domingo, 7 de dezembro de 2014

07/12/14  Cara leitora, caro leitor,

Aqui vou dando prosseguimento à série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", com a principal finalidade de entretê-la no seu processo de recuperação da cirurgia que, felizmente, também graças ao apoio de vocês, vai de vento em popa. Dona Myriam está mais alegre e animada. Não sei se Sandra, Alfredo ou Daniela. Alguém muito gentilmente imprimiu o "Blá, blá, blá..." de domingo passado para ela ler. Leu e se divertiu muito recordando-se das histórias de Taperoá.

 Passado o momento mais traumático que lhe atrapalhou um pouco a memória, Dona Myriam está muito lúcida e inclusive se lembrou muito vivamente de episódios vividos em Taperoá dos quais eu não me lembrava. Lembrou por exemplo, de um fora muito indiscreto e inconveniente que eu com 4 anos, dei com "Seu" Cazuza, chamando-o de fantasma, numa noite de festa em nossa casa. Ele, para a minha cabeça de criança, era um senhor muito esquisito, que além de usar um sapato branco, coisa inusitada para a época, por ter um defeito nas cordas vocais, falava fino e grosso.

Dona Myriam todo dia me pergunta quando será o aniversário de Iasmin, sua bisnetinha que mora em Aracaju. Está entusiasmada com a perspectiva do evento que ocorrerá nos dias próximos. Se tudo der certo tirará o dreno da cirurgia na próxima terça-feira. Está melhor adaptada à presença das cuidadoras, ciente de que este é um momento passageiro e que em muito breve ela poderá estar de volta a seu quarto em Maceió, fazendo as arrumações de que tanto gosta.

 Sandra, Alfredo e Daniela, cada um fazendo uso das melhores habilidades que tem, continuam cuidando dela com desvelo. Lula, meu irmão e Lindaura, minha cunhada, fizeram num primeiro momento uma espécie de ponte Maceió-Aracaju, para prestar assistência a minha mãe. Nos falamos pouco para Dona Myriam não se cansar, mas diariamente. Eu fico aqui torcendo para que possa chegar um momento de abraçá-la de novo com todo meu amor.

Esperando que Sandra ou Alfredo ou Daniela possam imprimir o texto para Dona Myriam ler, conto hoje mais um episódio que dará a vocês o prazer e alegria de se defrontarem com a generosidade e a criatividade desta mulher maravilhosa que eu tenho o privilégio de ter como mãe.
                                                      BOA  INTENÇÃO  DE  MÃE.

Estávamos em 68. A dureza da ditadura militar e eu na militância de esquerda. Anos de chumbo. Dona Myriam trabalhava arduamente para sustentar os quatro filhos e vivia muito preocupada com a possibilidade de eu ser presa e torturada pela violenta repressão. Ela era secretária do setor de urologia do Hospital das Clínicas, chefiado pelo muito simpático e doce velhinho de olhos azuis, Doutor Jorge Valente.

 Salário curto o de minha mãe. Mas muito carinho e elogio a seu desempenho por parte de seu chefe. De vez em quando minha mãe nos levava a visitar o setor, para prestarmos solidariedade principalmente aos idosos e às crianças que lá estavam internados. Assim aprendíamos que viver com dificuldades financeiras não era a coisa pior do mundo, e ao invés de olharmos para nosso próprio umbigo, olhávamos para o outro que sofre, com generosidade e respeito. Dona Myriam era a organizadora da festa de Natal do setor de urologia e arrecadava fundos no hospital inteiro para presentear os pacientes.

Nesses dias em que estive muito próxima dela acompanhando sua cirurgia em Aracaju, muito emocionada, ela me confidenciou o quanto de saudade e gratidão sentia por Solange Barbosa, minha tia, sua irmã bem mais velha e queridíssima, que lhe conseguiu aquele emprego com o bondoso Doutor Jorge Valente. Trabalhando no Hospital das Clínicas Dona Myriam fez muitos amigos, entre eles o muito afetuoso e na época residente de medicina Antônio Vinhais. Vinhais frequentava muito a nossa casa para nos visitar e comer o vatapá primorosamente preparado por minha mãe.

Morávamos no bairro da Graça na casa de meus avós maternos. Tempo em que precisávamos dar nó em pingo d'água para elaborarmos a aguda contradição de vivermos num casarão de família tradicional e passarmos pelas mais duras privações materiais. Pois em junho de 68 eu estava fazendo 15 anos. Nos meus hábitos nada burgueses de militante, eu não cogitava de fazer uma festa de aniversário e mesmo que cogitasse, não tínhamos recursos para isso. Então a data do meu aniversário que caiu num dia de semana, passou em brancas nuvens. Talvez um modesto bolinho para nós cinco e acabou-se a conversa.

No sábado seguinte a meu aniversário, logo de manhã minha mãe me pede para passar num armarinho da Avenida Sete para pegar um embrulho de encomenda. Não me disse o que era, nem eu perguntei. Em seguida ela me passou o telefone para eu falar com uma prima paterna que me convidou para passar o sábado inteiro na sua casa. Assim foi feito. Peguei a encomenda de minha mãe na Avenida Sete e passei o resto do dia na casa de minha prima, só retornando à minha casa na Graça lá pelas oito da noite.

Chegando no fim de linha do Bairro da Graça, saí do ônibus e desci a Euclides da Cunha para voltar para casa. Ao chegar mais perto, vi que algo fora da rotina se passava. Dona Myriam e um grupo grande de pessoas me esperavam na varanda, acenando. Subi as escadas muito curiosa, talvez até um pouco assustada. Mal deu para eu reconhecer Vinhais e alguns colegas meus do Manoel Devoto, e todos começaram a cantar "Parabéns".

 Eu, rubra de vergonha, agradeci os cumprimentos compreendendo que havia ali uma festa organizada em homenagem a meu aniversário. Então minha mãe toda feliz me disse que só faltava eu vestir o vestido. Perguntei: "que vestido?" E ela respondeu: "Esse que você traz na mão". A moral da história era que o embrulho que Dona Myriam me mandou pegar pela manhã no armarinho, era meu vestido de festa de aniversário que ela havia mandado confeccionar. Como esquecer dele? Cor de rosa com bolinhas brancas, de mangas compridas, saia bem rodada, punhos e gola brancos com biquinho de renda. Eu muito comovida e ainda um pouco envergonhada, entrei para por o vestido e me arrumar à altura da ocasião.

Enquanto me arrumava dava pulos de alegria e tremia de emoção. Compreendi que o telefonema da prima era parte da armação para me manter fora de casa enquanto se faziam os preparativos.  Bem de acordo com o mês de junho, era uma festa de São João. A varanda estava toda enfeitada de bandeirolas. No quintal havia uma fogueira assando milho e batata doce. Além das comidas todas típicas de São João havia também sarapatel primorosamente preparado por Dona Myriam. Minha mãe havia armado uma das dela e eu nem de longe desconfiara. Depois fiquei sabendo que ela vinha há muitos meses juntando tostões para fazer a festa. Dona Myriam (ai, as lágrimas), é assim.

Mas a maior surpresa ainda estava por vir. Alguns dias antes eu havia confidenciado a minha mãe que no Manoel Devoto estava sendo paquerada por um rapaz muito bonito de nome Vanilo. Naquele momento eu estava sofrendo muito por ter sido descartada por um namorado por quem era apaixonada. Quando eu entro na sala onde tocava música dançante, quem estava lá? Vanilo em pessoa que logo me tirou para dançar. Dançamos muito e começamos a namorar naquela noite.

 O namoro foi um excelente remédio para minha dor de cotovelo mas durou pouco. Vanilo era bonito mas na intimidade não fazia o meu tipo. Não era politizado, não gostava de ler, e envaidecido com sua beleza esqueceu-se de tornar-se sensível. Quando pus fim ao namoro, toda vez que no colégio eu passava por ele, escutava o assovio daquela famosa canção que diz assim: "Esse amor que eu não esqueço e que teve seu começo numa festa de São João, morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar, sem violão...." e assim por diante.

 Vanilo me esquecer, foi difícil. Agora estou recordando que no ano passado encontrei-o no prédio onde tenho consultório. Acenou para mim, mas não o reconheci e ele se identificou. Continua um senhor bonito. Será que com o passar dos anos tornou-se mais sensível? Naquele encontro não deu para saber. Conversei com ele com um certo desinteresse e muito apressada. Tinha um paciente e estava bem em cima da hora. Vanilo foi fácil de esquecer. Mas o que já com 61 anos, a gente nunca esquece, é boa intenção de mãe amorosa.

                                                                         Marcia Myriam Gomes.
                                                                

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