele com um certo desinteresse e muito apressada. Tinha um paciente e estava bem em cima da hora. Vanilo foi fácil de esquecer. Mas o que já com 61 anos, a gente nunca esquece, é boa intenção de mãe amorosa.

                                                                         Marcia Myriam Gomes.