domingo, 31 de agosto de 2014

31/08/14                                      REENCONTRO.

Década de setenta. 1971 e 1972. Anos negros da ditadura militar. O que acalentava os sonhos daqueles jovens de ingressarem na Ufba e se tornarem psicólogos? A universidade era alvo da mais dura repressão. O movimento estudantil atuava tendo que recorrer a estratégias para se fazer presente na luta contra a ditadura, ao tempo em que cuidava de preservar a segurança de seus quadros. O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga em tempos tão sombrios?

A minha turma, que ingressou em 72, já o fez sob a égide de uma disputa que tínhamos que travar com os próprios colegas. Depois de aprovados no vestibular, para permanecermos no curso, tínhamos que nos submeter a uma outra seleção, o chamado "provão". O quinto ano de Psicologia, que nos autorizaria como psicólogos, não estava ainda regulamentado.

Acho que não é à toa que na literatura do materialismo dialético se diz que a contradição é o motor da transformação. Entrávamos no curso de Psicologia confrontados com as mais duras contradições impostas pelo regime militar, e ao invés de escolhermos competir com o colega que sentava ao nosso lado, junto com o Diretório Acadêmico lutamos e derrubamos o "provão". Nos engajamos na luta pela regulamentação do quinto ano e nos tornamos uma turma unida e solidária. Alguns de nós se tornaram ativos representantes do Diretório, outros escreviam no jornal "Reflexo" e vivemos com perplexidade e angústia a necessidade de nosso colega Acácio se refugiar na clandestinidade. Há alguns anos atrás soube por amigos do falecimento de Acácio por motivo de doença. Creio que jamais ele pode realizar o sonho de se tornar psicólogo.

O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga? Era um sonho antigo. Desde a adolescência comecei a me interessar pelas questões da subjetividade e do fazer clínico. A singularidade do outro me instigava e li autores como Balzac, Flaubert e Machado de Assis pelo quanto sabiam construir e descrever o perfil psicológico de seus personagens, ambientado em determinado contexto sócio cultural. Gostava de observar as pessoas e me tornei uma boa ouvinte das suas questões existenciais, seus dramas, seus dilemas, suas histórias de vida. Entrei no curso querendo ser psicoterapeuta e acreditando ter o psicólogo uma função  importante como agente de transformação, numa sociedade marcada pela desigualdade e pelo autoritarismo.

Ainda que sob alguns aspectos  não me furtasse a exercer uma certa liderança, eu era uma estudante tímida e muito aplicada. De modo que logo me refugiei num pequeno grupo de colegas muito estudiosos e politizados. Creio que a interação com a maioria dos colegas da classe ficava prejudicada pela timidez mal disfarçada por uma certa ascendência intelectual. No segundo ano de faculdade eu e meu grupo de amigos no qual eu vivia fechada, nos tornamos entusiastas do behaviorismo e muito devemos da nossa formação em Análise do Comportamento às professoras Anamélia e Eglê. De ambas nos tornamos monitores.

Já faz tanto tempo que não tenho certeza. Mas suponho que meu relacionamento com a grande maioria dos colegas se dava pela via de exercer a função de monitora. Pensando hoje, sinto muita falta de ter me relacionado com meus colegas mais de igual para igual, e uma enorme vergonha do preconceito com que eu lidava com professores psicanalistas e com colegas simpatizantes da psicanálise. Foram cinco anos que se eu pudesse retroceder no tempo muita coisa eu faria diferente. Sinto como se, fechada em meu grupo, tenha me privado de conhecer mais de perto outros colegas, de vislumbrar outras alternativas. Fico triste quando olho a foto da formatura em 76 e não me recordo do nome e mal reconheço alguns daqueles que durante cinco anos sentaram nos bancos escolares ao meu lado.

Na formatura, eu ainda estava muito tomada pelo luto de meu pai, mas tenho a bonita lembrança de mim no palco declamando a minha frase do jogral que toda a turma encenou. Foi um jogral de autoria da colega Ana Cecília que escreve muito bem, se não me engano, abordando a questão da função social do psicólogo. Lembro também que no nosso convite de formatura havia um poema "engajado" do colega Helson Ramos.

 Éramos jovens interpelados pelas questões que cercavam os tempos sombrios em que vivíamos, e na nossa maioria nos sentíamos convocados a lutar por uma sociedade mais justa e isso, como causa, nos movia como pessoas engajadas e responsáveis pela construção de um futuro. É claro que havia também entre nós aqueles "alienados" , acomodados aos fáceis confortos das suas vidinhas burguesas. Mas eram poucos. Tenho a clara lembrança de colegas de classe média alta ou mesmo alta escondendo em suas casas colegas perseguidos pela repressão, participando de assembléias e manifestações, e colaborando financeiramente para a luta contra a ditadura. 

Passada a formatura, a não ser do meu grupo de amigos, me afastei completamente de meus colegas. Com o grupo de amigos montei consultório para fazer Terapia Comportamental e lecionei alguns anos no curso de Psicologia da Ufba. No consultório, ainda muito politizados, prestamos  serviços a alguns militantes do PCdoB, atendendo-os em psicoterapia.

Na década de 80 mudei-me para São Paulo para fazer mestrado na USP, me desliguei da Ufba, não me casei oficialmente nem tive filhos. Voltei para Salvador na década de 90 e exerci, por vários anos, com muito sucesso a função de Terapeuta Cognitivo Comportamental até que em 2004, passando por um rico processo de análise, fiz, felizmente, minha passagem para a psicanálise e ocupo hoje com muito orgulho o lugar de psicanalista no meu consultório. Diante de tantas mudanças e reviravoltas, onde estavam os meus colegas de faculdade, o que andavam fazendo, o que fizeram de suas vidas? Eu os havia perdido de vista, como se nunca houvesse participado daquela turma.

Quando a gente se submete a um processo de análise, muitas coisas são ressignificadas. A gente, implicada no processo, se interroga sobre o destino que deu à própria vida, revê as escolhas que fez, arca com o ganho do que considera acertos, mas não deixa de pagar o preço pelos equívocos que cometeu, e corre atrás de se reinventar, fazer diferente.

Foi com esse espírito de querer me reinventar, que aceitei em abril deste ano o convite de uma colega que encontrei por acaso, para visitar um grupo de colegas da faculdade que se reúne uma vez por mês. Fui muito bem recebida no grupo. Senti prazer em rever as pessoas. Gostei das recordações tipo "hora da saudade" nas quais nos engajamos. E, de repente, muito espontaneamente, surgiu a ideia de 38 anos depois, fazermos um encontro das turmas de Psicologia que ingressaram em 71 e 72. Me deu um frio na barriga de medo mas achei a proposta bem interessante. O medo, acho, é efeito da timidez. Acho que anos de análise não curam timidez. Fico muito desajeitada em eventos sociais, particularmente em ambientes em que não me sinto pertencer. Como já disse, pelo meu fechamento e pelos meus preconceitos, é como não me sentisse pertencer àquela turma.

Diante da proposta senti-me dividida. Contudo o desejo de ver meus colegas, talvez poder abraçá-los como essa nova Marcia que sou, me fez embarcar no projeto. Trocaram-se E-mails e telefones, muitos colegas queridos e generosos apostaram na realização do evento que vai acontecer em 1 de novembro. A troca de mensagens para implementar a realização vai me dando conta de que somos uma turma carinhosa, cooperativa e com muita coisa pra compartilhar. Pode ser que na hora da festa me dê uma "caruara" e eu fique recolhida num canto. Mas o desejo agora é de rever aquelas pessoas das quais estive tão distante.

Fico impressionada com o número de pessoas que se disponibilizam para arcar com as tarefas de realização da festa. Alguns mais à frente, outros, nem tanto, mas todo mundo com desejo. Me emociona tanto esse impulso coletivo de reencontro, que acho que vou mandar esta crônica para toda a lista de contatos. Vou mandar a crônica para que todos saibam quão importante esse movimento de resgate é pra mim. Vai que na hora me dá a "caruara", então já me garanto contando na crônica.

Acho que foi minha a ideia de convidar aqueles que foram nossos professores. Agora que começo a envelhecer e tento me tornar mais humilde, sou grata a todos eles. Psicanalistas, behavioristas, pertencentes a quaisquer correntes teóricas, deram uma importante contribuição para nossa formação e uns mais, outros menos, estiveram todos juntos na jornada de fazer de nós os profissionais que somos.

 Não sei como será o encontro. Não sei no que se transformaram aquelas pessoas 38 anos depois. O que importa é que passamos 5 anos da nossa juventude convivendo diariamente juntos. Nos mais árduos anos da feroz ditadura. Éramos quase adolescentes. Quantas dúvidas, quantas inquietações, quantos projetos não tomavam cada um de nós? Dou-me conta de que somos hoje quase todos sexagenários. Muitos já perderam seus pais, ou são seus cuidadores. Muitos devem estar cheios de netos.Por quantas mudanças profissionais e pessoais não passamos? Quantos ganhos, quantas perdas, sonhos que se perderam, quimeras construídas, casamentos feitos e desfeitos?

 Podemos estar todos muito diferentes inclusive fisicamente. Em alguns pode ser que a pele não tenha mais o mesmo viço. Alguns podem estar acometidos dos achaques da PVC (porra da velhice chegando) ou da PVI (porra da velhice instalada). Talvez, como eu que não sou vaidosa, alguns prefiram mostrar seus cabelos grisalhos. Outros não. Fizeram plástica, lipoaspiração e fazem muito bem em malhar na academia. Não importa. Podemos, se quisermos, falar nesse encontro sobre tudo isso, até (por que não?) achando graça. Um senso de humor ancorado na ternura. Uma colega muito divertida, na troca de E-mails de preparação do encontro, sugeriu que usássemos crachás para sermos reconhecidos. De repente a ideia pega.

Acho que a riqueza do encontro vai estar em também nos reconhecermos nas nossas diferenças, respeitando a trajetória que foi possível para cada um, que cada um trilhou. Que possamos nos escutar com interesse e alegria. Somos testemunhas de uma época. A partilha de anos da juventude, para uns mais, para outros, menos, é um elo de ligação que transcende a passagem do tempo e todas as diferenças. Vamos então nos reconhecer em 1 de novembro. Vamos todos celebrar esse reencontro.
                                                                         Marcia Gomes.

31/08/14                                      REENCONTRO.

Década de setenta. 1971 e 1972. Anos negros da ditadura militar. O que acalentava os sonhos daqueles jovens de ingressarem na Ufba e se tornarem psicólogos? A universidade era alvo da mais dura repressão. O movimento estudantil atuava tendo que recorrer a estratégias para se fazer presente na luta contra a ditadura, ao tempo em que cuidava de preservar a segurança de seus quadros. O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga em tempos tão sombrios?

A minha turma, que ingressou em 72, já o fez sob a égide de uma disputa que tínhamos que travar com os próprios colegas. Depois de aprovados no vestibular, para permanecermos no curso, tínhamos que nos submeter a uma outra seleção, o chamado "provão". O quinto ano de Psicologia, que nos autorizaria como psicólogos, não estava ainda regulamentado.

Acho que não é à toa que na literatura do materialismo dialético se diz que a contradição é o motor da transformação. Entrávamos no curso de Psicologia confrontados com as mais duras contradições impostas pelo regime militar, e ao invés de escolhermos competir com o colega que sentava ao nosso lado, junto com o Diretório Acadêmico lutamos e derrubamos o "provão". Nos engajamos na luta pela regulamentação do quinto ano e nos tornamos uma turma unida e solidária. Alguns de nós se tornaram ativos representantes do Diretório, outros escreviam no jornal "Reflexo" e vivemos com perplexidade e angústia a necessidade de nosso colega Acácio se refugiar na clandestinidade. Há alguns anos atrás soube por amigos do falecimento de Acácio por motivo de doença. Creio que jamais ele pode realizar o sonho de se tornar psicólogo.

O que acalentava meu sonho de me tornar psicóloga? Era um sonho antigo. Desde a adolescência comecei a me interessar pelas questões da subjetividade e do fazer clínico. A singularidade do outro me instigava e li autores como Balzac, Flaubert e Machado de Assis pelo quanto sabiam construir e descrever o perfil psicológico de seus personagens, ambientado em determinado contexto sócio cultural. Gostava de observar as pessoas e me tornei uma boa ouvinte das suas questões existenciais, seus dramas, seus dilemas, suas histórias de vida. Entrei no curso querendo ser psicoterapeuta e acreditando ter o psicólogo uma função  importante como agente de transformação, numa sociedade marcada pela desigualdade e pelo autoritarismo.

Ainda que sob alguns aspectos  não me furtasse a exercer uma certa liderança, eu era uma estudante tímida e muito aplicada. De modo que logo me refugiei num pequeno grupo de colegas muito estudiosos e politizados. Creio que a interação com a maioria dos colegas da classe ficava prejudicada pela timidez mal disfarçada por uma certa ascendência intelectual. No segundo ano de faculdade eu e meu grupo de amigos no qual eu vivia fechada, nos tornamos entusiastas do behaviorismo e muito devemos da nossa formação em Análise do Comportamento às professoras Anamélia e Eglê. De ambas nos tornamos monitores.

Já faz tanto tempo que não tenho certeza. Mas suponho que meu relacionamento com a grande maioria dos colegas se dava pela via de exercer a função de monitora. Pensando hoje, sinto muita falta de ter me relacionado com meus colegas mais de igual para igual, e uma enorme vergonha do preconceito com que eu lidava com professores psicanalistas e com colegas simpatizantes da psicanálise. Foram cinco anos que se eu pudesse retroceder no tempo muita coisa eu faria diferente. Sinto como se, fechada em meu grupo, tenha me privado de conhecer mais de perto outros colegas, de vislumbrar outras alternativas. Fico triste quando olho a foto da formatura em 76 e não me recordo do nome e mal reconheço alguns daqueles que durante cinco anos sentaram nos bancos escolares ao meu lado.

Na formatura, eu ainda estava muito tomada pelo luto de meu pai, mas tenho a bonita lembrança de mim no palco declamando a minha frase do jogral que toda a turma encenou. Foi um jogral de autoria da colega Ana Cecília que escreve muito bem, se não me engano, abordando a questão da função social do psicólogo. Lembro também que no nosso convite de formatura havia um poema "engajado" do colega Helson Ramos.

 Éramos jovens interpelados pelas questões que cercavam os tempos sombrios em que vivíamos, e na nossa maioria nos sentíamos convocados a lutar por uma sociedade mais justa e isso, como causa, nos movia como pessoas engajadas e responsáveis pela construção de um futuro. É claro que havia também entre nós aqueles "alienados" , acomodados aos fáceis confortos das suas vidinhas burguesas. Mas eram poucos. Tenho a clara lembrança de colegas de classe média alta ou mesmo alta escondendo em suas casas colegas perseguidos pela repressão, participando de assembléias e manifestações, e colaborando financeiramente para a luta contra a ditadura. 

Passada a formatura, a não ser do meu grupo de amigos, me afastei completamente de meus colegas. Com o grupo de amigos montei consultório para fazer Terapia Comportamental e lecionei alguns anos no curso de Psicologia da Ufba. No consultório, ainda muito politizados, prestamos  serviços a alguns militantes do PCdoB, atendendo-os em psicoterapia.

Na década de 80 mudei-me para São Paulo para fazer mestrado na USP, me desliguei da Ufba, não me casei oficialmente nem tive filhos. Voltei para Salvador na década de 90 e exerci, por vários anos, com muito sucesso a função de Terapeuta Cognitivo Comportamental até que em 2004, passando por um rico processo de análise, fiz, felizmente, minha passagem para a psicanálise e ocupo hoje com muito orgulho o lugar de psicanalista no meu consultório. Diante de tantas mudanças e reviravoltas, onde estavam os meus colegas de faculdade, o que andavam fazendo, o que fizeram de suas vidas? Eu os havia perdido de vista, como se nunca houvesse participado daquela turma.

Quando a gente se submete a um processo de análise, muitas coisas são ressignificadas. A gente, implicada no processo, se interroga sobre o destino que deu à própria vida, revê as escolhas que fez, arca com o ganho do que considera acertos, mas não deixa de pagar o preço pelos equívocos que cometeu, e corre atrás de se reinventar, fazer diferente.

Foi com esse espírito de querer me reinventar, que aceitei em abril deste ano o convite de uma colega que encontrei por acaso, para visitar um grupo de colegas da faculdade que se reúne uma vez por mês. Fui muito bem recebida no grupo. Senti prazer em rever as pessoas. Gostei das recordações tipo "hora da saudade" nas quais nos engajamos. E, de repente, muito espontaneamente, surgiu a ideia de 38 anos depois, fazermos um encontro das turmas de Psicologia que ingressaram em 71 e 72. Me deu um frio na barriga de medo mas achei a proposta bem interessante. O medo, acho, é efeito da timidez. Acho que anos de análise não curam timidez. Fico muito desajeitada em eventos sociais, particularmente em ambientes em que não me sinto pertencer. Como já disse, pelo meu fechamento e pelos meus preconceitos, é como não me sentisse pertencer àquela turma.

Diante da proposta senti-me dividida. Contudo o desejo de ver meus colegas, talvez poder abraçá-los como essa nova Marcia que sou, me fez embarcar no projeto. Trocaram-se E-mails e telefones, muitos colegas queridos e generosos apostaram na realização do evento que vai acontecer em 1 de novembro. A troca de mensagens para implementar a realização vai me dando conta de que somos uma turma carinhosa, cooperativa e com muita coisa pra compartilhar. Pode ser que na hora da festa me dê uma "caruara" e eu fique recolhida num canto. Mas o desejo agora é de rever aquelas pessoas das quais estive tão distante.

Fico impressionada com o número de pessoas que se disponibilizam para arcar com as tarefas de realização da festa. Alguns mais à frente, outros, nem tanto, mas todo mundo com desejo. Me emociona tanto esse impulso coletivo de reencontro, que acho que vou mandar esta crônica para toda a lista de contatos. Vou mandar a crônica para que todos saibam quão importante esse movimento de resgate é pra mim. Vai que na hora me dá a "caruara", então já me garanto contando na crônica.

Acho que foi minha a ideia de convidar aqueles que foram nossos professores. Agora que começo a envelhecer e tento me tornar mais humilde, sou grata a todos eles. Psicanalistas, behavioristas, pertencentes a quaisquer correntes teóricas, deram uma importante contribuição para nossa formação e uns mais, outros menos, estiveram todos juntos na jornada de fazer de nós os profissionais que somos.

 Não sei como será o encontro. Não sei no que se transformaram aquelas pessoas 38 anos depois. O que importa é que passamos 5 anos da nossa juventude convivendo diariamente juntos. Nos mais árduos anos da feroz ditadura. Éramos quase adolescentes. Quantas dúvidas, quantas inquietações, quantos projetos não tomavam cada um de nós? Dou-me conta de que somos hoje quase todos sexagenários. Muitos já perderam seus pais, ou são seus cuidadores. Muitos devem estar cheios de netos.Por quantas mudanças profissionais e pessoais não passamos? Quantos ganhos, quantas perdas, sonhos que se perderam, quimeras construídas, casamentos feitos e desfeitos?

 Podemos estar todos muito diferentes inclusive fisicamente. Em alguns pode ser que a pele não tenha mais o mesmo viço. Alguns podem estar acometidos dos achaques da PVC (porra da velhice chegando) ou da PVI (porra da velhice instalada). Talvez, como eu que não sou vaidosa, alguns prefiram mostrar seus cabelos grisalhos. Outros não. Fizeram plástica, lipoaspiração e fazem muito bem em malhar na academia. Não importa. Podemos, se quisermos, falar nesse encontro sobre tudo isso, até (por que não?) achando graça. Um senso de humor ancorado na ternura. Uma colega muito divertida, na troca de E-mails de preparação do encontro, sugeriu que usássemos crachás para sermos reconhecidos. De repente a ideia pega.

Acho que a riqueza do encontro vai estar em também nos reconhecermos nas nossas diferenças, respeitando a trajetória que foi possível para cada um, que cada um trilhou. Que possamos nos escutar com interesse e alegria. Somos testemunhas de uma época. A partilha de anos da juventude, para uns mais, para outros, menos, é um elo de ligação que transcende a passagem do tempo e todas as diferenças. Vamos então nos reconhecer em 1 de novembro. Vamos todos celebrar esse reencontro.
                                                                         Marcia Gomes.

domingo, 24 de agosto de 2014

24/08/14                                       INTERVALO

Intervalo compulsório e interessante. Dois dias inteiros sem pisar na rua. Me submeti a uma cirurgia odontológica um tanto complicada. Por causa do diabetes, dose cavalar de antibióticos. Por causa dos antibióticos, dose cavalar de desconforto gástrico. As doses cavalares aos 61 anos imprimem à alma desamparada uma certa solidão. Solidão do filho que está longe, solidão da família que está longe, solidão principalmente daqueles que estão perto, tão longe, que nem sabem que sinto solidão.

Ao contrário de me submeter às dores da solidão, me rebelo ancorada nos mecanismos para mitigá-la. Penso que vou ler Hamlet. Estou fazendo um curso de literatura e psicanálise cuja tarefa é Hamlet. Tem tarefa melhor? Penso que vou reescrever um trabalho sobre os "Três Tempos do Édipo" que começou direitinho e ficou mal acabado. Qual o quê? Nem ler nem escrever. Dois dias inteiros sem baixar a cabeça. Foi essa a prescrição. Me resta ouvir música e assistir televisão. Odeio televisão.

 Mas tudo na vida tem jeito se a gente quer dar jeito na vida. Escolho primeiro me entreter com a tarefa de tomar um banho como alguém que não se destina a ir a lugar algum. Tomar banho sem qualquer pressa só pra ficar em casa com nada pra fazer é o maior barato!! A gente espia com cuidado cada parte do corpo. A gente lembra dos banhos que tomou acompanhada quando a carne do corpo era mais rija. Agora, não tão rija, a carne continua seus reclamos pela carne do outro corpo. Onde o outro corpo se há pouco a alma do outro se refugiou num deserto de ausências? A gente sente o sabonete fazendo espuma e deslizando na pele.  Acaricio minha pele e sinto saudade de todos aqueles que um dia fizeram isto por mim. Onde andam aqueles? Sinto ternura pelo meu corpo desemparceirado. Penso um a um em cada parceiro que passou. Nossa, quanta recordação!!! Findo o banho, já que não quero ficar numa sessão nostalgia dos amores perdidos, começo a pensar em algo mais que fazer. O telefone toca.

É minha mãe ao telefone. Já estou no segundo dia pós cirúrgico e posso falar. Como foi gostoso conversar com minha mãe!! Desde que ela soube que está às vésperas de uma viagem de Maceió para Aracaju seus ânimos são outros. Foi muito feliz nos anos que viveu em Aracaju. Participava ativamente das tarefas da Paróquia de Santa Luzia, tinha um grande grupo de amigos, gostava do acolhimento do Padre Manoel. É tão devota a minha mãe, que já esqueceu seus lapsos de memória só de saber que em Aracaju poderá receber a eucaristia diariamente. E eu, que nada entendo de eucaristia, dou corda ao papo que  alimenta , nutre sua alma. Lúcida, alerta, ela se encarrega de perguntar como foi a cirurgia, prescreve cuidados, me dá colo. Colo de mãe é tão bom!! Mas o papo não pode demorar. Ela tem a saúde frágil e precisa de seus rituais de repouso, de respeitar seus horários. Nos despedimos e eu de novo às voltas com meu intervalo compulsório.

Tenho tanta coisa para ler do Seminário VI de Lacan!! Mas o dentista prescreveu cabeça erguida. Nada de Lacan. Então me entretenho com o sentido metafórico de "cabeça erguida" e vou ligar a televisão. Para não baixar a cabeça  aos apelos sensacionalistas da mídia, como o diabo foge da cruz fujo das notícias globais e sintonizo o canal 183, Arte 1. Está passando um documentário muito interessante sobre um violoncelista pernambucano de nome Antônio Meneses que mora na Suiça. Titubeio um pouco a respeito de assistir o programa. Já contei a todos que tive pai comunista. Em casa só música popular ou coisa dos negros americanos, Jazz, blues. Música clássica era costume considerado aristocrático. A propósito do gosto musical de meu pai, soube do falecimento de Cybele do Quarteto em Cy e fiquei triste. Quando moramos em Ibirataia meu pai costumava fazer serenatas com as irmãs, antes de se tornarem famosas.Então na minha educação não fui iniciada nos ritos da canção erudita e me socorre o ouvido com uma dose de intuição. Minha mãe, a contragosto, é formada em piano. Então nunca a vi tocar um dó. De cabeça erguida resolvo desobedecer ao pai e escuto Antônio Meneses.

Bendito ouvido, bendita intuição. Ouço Tchaikovsky, Vivaldi, Bach, Debussy, Schubert, Schumman e principalmente me emociono muito com "O Canto do Cisne Negro" de Heitor Villa Lobos. O Antônio Meneses viaja por toda a Europa regido por famosos maestros e caminha na rua carregando nas costas um violoncelo que tem 300 anos. Deu seu primeiro concerto aos 11 anos. Um sentimento de nacionalidade de cabeça erguida me toma. Me comovo, fico orgulhosa desse brasileiro.Vejo anunciando no intervalo um filme de Leon Hirszman sobre Nelson Cavaquinho. Esse posso assistir sem desobedecer a meu pai. O programa do violoncelo acaba e entra uma exposição de um pintor e desenhista chamado F. Bacon. Muito interessantes os rostos distorcidos, deformados que ele concebe. Trata-se de um homossexual que foi violentamente castigado na puberdade por ter sido surpreendido usando as roupas da mãe. No intervalo fico sabendo que o último filme de Alain Resnais se chama "Amar, Beber e Cantar".

Muito mais coisa do Arte1 desfila diante de meus olhos e ouvidos. Mas a cabeça já está em outra viagem.  Uma nostalgia de quando eu vivia em São Paulo me toma. Acho que ainda morava em São Paulo quando assisti a filmes de Alain Resnais. Saudade das tardes outonais onde me deixando tocar pela fuligem que encobria os caules das árvores derramando no chão suas folhas amarelecidas, eu ia aos cinemas, aos concertos, aos museus, às exposições. Ah, como eu ia ao teatro! Por que não usufruo tanto quanto da vida cultural em Salvador?  Por que recuso a minha baianidade ? Se apodera de mim um sentimento de exílio.Por que tive de vir embora de São Paulo? Por que resisto tanto a voltar lá? Penso na frase deixada no Facebook por minha amiga em São Paulo: "Venha me visitar".

 Uma condescendência com a dor da estrangeirice me acalenta. Deixo a televisão, levanto do sofá, vou me olhar no espelho e choro porque não tenho e jamais terei respostas para tais questões. São os mistérios da vida na sua perplexidade que a gente vai saber só depois. "Se eu soubesse disso, teria escolhido aquilo." Nem sei se a gente tem mesmo escolha. Mas de uma coisa eu sei: dentro do que a vida me ofereceu fiz o melhor que pude. Ainda é tempo de em tardes ensolaradas de verão me deixar tocar pela coreografia ao vento das folhas verdejantes dos coqueiros e ir aos cinemas, aos concertos, aos museus, às exposições. Ah, como posso ir ao teatro!  Para isso, basta me apropriar da bonita frase de Caetano Veloso: "O melhor lugar é ser feliz."
                                                                                                     Marcia Gomes. 

domingo, 17 de agosto de 2014

17/08/14                                      TENTAR  SAIR  DE  CENA

Um luto pudico me inibe de falar da perda de Eduardo Campos. Só me ocorre dizer que quando perdi meu pai ele contava apenas 45 anos. Entre o diagnóstico e o fim foram apenas treze dias de insuportável dor. Mas dor não se coloca na balança. Como saber o peso da dor dos entes queridos de Eduardo Campos?  Um homem com filhos pequenos, honesto, competente, neto de Miguel Arraes e jovem, sair de casa em missão de trabalho e não voltar mais, é inqualificável! Muitos, nele depositaram a esperança de um Brasil melhor. A morte imprevisível, precoce e trágica me deixou com a sensação de o país ter sido traído pelas contingências, como quando perdemos Tancredo Neves e Ulisses Guimarães.

Com esse acontecimento dou-me conta de que há alguns domingos venho falando sobre a morte e o morrer. Rubem Alves, João Ubaldo, Ariano Suassuna. Perdas significativas para o povo brasileiro. Quando começamos a envelhecer a morte já nos parece alcançável e então nos toca mais? Sobrevivermos àqueles que se vão e nos são tão caros, causa uma espécie de constrangimento dolorido? 

Talvez não tão importante para o povo brasileiro, mexeu muito comigo a morte por suicídio do ator americano do filme "Uma Babá Quase Perfeita". Não presto muita atenção a noticiários mas fiquei sabendo que ele tinha envolvimento com drogas, álcool e principalmente que estava muito deprimido. Acho lamentável que a informação sobre o envolvimento com drogas e com álcool, coloca nas entrelinhas da notícia da mídia algo cruel assim: "Estão vendo vocês, ele se suicidou porque não tinha o juízo perfeito." A gente sente o tom de acusação da imprensa com o dedo em riste. Eu não sei nem me importa saber dessa maneira, se ele tinha o juízo comprometido ou não. Quem de nós tem o juízo perfeito?

A mim importa saber que assisti ao filme e o personagem feito por ele me enterneceu muito. É um pai um tanto desajuizado e transgressor, que num processo de divórcio está legalmente proibido de estar com os filhos, a não ser na presença da mãe que é uma educadora rígida e autoritária. Então esse pai, para estar diariamente com as crianças, cria o bem construído estratagema de se vestir de mulher e de conseguir ser contratado como babá pela ex-esposa. Não gosto muito de comédias, mas essa foi para mim comovente, pelas embrulhadas em que o pai se mete por amor aos filhos. O desempenho do ator é muito bom. Um ator excelente, que a despeito de envolvimento com drogas e álcool e o que mais quiser divulgar a mídia devassando sua privacidade, teve talento para fazer rir o mundo inteiro e sobretudo sentir muita ternura por aquele pai tão amoroso.

 Ao que parece, ao contrário da maioria das pessoas, que por motivos religiosos ou não, pensam que devemos viver sob quaisquer circunstâncias, tenho um enorme respeito pelo gesto suicida. Dizer do meu respeito muito longe está de fazer apologia do suicídio.  Somos, felizmente, quase todo o tempo, tomados pelo movimento de preservação da vida, particularmente quando ocupamos o lugar de psicanalistas. Trabalho em prol da preservação da vida. Mas não quero falar aqui do meu trabalho. Não cabe fazer pontuações psicanalíticas sobre o suicídio enquanto passagem ao ato. Quem quiser saber sobre isso é só ir a Lacan pelo menos no Seminário livro 10 "A angústia". Aqui no "Blá, blá, blá...." quem lê a minha escrita, são pessoas que fazem interlocução com Marcia enquanto sujeito que pensa sobre seu cotidiano e que sobretudo dele também padece e usufrui. É comigo enquanto pessoa que os meus leitores se relacionam. Por isso, não quero e não cabe aqui fazer considerações teórico-técnicas.

Mas não sei se pelos ossos do ofício, tenho uma aguda consciência de que há estados de angústia tão dilacerantes,  que tornam difícil ao sujeito vislumbrar outra saída, senão o suicídio. Não julgo os suicidas. Não penso que eles poderiam ter feito isso ou aquilo para sobreviver, tampouco os considero necessariamente desequilibrados, covardes ou egoístas. Quantos homens sábios, brilhantes, sensíveis ao longo da história da humanidade, ficaram sem qualquer outra saída plausível?  Penso que há momentos que a "pulsão de morte" prevalece e isso deve ser de uma incorrigível solidão. Uma solidão sem apelo possível. Uma solidão de angústia extremada que nós, que estamos do outro lado, do lado da "pulsão de vida", não podemos nem de longe avaliar. Então, talvez nos defendendo do suicida que há dentro de cada um de nós, julgamos o outro e o recriminamos por não suportar o insuportável.

A dor da perda de alguém nessas circunstâncias deve ser intolerável. Talvez por isso, numa complicada elaboração de luto, recorramos a responsabilizar o ente perdido pelo "gesto impensado". Será que foi tão impensado assim? Será que não pediu socorro? Será que quando o ente perdido falou em suicídio não desqualificamos a sua fala tomando-a como uma mera chantagem emocional? E a nossa responsabilidade, onde fica?

Penso que antes de julgarmos num "só depois" quem põe fim à própria vida, devemos nos perguntar o que temos feito por aqueles que estão angustiados ou deprimidos. O que temos feito pelos que se desestabilizam emocionalmente. Ao invés de censurarmos aqueles que "optam" por sair da vida, poderíamos nos perguntar o que temos feito em prol da preservação da vida.

 Tenho visto que infelizmente, mesmo nós, os da área psi, fugimos da dor como o diabo foge da cruz e, às vezes, nos permitimos ajudar a um amigo que está deprimido somente se, estando conosco, ele aceitar fazer um "semblant" alegrinho. Quantas pessoas angustiadas e deprimidas fogem mais ainda de contatos sociais temendo serem inoportunas ou indesejáveis na sua tristeza, no seu mutismo ou mesmo no seu sono persistente?

 Sob os mais diferentes pretextos, fugimos dos deprimidos e os rotulamos como pessoas que não querem se ajudar. Numa sociedade globalizada onde prevalecem as especializações, quem quer chegar perto de alguém que está desestabilizado emocionalmente? Costumamos dizer : "Ah, isso é coisa para profissionais, para especialistas". Às vezes, queremos nos distanciar tanto, que sequer reconhecemos como nosso dever recomendarmos a um amigo em sofrimento psíquico, que consulte um especialista.

Às vezes penso, que não há algo sujeito a mais preconceito e discriminação do que o sofrimento psíquico. Preconceito e discriminação sem direito de defesa. Outro dia uma colega numa instituição psicanalítica que frequento, relatou ter visto médicos dizerem de pacientes que padecem de doenças psicossomáticas: "Não é nada não. É só psicológico." Que reducionismo!! Que ignorância!! Tem algo mais estarrecedor do que um psiquiatra, se sentindo molestado no seu sono, ignorar o apelo que o familiar de um paciente em agudo sofrimento, precisa fazer numa madrugada? Tem algo mais estarrecedor nos dias de hoje, que uma mãe internar numa clínica psiquiátrica para lá viver para sempre, seu filho, pacífico, inofensivo, porque foi submetido a um rótulo que o coloca como doente mental, portanto como mal visto nas rodas sociais que ela frequenta?

 Como é comum vermos familiares e amigos de pessoas em sofrimento psíquico usando das mais mirabolantes estratégias de evitação! Numa sociedade onde prevalecem valores como sucesso profissional e produtividade, tornou-se legítimo, adequado e normal recusarmos socorro a alguém próximo em agudo sofrimento psíquico porque temos uma reunião, porque temos que participar de uma defesa de tese ou mesmo porque temos que ir ao teatro.

O "modismo" das chamadas "neurociências" nas suas tendências organicistas, só faz piorar esse estado de coisas. Se o sofrimento psíquico é de natureza orgânica, um mero desarranjo de neurotransmissores, então estamos liberados de nossa responsabilidade social diante daqueles que sofrem. Que vão procurar um médico que lhes prescrevam a medicação adequada e nós podemos dormir nosso sono tranquilo.

A cruel sociedade globalizada onde a singularidade é desqualificada em prol dos ideais de sucesso a qualquer preço, onde estamos todos com pressa para provar que somos competentes e bem remunerados, a ideologia do prazer, da juventude e da beleza física, da felicidade custe o que custar, a quase imposição de estarmos sempre bem e sem dar trabalho ao outro, a proliferação da propaganda na mídia do modelo inalcançável de completude, tudo isso a meu ver conspira contra e ameaça a integridade das almas mais sensíveis, daqueles que se aventuram a fazer escolhas fora dos padrões vigentes e a apostar em causas consideradas socialmente desvantajosas.

Dizendo o que penso, não quero culpabilizar a nenhum de nós que temos ou tivemos pessoas angustiadas, deprimidas ou desestabilizadas emocionalmente no nosso seio familiar ou no nosso círculo de amigos, por ter se omitido. Reconheço que o sujeito que sofre também está implicado no que lhe acontece, e que às vezes não sabemos nem temos o que fazer. Muitas vezes somos confrontados com a impotência. Há um impossível incontornável. Mas temos que lidar com isso sem que precisemos para nos defender, acrescentar mais dor àquele que sofre, fazendo julgamentos cruéis de quem na sua solidão aterrorizada por fantasmas invencíveis, não teve outra saída senão tentar sair de cena.

Meu apoio, minha admiração e solidariedade a familiares, amigos, psiquiatras e psicanalistas que exercem seu esforço incansável, apostam acima de tudo que vale preservar a vida de cada sujeito que sofre, contribuindo pessoal e profissionalmente para que tenha uma qualidade na sua existência que justifique o desejo de nela se manter. Podem triunfar ou fracassar na sua empreitada, sobre isso não podem ter controle. Mas com certeza não tentaram sair de cena.
                                                 Marcia Gomes.

sábado, 9 de agosto de 2014

10/08/14                            EM  MAR  REVOLTO

Íamos de saveiro. Nossa mãe quase em trabalho de parto. Nosso pai, morando em São Paulo tentando se estabelecer profissionalmente por lá, não pode vir assistir ao nascimento de sua filha caçula. Sandra, minha irmã mais velha, eu, Lula, meu irmão menor e nossa mãe quase parturiente, todos num saveiro saindo de Taperoá a caminho de Salvador.

Quando passamos por perto de Morro de São Paulo, o saveiro subia e descia ao sabor das ondas ferozes, em meio a uma tempestade. O mar encapelado não dava trégua. Que sentimento nos tomava naquela ocasião? Ver a nossa mãe com a barriga na boca, deitada mal acomodada entre sacos de cacau, desamparada sem saber se chegaríamos a tempo em Salvador. A voracidade das ondas encharcava a todos. O saveiro jogava nos deixando muito tontos. O cheiro de cacau aumentava a náusea. Uma mulher, de uma solidariedade imprudente, nos ofereceu uma moqueca de peixe embrulhada numa folha de bananeira fazendo-nos a todos levar a náusea às vias de fato.

Eu devia ter uns cinco anos. Acho que é essa a diferença de idade em relação a Lily, minha irmã caçula que estava a caminho do mundo dentro do saveiro. Lembro que me condoía vendo o sofrimento de nossa mãe, e, embora não fôssemos crédulos, rezava fervorosamente a São Brás, padroeiro de Taperoá, pedindo a graça de chegarmos a tempo, para eu não ter uma irmã ou irmão nascido no meio do mar, nem Taperoense, nem soteropolitano.

Aquela viagem foi uma espécie de pesadelo com o sabor de aventura. Parece que a aventura sempre povoa a cabeça das crianças, para fazer frente ao trauma. Lily nasceu no Hospital Santa Isabel. Lilyana, o nome da minha linda irmã caçula. De todos os irmãos, a mais bonita. Nasceu com olhos castanhos esverdeados, com traços delicados puxando mais pelo lado de nossa mãe.

Semana passada, depois de alguns meses sem contato, falei com ela ao telefone. Lily, talvez pelo encapelado do mar na véspera do seu nascimento, ou melhor, talvez pelo sabor de aventura que cercou aquela viagem, trilhou um destino aventuresco, muito particular. Adora trilhas. Mora em um sítio em Rio de Contas na Chapada Diamantina, tão distante da civilização que lá no seu sítio não pega celular e não tem telefone fixo, razão pela qual passamos meses sem nos falar. Detesta computador e não faz a menor questão de aprender a manejar. Há uns cinco anos não vem a Salvador e não tem planos de vir por enquanto. É um "bicho do mato", como faz questão de se denominar.

Está num muito feliz segundo casamento, tem três netas e um neto e um filho "temporão" de 14 anos que se chama Amon. Amon é um rapazinho muito inteligente e sensível, como os pais, afeito às coisas da natureza. Tem duas éguas e oito gatos. Entende de ervas e plantas em geral, e participa ativamente do cultivo da horta.

Quando ouvi a voz de minha irmã ao telefone senti um nó na garganta e a voz embargada. Repeti mais de uma vez que a amo muito. Quando a gente começa a envelhecer, tem uma certa urgência de dizer, de não deixar as coisas passarem. Sem dúvida Lily é dos meus irmãos aquela com quem cultivei uma cumplicidade maternal. Maternal, pelos anos que nos separam e pelos cuidados de irmã mais velha que sempre tive com ela. Cumplicidade, porque Lily fez escolhas tão transgressoras e alternativas, contrariando, de certo modo, as expectativas de nossos pais, que escolhi fazer esse lado cúmplice supondo talvez que ela precisasse desse apoio, para suportar a onda encapelada que tentava empurrá-la para o lado contrário do seu desejo.

Foi uma criança meiga e muito sensível. Um pouco triste, talvez. Sempre muito observadora e concentrada, às vezes passava longo tempo brincando sozinha, entretida com os detalhes de uma folha ou com os volteios silenciosos em bonita coreografia de peixes no aquário. Gostava muito de mexer com argila e esculpia panelinhas, animais, bonecos aos quais dava vozes e vida.

Já na puberdade começou a esboçar seus dotes artísticos. Pintava telas muito bonitas e foi premiada em concursos. Fazia teatro no colégio e dançava. No ano em que nosso pai faleceu resolveu viajar pelo Brasil afora de carona com uns amigos. Cedo saiu de casa trilhando um caminho de interesse pela preservação da natureza. Por longo tempo sobreviveu de fazer um belo artesanato. Nesse percurso transgressor, às vezes incompreensível para nossa mãe, mantinha-se preservada a nossa interlocução e muitas vezes tentei ser mediadora em conflitos familiares.

Quando ela mudou-se com o marido para Rio de Contas, várias vezes fui até lá visitá-los. Uma linda cidadezinha com ares coloniais, clima de montanha, muita cachoeira e usufruir do convívio com Lily e meu cunhado. Experimentar a sua deliciosa comida natural, me encantar com sua horta e seu jardim. Lily vive de plantar e de conceber e preservar lindos jardins para os moradores da cidade e regiões vizinhas. Conhece e cultiva muitas variedades de orquídeas. Tudo que ela faz é com gosto e desejo.

 Agora já fica mais difícil para mim encarar uma viagem de nove horas. Como não dirijo, preciso ir de ônibus. Então uma longa distância se estabeleceu entre eu e Lily nesses últimos anos. Convido-os insistentemente para virem com Amon a Salvador, mas adiam, avessos que são à vida urbana no que tem de burburinho, desrespeito à natureza, violência etc e tal.

Aí fica a saudade e a nostalgia da minha querida irmã caçula. Fica o respeito por nas condições mais adversas, não ter aberto mão do seu desejo. Fica o carinho por essa pessoa causada pelo amor à natureza, com um estilo de vida tão diferente do meu, tão desapegada de quaisquer bens materiais, tão afeita à calmaria do campo. Aqui registro meu amor por ela que escolheu caminhos tão pouco convencionais quanto quase nascer dentro de um saveiro, em mar revolto.
                                                                               Marcia Gomes.    

sábado, 2 de agosto de 2014

03/08/14                                       NEGROR  DOS  TEMPOS

Não durmo,mas acordo com as galinhas. Mas as galinhas não acordam mais na paisagem urbana de Salvador. Não há galinhas na paisagem urbana de Salvador. Na paisagem urbana de Salvador, às vezes penso, há apenas as desvantagens de uma cidade grande, sem que possamos usufruir das vantagens. Há violência, trânsito congestionado e um precoce ruído reverberativo de carros assaltando as ruas, na aurora. Onde a aurora de "A Morte do Leiteiro" de Drummond? Não há mais leiteiro, e os assaltos matinais, na sua atrocidade, não permitem aos poetas enxergar a beleza trágica da mistura de tons do sangue com a brancura do leite, compondo a cor do amanhecer. Não há brancura. Há o negror dos tempos.

Um gotejar pronunciado e insistente na pia da cozinha do meu apartamento. Preciso chamar o encanador. Mas não há encanador a chamar nos primeiros tons da aurora. Então por enquanto me conformo com o irritante gotejar. Até gosto. Cada gota que pinga me distrai do texto que vou inventando. Cada gota que pinga quase me distrai de pensar na dor intolerável daqueles que perdem entes queridos, casas, bens, dignidade, esperança, tudo. Aqueles que perdem tudo nos bombardeios em Gaza. Cada gota que pinga quase me distrai da imagem de corpos destroçados em Gaza que vi no Facebook.

Nessa época de globalização o tempo se torna inclemente na velocidade com que passa. As postagens no Facebook são como uma caixa de ressonância dessa velocidade cruel. Estamos há uma semana apenas da proliferação de postagens em homenagem a Suassuna. Estamos há uma semana apenas de quando eu pude me condoer com a condição de vigia noturno de prédio do personagem da minha crônica, e me deixar tocar com o seu discurso poético sobre Suassuna. Estamos há uma semana apenas de quando várias pessoas postaram minha crônica no Facebook. Parece que em questão de uma semana não há mais como pensar com dor na morte de Suassuna, não há mais como pensar com dor que um homem sensível é vigia noturno de um prédio.

Uma dor muito maior, fazendo em farrapos a dignidade de cada um de nós, ocupa as postagens do Facebook. Fotos de corpos destroçados, palavras de ordem, o apelo dramático e emocionado do Papa Francisco, o poema doído e sensível da colega Christiane Glasner . Todas essas coisas e muito mais para quem suporta acompanhar os noticiários, nos dizem que temos que nos defrontar com a nossa impotência, com o inabordável escândalo do crime de guerra, com a inoperância dos expedientes diplomáticos, com a indagação de por que evoluímos tanto em tecnologias, em conquistas da ciência, se estamos perplexos, desamparados, violentados pelo terror que se passa em Gaza.

Quase me sinto envergonhada de ficar curiosa a respeito de como está sendo a FLIP este ano, em homenagem a Millôr Fernandes. Quase me sinto envergonhada de ficar alegre porque emprestei os livros de Manoel de Barros ao personagem da minha crônica. Não me interessam muito as sutilezas políticas das razões da guerra. Numa guerra não há sutilezas. Não me importa muito que se trate de um confronto injusto e desigual entre israelenses e palestinos. Entretanto penso como um povo de Israel que foi tão perseguido e estigmatizado, pode se tornar tão violentamente cruel. 

Penso nas pessoas, vítimas inocentes de um confronto cujas razões às vezes até desconhecem. Penso no povo. O povo que em geral se torna bode expiatório de correlações de forças, de disputas de poder que não lhe dizem respeito, e sobre o qual recai toda a desgraça. Sinto uma compaixão envergonhada das crianças que perdem seus pais, seus lares.

 Penso mais uma vez na "Psicologia de Grupo" de Freud. Vi no Facebook algo dito assim: "Gaza somos todos nós". Sim, estamos todos implicados nesta guerra cujas consequências traumáticas serão inapagáveis na vida de cada sujeito que a sofre. Estamos implicados e não podemos tapar os ouvidos aos estampidos das explosões por mais longe que pareçam estar de nós. Não estão longe os estampidos. Estão dentro de cada um de nós clamando por um posicionamento de olhos abertos já que sabemos que Gaza pode ser qualquer lugar em que estejamos, a qualquer hora. A qualquer hora que somos intolerantes com nosso semelhante, a qualquer hora que estigmatizamos o diferente, a qualquer hora que baixamos a cabeça à lei do mais forte.

Os pactos de cessar fogo não foram respeitados. A emoção me toma e mal posso continuar o texto. Vi na televisão uma criança que catava livros que sobravam no meio dos escombros. Normalmente não gosto, e agora quase não quero assistir televisão. A manchete sensacionalista que esmaga a subjetividade. A manchete sensacionalista que às vezes na sua repetição sem crítica, sem reflexão, coloca o risco de nos fazer pensar: "Isso é natural e não me diz respeito".

 No próximo sábado, dia 9 de agosto, fará um ano do falecimento da minha querida amiga Dona Ruth. Se não me engano, em 2012, foi com um comovido relato da história de amor de Dona Ruth que passei a enviar regularmente aos amigos o "Blá, blá, blá domingueiro...." Bonito tempo aquele em que Dona Ruth encantou o Professor com um gracioso rodopio em uma praça no Ceará. Muita saudade da alegria juvenil de Dona Ruth, do seu entusiasmo pela sua corajosa e transgressora história, do seu papel tão importante como aglutinadora de uma família de 9 filhos com seus rebentos. Filhos, alguns poetas, que aprenderam com ela a cultivar a esperança num mundo melhor e a se enternecer com coisas simples como a beleza do pouso de um beija-flor, como a alegria infantil de pular uma onda na praia de Itacimirim.

 Quase sinto um alívio de Dona Ruth não estar mais entre nós para não presenciar o constrangimento que nos abate com o que acontece em Gaza. Ela ficaria consternada com esse dramático estado de coisas. Penso que a homenagem póstuma que posso prestar a essa querida amiga, é conclamar a todos para se posicionarem firmemente contra o descalabros dessa guerra. Conclamar a todos para sermos vigilantes no nosso cotidiano, nas nossas pequenas ações em relação a nossos semelhantes, para não contribuirmos com nossa omissão, para agudizar o negror dos tempos.

                                                                                                         Marcia Gomes.