sábado, 27 de setembro de 2014

28/09/14                                  CAPRICHO  À  ITALIANA

O encontro das turmas de Psicologia que ingressaram na Ufba em 71 e 72 vai ganhando corpo de acontecimento memorável. Como pré-aquecimento do evento que ocorrerá em 1 de novembro, muita troca de E-mails no grupo que participará. Num primeiro momento foram mensagens um tanto mais formalizadas, tentando dar conta da organização do festejo. A busca por localizar o maior número de colegas e professores, votação para escolher onde vai ser o evento , o que será servido, como efetuar o pagamento da despesa, etc. Muito trabalho e um esforço muito dedicado para que as decisões sejam coletivas, tentando agradar a gostos de gregos e troianos.

Não me recordo bem como começou, talvez com a brincadeira de uma colega perguntando como nos reconheceríamos no momento da festa, já que somos no mínimo sessentões, muitos que não se encontram há 38 anos. O fato é que começou a circular na internet uma troca de figurinhas muito informal que vai dando conta do quão seletiva é a memória, e de que o que representou muito para um, sequer é recordado pelo outro. Assim, juntando fragmentos vai se montando um lindo caleidoscópio de recordações, que muda de configuração a cada vez que cada um lhe dá um giro.

Vários foram enviando fotos atuais, dizendo quem são, o que fizeram nesses 38 anos e o que andam fazendo. Alguns já usufruem do gostoso convívio com os netos, outros passaram por importantes mudanças profissionais, conta-se sobre perdas, ganhos, fazem-se confidências.  Na foto de cada um, as marcas deixadas pelo tempo vão sulcando uma certa doce sabedoria no olhar e no sorriso.  O cabelo, às vezes numa nova conformação, qual moldura vai contornando cada rosto  que parece dizer nas entrelinhas o muito do que se aprendeu nesses quase quarenta anos. Sem dúvida nos tornamos mais bonitos, de uma beleza generosa e compassiva.

Uma colega muito cooperativa e empenhada na realização do encontro, cria no Facebook uma página do grupo que se formou em 76. Lá estão fotos da nossa formatura, fotos nossas já sessentões, fotos da  Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) sediada na antiga Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus, fotos da FFCH sediada no antigo casarão próximo à Igrejinha de São Lázaro, foto com relato sobre vida e obra da querida e saudosa Professora Mercedes Cunha, incansável defensora dos direitos humanos, e entusiasta lutadora contra a ditadura. Como é usual no Facebook, cada um vai colocando comentários ao que está postado, deixando marcas da singularidade de suas impressões.

E haja singularidade!! Para uns, a memória de quando estávamos no Terreiro de Jesus é mais vívida. Parece que lá ficamos de 72 a 74. Para outros, as recordações tomam mais corpo depois que fizemos a mudança para São Lázaro. Uma colega também muito empenhada na realização do encontro, enviou por E-mail fotos de como está São Lázaro atualmente. Isso desencadeou uma bonita hora da saudade inclusive com lindos poemas da querida amiga Ana Cecília. Os poemas de Ana nos fizeram lembrar do ano em que em razão de uma greve, a polícia repressiva ocupou a universidade e não podíamos nos agrupar em mais de 3.

 A propósito disso, lembramos de uma assembléia na Escola de Engenharia em que, enfrentando a repressão, num gesto heróico e corajoso o então presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) discursou dizendo estar disposto a deixar derramar seu sangue na defesa dos companheiros. Tempos duros, tempos difíceis, tempos de uma beleza ímpar pela corajosa esperança que animava nossos corações de jovens entusiastas com um futuro promissor sem militares prendendo, torturando, assassinando pessoas por defenderem o ideal de uma sociedade mais justa e igualitária nos direitos.

Não é na memória de todos que os cruéis anos da ditadura ganham destaque de figura. Para alguns, foram mais fundo. E na troca de E-mails fala-se também de episódios do cotidiano, lembranças marcantes no convívio desse ou daquele grupo, imagens, impressões sobre o espaço que compartilhávamos, corredores, janelas, anfiteatros, percepções sobre o que ocorria nas ruas próximas de onde assistíamos aulas, características desse ou daquele professor, enfim uma colcha de retalhos de cenas, costurada com a candura própria ao olhar de jovens entre 18 e vinte e poucos anos. Tínhamos alguns colegas mais velhos que a maioria de nós, mas por certo acalentados pelo mesmo viço juvenil de nossos ideais. 

Muito me comoveu o relato sempre de escrita impecável de Ana Cecília (ela é poeta com livros publicados e ganhou o prêmio BRASKEM de poesia. Endereço do blog de Ana Cecília:  casulotemporario.blogspot.com.br) contando que nossa aproximação se deu por sermos as únicas na turma a usar calças de marca TOPEKA. Não tínhamos dinheiro para comprar calças de marca melhor. Eu, naquela época, morava no Conjunto Residencial Santa Madalena, uns apartamentos desconfortáveis e minúsculos na Vasco da Gama.  Ana era filha de uma família numerosa (9 filhos) recém chegada do Crato, no Ceará. Pobres e apaixonadas por poesia, nossa amizade se consolidou com  trocas a respeito de Drummond.

 Tem se falado até em escrever um livro com tantas histórias que estão sendo contadas. Gomersinda, uma colega, escreveu uma crônica de verdadeiro valor literário sobre a sua experiência na FFCH do Terreiro de Jesus. Linda crônica!! E que memória sensível a de Gomersinda!! Bolota (Eulina) também escreve bonito. E que pitorescos e bem humorados os relatos da colega Judith! Talvez nem valha a pena ficar citando nomes, tão belas que são todas as contribuições. Eu mesma já escrevi, não sei se belas, duas crônicas domingueiras sobre o assunto. Uma, "Reencontro", dizendo do significado que o encontro tem pra mim. Outra, "O Cisne Vivo", uma homenagem ao colega Caria que foi meu primeiro amor e que infelizmente não está mais entre nós.

 Uma correspondência muito enternecedora se estabeleceu entre as pessoas do grupo que vêm mostrando que quando  vivemos de modo tocante  e intenso, a experiência pode se tornar uma peça literária. De modo que estamos nos revelando todos, escritores potenciais. Trinta e oito anos depois, quem suspeitaria que as recordações dos tempos da Faculdade estariam tão vivas e frescas nas nossas memórias? Sem dúvida estamos atestando que os anos da juventude tão cheios de inquietações e dúvidas existenciais são de beleza rara e importantes na nossa constituição como sujeitos.

 Parece que para mim, embora eu não tivesse uma posição de destaque nem fizesse parte dos quadros do movimento estudantil (ME), as lembranças são muito perpassadas pelo histórico do processo de luta contra a ditadura e pelo como isso imprimia marcas à nossa vida de estudantes.

De quando o curso de Psicologia se alojava na antiga Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus, algumas recordações são marcantes para mim. Aquele prédio, na sua beleza arquitetônica, me impressionava muito. Também porque ali estudou meu pai que se formou em medicina. No jardim onde havia dois patinhos, eu e Ana Cecília jogávamos conversa fora sobre a antipsiquiatria de Laing sob o olhar um tanto cético e irônico de Ana Helena e Virgílio que sempre foram mais objetivos e não curtiam muito essas viagens de malucos.

 Lembro muito da minha experiência com esse grupo de amigos como monitores das Professoras Eglê e Anamélia, na época, duas entusiastas do pensamento behaviorista. Recordo com satisfação e alegria como nos sentíamos crescer intelectualmente com tudo aquilo que aprendíamos com elas. Fizemos um trabalho de modificação de comportamento numa escola pública do Pelourinho cujas crianças eram na sua maioria filhos de prostitutas. Entrar em contato com aquela realidade nos enchia de sonhos de nos tornarmos psicólogos atuando em trabalhos socialmente relevantes.

 Lembro também, logo no primeiro ano, das aulas com a Professora Alda Mota, com sua sociologia engajada que muito me encantava e a quem sou muito grata. A convite de Alda Mota participei de uma pesquisa sobre o imaginário das empregadas domésticas em Salvador. Meu trabalho como pesquisadora era representar o papel de empregada num curso de arte culinária na Paróquia da Vitória. Eu me vestia, falava, e gesticulava como empregada doméstica e ia com as minhas amigas olhar as lojas da Baixa de Sapateiros, antes de voltar para a casa de "minha patroa". Assim igualada a minhas colegas de curso, eu podia conversar com elas sobre suas crenças, valores, ideologias, estilos de ver e estar no mundo. Foi uma experiência muito rica.

Do Terreiro de Jesus lembro muito do dono da cantina da faculdade, de apelido "Bahia", por ser um fanático torcedor do time. A cantina de Bahia ficava na passagem das salas de aula para a sala do Diretório Acadêmico. Como eu e meu grupo de amigos vivíamos enfiados no diretório, toda hora era hora de um dedo de prosa com Bahia, uma figura muito particular, que cheio de segredos por medo da repressão, apoiava as causas estudantis.

 Lembro de algumas assembléias ocorridas no prédio da antiga Faculdade de Medicina e de quão gratificante era colaborar na redação do jornalzinho intitulado "Reflexo". Se não me engano o nosso colega Acácio que saiu para a clandestinidade participava daquelas sessões de redação onde conversávamos muito e trocávamos confidências. Confidências sempre perpassadas por alguma cautela quanto a o que revelar, evitando transgredir as normas de segurança. A poesia "engajada" sempre se fazia presente e eu conversava muito com as colegas poetas.

De resto, a memória focaliza as nossas frequentes idas à sede do Diretório Acadêmico, inicialmente dirigido por Sônia Sampaio (Sônia Pata) e em seguida por nosso colega de turma Virgílio. Para frequentarmos o Dapsi não nos acanhávamos de "filar" as aulas que nos pareciam irrelevantes. O mais relevante para nós era a transformação social. Por experiências políticas muito precoces e não muito bem sucedidas na adolescência, de meu grupo de amigos na militância estudantil talvez fosse eu a que se mantivesse mais "a reboque". Isso quer dizer que eu tinha posições de "massa avançada" mas sem me sentir tentada a assumir cargos de direção.

 Mas ainda assim participava de reuniões de leitura e discussão de textos sobre o materialismo dialético e a revolução socialista. Na sede do Diretório Acadêmico, além de participarmos de reuniões, ouvíamos música popular brasileira, líamos poesia, promovíamos atividades culturais e conversávamos com colegas com mais experiência política sobre nossos dilemas existenciais e os riscos dos desvios pequeno burgueses.

Da passagem do prédio do Terreiro de Jesus para o prédio em São Lázaro em 1974 a memória não é tão nítida. Perdi meu pai com apenas 45 anos em janeiro daquele ano e passava por um doloroso processo de luto. Mas recordo que o Diretório ficava na mesma área da cantina de "Seu" Farias e Dona Dalva, pessoas adoráveis. Lá costumávamos almoçar com grana muito curta. Recordo também da importância que teve a Comissão de Finanças no trabalho do DCE , do Jornal "Viração" e da luta pela compra de um mimeógrafo, se não me engano.

 Lembro que a repressão pegou pesado com alguns representantes estudantis que eram meus amigos quando eu os ajudei a se resguardarem na casa de colegas, uma das quais morava no Morro Ipiranga vizinha à casa do reitor da Ufba. Fui até o Morro Ipiranga levar mantimentos à colega que lá recebia guarida e por engano toquei a campainha na casa do reitor. Naquele tempo o reitor tinha uma função totalmente diferente do que tem hoje, obviamente não era eleito diretamente e era cúmplice da repressão. Devo ter dado uma desculpa muito bem dada quando me dei conta que tocara na casa errada. O que sei é que entreguei os mantimentos à minha amiga sem que nada de prejudicial lhe acontecesse.

Quando vejo colegas do grupo na conversa coletiva por E-mail, recordando vivamente das características desse ou daquele professor, de travessuras que aprontavam, das ternuras inocentes que trocavam nos tempos da faculdade, dou-me conta que eu e meu grupo de amigos vivíamos, uma boa parte do tempo, em outro diapasão. Éramos muito estudiosos mas estávamos mais tomados pelo ideal de fazer a revolução, não nos sobrando muito tempo e energia para além de estudar desfrutar das pequenas alegrias que animavam os colegas e de nos relacionarmos mais ingenuamente com eles.

 Ainda assim, lembro de uma professora de estatística chamada Ivone a quem sou muito grata. Ivone sabia que eu sofria de discalculia. De modo que nas provas eu resolvia com o raciocínio correto todos os quesitos, mas na hora dos cálculos eu precisava "pescar" de uma amiga muito boa em matemática.  Ivone, generosa, fazia de conta que não estava vendo eu "pescar". Só assim eu podia ser aprovada com boas notas.

Não tenho como esquecer a deslumbrante vista do mar de São Lázaro. De lá, víamos o por do sol. Gostava de assistir com interesse aos rituais festivos às segundas-feiras em celebração a Omolu que aconteciam na Igrejinha, bem próxima da faculdade. Lembro também com muita ternura das nossas sessões de estudo noturnas quando tínhamos que entregar trabalhos em cima da hora, particularmente a professores de vertente mais psicanalítca aos quais não dávamos nenhum cartaz e de cujas aulas às vezes escapávamos para fazer trabalho político como passar nas salas de aula para dar avisos, convocar para reuniões, etc.

Às vezes penso que não só o trabalho político assumiu o lugar de figura na minha vida dos tempos de faculdade. Na verdade por dois anos cursei paralelamente Psicologia na Ufba e Letras na Católica. Nesse período eu era quase noiva de um rapaz lindo, estudante de arquitetura. Mas Dona Marcia de vez em quando apronta das suas. Quase noiva e fui me apaixonar perdidamente por um professor da Católica, muito mais velho que eu. Ele, provavelmente encantado com a boa aluna, eu provavelmente dando vasão a meu Édipo mal resolvido.

 O fato é que nos envolvemos e enquanto meus colegas de Psicologia usufruíam inocentes do seu saudável convívio com os amigos e professores, eu passava grande parte do meu tempo pensando no professor da Católica e amargando uma culpa intolerável em relação a meu quase noivo.Eu visitava o professor na sua casa e ouvíamos uma música chamada "Capricho Italiano".

 Ele era muito politizado, progressista e culto. Rolava muito papo filosófico. Conversávamos muito sobre literatura e ele caia de encantos pelo fato de eu alfabetizar duas crianças filhos da baiana do acarajé, enquanto aguardava o início da aula no período noturno da Católica, cujo prédio ficava no Largo da Palma.Apesar do encantamento mútuo, éramos corretos. Eu, sendo quase noiva, entre nós nada acontecia a não ser uma carícia "inocente" na mão,  olhares e conversas.


 No dia que finalmente nos declaramos um para o outro, resolvemos que o mais honesto era eu romper com meu quase noivo. Saindo da casa do professor, assim o fiz. No dia seguinte, passando dentro de um táxi, avisto meu ex- quase noivo na Ladeira da Barra, chorando aos prantos no ombro do meu irmão. Condoída, desço do táxi e vou consolá-lo.

 A partir daí saio à francesa (ou à italiana?) da vida do professor, nunca mais aparecendo na Católica.  Passei o resto do curso de Psicologia morta de saudades pensando nele que, obviamente, não me procurou mais. Perdi meu curso de Letras, perdi talvez um grande amor e não me casei com meu lindo quase noivo. Fui me apaixonar em novas plagas.

 Mais de 40 anos depois, quando às vezes recordo desta experiência, só me resta sorrir com uma certa complacência da tamanha inabilidade de uma jovem em torno de 19 anos, para lidar com as tortuosas e complexas vias do amor . Confundir compaixão e amor, fugir do próprio desejo a ponto de sumir da vida do professor sem sequer dar uma satisfação, convenhamos!! Haja inabilidade!!

 Será que na idade adulta conseguimos estar melhor aparelhados para manejar essas questões? Ou apaixonados, em qualquer idade, ficamos acometidos de uma certa crise de regressão à adolescência? Pelo que a gente escuta no consultório, parece que em qualquer idade somos seres de linguagem sujeitos às contingências do amor com seus imprevisíveis encontros e desencontros. Capricho à italiana? De que nacionalidade são os caprichos do coração? Fico às vezes desconfiada que o coração é apátrida, "terra em que ninguém passeia", como diz o sábio dito popular. Só nos resta viver nesta errância. E usufruir, porque ninguém é de ferro.
                                                                                                 Marcia Gomes.

domingo, 21 de setembro de 2014

21/09/14                               VOTAR  PRA  NÃO  VOLTAR.

Tenho ficado atenta às datas. Não sei bem o por quê. Também não sei se esse "por quê" substantivo é junto ou separado. Lapsos. Lapsos porque o inconsciente parece existir e ninguém é de ferro. Lapsos que me deixam sem saber se a primavera chega amanhã, dia 21, ou se há um decreto muito antigo postergando em dois dias a data de sua chegada. Não importa. O azul do céu é definitivamente um azul que se espraia sem quaisquer ameaças de cinza.

Penso em N., a auxiliar doméstica que perdi porque só queria trabalhar como diarista sem assinar a carteira. Como preciso de alguém que venha todos os dias e N. não se sensibilizou com meus insistentes apelos para que aceitasse ter carteira assinada e direitos trabalhistas assegurados, o jeito foi despedi-la. Fiquei com o coração amargurado. Temos um vínculo afetivo muito forte e sou uma manteiga derretida para as perdas do afeto. Esta semana ela já veio me visitar e o papo rolou muito gostoso, como sempre foi.  Não quer assinar a carteira mas veio demarcar território em relação a minha nova auxiliar doméstica e fez cara de desaforo pra ela. N. é uma figura!! Totalmente diferente de mim, é muito espaçosa e não leva desaforo pra casa. Totalmente diferente de mim, N. é despachada.

Mas tanto quanto eu, N. é cheia das controvérsias e não tenho muita aparelhagem para entender como lida com as contradições inerentes à sua condição sócio-econômica desprivilegiada. Sempre foi difícil pra mim entender como uma pessoa assim prefere votar em políticos como ACM  Neto, dizendo que o seu avô roubava mas fazia. Usei todo o meu verbo e não consegui convencê-la de que a novo regime do atual governo  beneficia as empregadas domésticas e que ela deveria lutar por seus direitos. Para N. uma carteira assinada é uma mácula. Quando eu a convidei para meu aniversário de 60 anos no ano passado, ela só aceitou comparecer sob a garantia de que na festa haveria outras pessoas negras. Do contrário, podiam pensar que ela era uma assaltante. Assim me disse.

Sempre tratei N. com muito carinho e quando eu ia ao shopping, às vezes a convidava para ir a passeio comigo. O que ela me respondia?  "Vou com a senhora porque a senhora já tem uma certa idade e não deve andar desacompanhada. Mas shopping center não é lugar de empregada doméstica". Se eu entrava em alguma loja, ela preferia ficar me aguardando do lado de fora para não ser tomada como uma assaltante.

 Tanto comentou  sobre a propaganda na televisão anunciando a beleza que ficou a reforma da Ceasinha do Rio Vermelho, que eu, toda animada, a convidei para irmos lá visitar o mercado e comer no Boteco do Edinho uma daquelas comidas que N. gosta. Marcamos o dia e o horário e ela confirmou presença. Resultado: fiquei como uma boba esperando.  N. não apareceu e depois alegou ter esquecido o compromisso. Tenho cá com meus botões a impressão de que ela ficou constrangida de aparecer num restaurante comigo.

Pois é. Não dou conta das idiossincrasias de N. Mas posso intuir que há na sua subjetividade, subjacente a seu jeito despachado e desaforado de ser, uma grande dor. Uma dor secular das rotinas oprimidas das senzalas. Uma dor que a faz se desqualificar como um sujeito que tem direito a frequentar os mesmos lugares que eu frequento, de cabeça erguida. A dor de preferir perder um trabalho de que gosta muito, por não querer formalizar a sua condição de empregada doméstica. A dor de preferir votar em ACM  Neto talvez como uma forma de não se identificar com a grande parcela do povão que reconhece os benefícios que obtém de um governo mais progressista e popular. A grande dor da negação, do não saber o que faz com o que é. Dor na recusa de vislumbrar possibilidades de ascender socialmente para obter um lugar mais dignificante da sua condição de empregada doméstica, negra e mulher.

O sofrimento de N. me comove muito. E cuido de não apagá-lo da minha visão recorrendo a clichês como classificá-la como uma pessoa reacionária, que não tem consciência dos próprios direitos. Ao sintonizar com sua dor, não tento com argumentos políticos racionais persuadi-la a votar em candidatos mais à esquerda cujos projetos atendem aos anseios das camadas populares mais desfavorecidas. Bem que gostaria. Mas intuo que não é por aí. Quando vejo o sofrimento de N. dou-me conta de que há todo um trabalho ainda por fazer, e em várias frentes, para que alguns desfavorecidos despertem do pesadelo histórico desalentador que foi o nosso passado político.

 A propósito de várias frentes de trabalho, sinto muito orgulho da minha colega psicanalista do Instituto Viva Infância, que não tem receio de publicar no Facebook a sua preferência pela candidata Dilma. O Instituto Viva Infância, como muitos de vocês sabem, é uma organização sem fins lucrativos cuja causa é a criança e que entre outros serviços, presta atendimento psicoterápico a crianças e pais de baixa renda. Atendi no Viva Infância por alguns meses, e fiquei encantada com a proposta de atendimento inclusive a crianças autistas, totalmente destituída de vieses caridosos ou populistas. Lá as pessoas são tratadas como sujeitos que têm legítimo direito aos serviços que usufruem. Acho que um trabalho como esse cala mais fundo na consciência política das pessoas do que qualquer discurso eleitoreiro que eu tentasse fazer a pessoas como N.

Nas minhas noites de reflexões meditativas quando volto do consultório, penso muito no que posso fazer em prol de pessoas como N.  Tenho as minhas posições à esquerda, mas não sou, nem de longe uma pessoa bem informada. Não tenho muita paciência para acompanhar programas de notícias, e as opiniões de Marilena Chauí, uma intelectual da filosofia que escreve sobre o desejo, me sensibilizam mais do que ler sobre as plataformas políticas dos candidatos. Compartilhei no Facebook um depoimento muito esclarecedor de Marilena sobre o perigo que representa para o país a candidatura de uma pessoa como Marina.

Desde que abandonei a minha ativa militância na adolescência em uma organização clandestina de esquerda, fiquei um pouquinho desconfiada dos métodos de persuasão política usados naquela época, no contexto da mais cruel repressão da ditadura militar. Tornei-me um pouco cética e anárquica. Algumas vezes cheguei a votar nulo.

 Foi o que aprendi  numa correspondência diária sobre poesia e sobre a vida com todo o seu colorido pessoal de dilemas existenciais com um escritor que foi ativo militante do PCdoB, que me fez no ano passado sair à rua para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra. Falar sobre poesia e sobre o viver com uma pessoa sensível com passado tão significativo, reavivou meus interesses pela política. Porque escrevíamos diariamente  sobre poesia sem deixarmos de considerar temas como a exclusão dos negros, dos deficientes físicos, dos idosos, dos que padecem de sofrimento psíquico, das mulheres que são maltratadas pelos maridos ou assediadas pelos patrões. Acho que é fundamental o "sem perder a ternura". Acho que é fundamental não perder a delicadeza. E é pela via da ternura e da delicadeza que tomo minhas posições políticas. É pensando toda noite no sofrimento de N. 

Por essa via, fiquei muito tocada de ver um homem inteligente, sensível e de esquerda, muito esclarecido politicamente, cavalheiro, me fazer passar à sua frente na hora de entrar no elevador e de subir a escada rolante. Não gosto muito das pessoas politizadas que confundem as mulheres terem direitos sócio-econômico-político-culturais iguais aos homens, com serem tratadas por eles sem quaisquer deferências ou delicadezas. É com esse homem cavalheiro que vou me aconselhar a respeito de em quem votar para os demais cargos além de presidente. 

Pela via da ternura e da delicadeza é que fiquei assombrada de admiração por um senhor de 92 anos, que por ter sofrido um processo de interdição por motivo de saúde, teve cassado seu direito ao voto nas próximas eleições presidenciais. Quando soube que não poderia exercer seu direito de cidadão, este senhor ficou muito indignado e triste. No meu modo de ver a vida e o mundo, este fato tem toda uma beleza particular e constitui um chamado para nos fazer pensar. Pensar em N. Pensar no que há de extraordinariamente dignificante, neste senhor tão apropriado do seu valor como sujeito e do seu dever como cidadão. Nele, nos seus 92 anos, a vida pulsa. E sentir vergonha, uma enorme vergonha, se algum dia me passou pela cabeça a ideia de votar nulo.

Temos ainda um longo caminho a percorrer para que um dia a ficha de N. possa cair. Foram anos infindáveis de escravidão. Foram anos massacrantes de ditadura. Me deixa triste, mas é compreensível a sua desesperança sofrida  e de alguns semelhantes a ela. Isso sem pensarmos na diuturna maciça propaganda na mídia, particularmente nos canais de TV e rádio escutados pelas camadas populares, nos empurrando para um retrocesso político, para uma volta a um passado desalentador.

Mesmo sendo uma pessoa pouco informada das notícias políticas de jornal (prefiro ler sobre literatura, artes e cultura),  mesmo preferindo a opinião de Marilena Chauí e de outros intelectuais sobre as eleições, sou inquieta quanto ao futuro do meu país. Quero que as pessoas de baixa renda que vêm usufruindo de melhores condições de vida, usufruam mais ainda. Quero que pessoas como o vigia noturno do prédio onde tenho consultório, sobre quem falei a vocês na crônica intitulada "Quebra-cabeça", possa ter uma vida profissional promissora quando se formar em filosofia. Quero sobretudo que ele não tenha que esperar a Doutora Marcia descer num fim de dia de trabalho para que possa ter uma interlocução sobre Ariano Suassuna e Manoel de Barros. Quero que ele possa conversar sobre essas coisas com seus parceiros de trabalho. Quero que N. não se sinta constrangida de entrar comigo num boteco da Ceasinha ou  num restaurante mais sofisticado.

Por isso passei a manhã de hoje dando uma devassa no meu minúsculo quartinho de estudos para encontrar meu título de eleitor. Encontrei. Estava no meio de uns papéis destinados à minha inscrição na pós-graduação do Instituto de Letras. Deixei o título guardado bem à vista para não desaparecer de novo. Faço absoluta questão de votar e penso que escolherei com critério minhas candidatas e/ou meus candidatos.

 Se vou votar numa mulher, não o faço apenas por ser mulher. Tenho um pouquinho de pé atrás com o discurso feminista. Pelo menos aquele discurso feminista cheio de investidas fálicas que tenta contemplar as mulheres desqualificando os homens. Acho que embora tendo direitos iguais, para além da anatomia homem e mulher são coisas muito diferentes e assimétricas. Então certamente as questões das mulheres têm especificidades às quais uma mulher pode ser mais sensível, sem dúvida. Penso contudo, que as questões do masculino têm também suas particularidades, às quais uma mulher sensível pode e deve também contemplar. Voto numa mulher pelo programa político que defende para os cidadãos, mulheres e homens cujas demandas específicas devem ser escutadas.

 Não digo a nenhum de vocês "votem nesse, votem naquele". Até tentei dizer a N. Mas acho que usar da prerrogativa de ter sido sua patroa para convencê-la é abuso de poder. Acho que ela, como todos nós, precisa de tempo para amadurecer suas posições. Acho que quando a gente se ocupa das questões da subjetividade, acaba por saber que nem tudo se resolve pela via da mestria das argumentações racionais.

 Não quero persuadir N. enchendo-a de argumentos fazendo uso da minha "superioridade" intelectual. Que superioridade? N. com a escolaridade que teve e as oportunidades que lhe foram oferecidas é muito mais inteligente que eu que não sei registrar números de telefone numa agenda de celular. Não sei. Mas acho que sua questão diz respeito ao lugar que se permite ocupar na vida, no mundo. Isso não se resolve necessariamente pelo caminho da racionalidade. A opressão destitui as pessoas da sua condição de sujeitos desejantes. O que seria preciso fazer para lhes restituir essa condição? Aqui acredito que a psicanálise joga um papel importante. Mas qual? Certamente não seria o caso de recomendar a todas as pessoas como N. que se submetam a um tratamento psicanalítico. Mesmo porque infelizmente a psicanálise não é ainda acessível a todas as parcelas da população.

Estas questões me ocupam a cabeça. As precárias condições de vida de pessoas como N. clamam por  soluções mais imediatas. A fome não pode esperar.  N. passou um mês pernoitando em uma cadeira de hospital público acompanhando seu marido que sofria de cirrose hepática e acabou vindo a falecer. Ela estava tão exausta na hora do funeral, que atualmente não se lembra a data da morte. Como falar de elaboração de luto a uma pessoa que vive assim? O que posso fazer de mais imediato por ela, é exercer com consciência o meu voto. As eleições estão aí.

 Por isso, quando chegar na cabine de votação estarei pensando nela. E em mim também. Quero eleger um governo que possa permitir que algum dia faça parte dos programas de saúde um projeto que vise restituir aos cidadãos sua condição de sujeitos desejantes. Sei que para isso há um grande caminho a trilhar. Há que se definir prioridades. Por isso é preciso primeiro chegar na cabine de votação. Quando lá chegar, também estarei pensando em vocês que me leem, a quem não digo "votem nesse, votem naquele". Votem de acordo com suas consciências. Eu vou votar para dar continuidade a um projeto de Brasil sem desigualdade social.  Vou votar, pra não voltar.
                                                                                                             Marcia Gomes.

domingo, 14 de setembro de 2014

14/09/14                              DIVISÃO,  DE  VISÃO.     

 Amanhã, setembro entre dois números quatorze, faz o mês oscilar na corda-bamba.Uma simetria quase primaveril equilibra a data que acabei de escrever. Hoje, sábado uma moldura plúmbea ainda invernal dá contorno à tarde. Prenúncios ainda vacilantes de uma primavera por vir me animam a pena. Mas teimo ainda em persistir no tom de inverno porque gosto da palavra "plúmbea". Tem peso, densidade e acho que a vi pela primeira vez num romance de Jorge Amado em que o mar encapelado ameaçava os corações das amantes à espera de seus pescadores. Acho que era "Mar Morto".

 Plúmbeo, o céu da tarde não me permite antever quão célere correrá o ponteiro do relógio para que chegue a primavera. Como o mês de setembro cortado pelo meio, meu coração se divide entre ditar um discurso de amante à espreita do que virá, ou um discurso de uma senhora desencantada que nada mais espera. O que prevalecerá?

Não sei, não sei. Só sei que ainda esta semana escrevi a umas colegas que jamais precisei de reposição hormonal e que sou uma incorrigível encantada com as surpresas do amor. Uma amiga querida me deu uma vez um livro de Ítalo Calvino intitulado "Os Amores Difíceis", dizendo ser esse título a minha cara. Por certo. Gosto das coisas dialetizadas, movidas por contradições. Mas ganhei este livro há anos atrás, quando ainda à meia noite não tinha as retinas fatigadas. Agora durmo cedo e acordo cedo. Troquei o hábito de um jantar farto por uma frugal refeição noturna que me preserva o estômago e o sono. Por certo. Gosto dos amores tormentosos, cheios de interdições, percalços. Mas isso era há anos atrás quando o corpo movia-se acompanhando a velocidade de um coração descompassado. Agora meus músculos estão um tanto flácidos e os ossos  cansados.

Será que deixo os prenúncios vacilantes da primavera me animarem a pena ou cedo à sensação de ser um Roland Barthes combalido e recolho os fragmentos do discurso para debaixo do tapete? Enquanto não sei responder, espio o céu da tarde. E o céu se abre. O plúmbeo vai concedendo lugar a um azul com nesgas de sol. Enquanto escrevo, assisto ao canal Arte 1 e me colhe uma cena de um seriado onde o amante rouba a amante de seu leito e a leva numa carruagem. Falam francês. E é aquela musicalidade de frases entrecortadas por arfares. O céu continua se abrindo. Devagar como uma mulher madura vai se abrindo com cautela ao cerco titubeante de um parceiro maduro. O aparelho de TV perde o sinal e a cena dos amantes se interrompe. O ruído de carros na Sabino Silva ilude a escuta, e me toma a sensação de um mar encapelado assustando os corações das amantes à espera de seus pescadores. A televisão volta ao ar e a amante diz ao parceiro que temia que ele morresse antes que se reencontrassem.

Então recordo uma discussão de quarta-feira passada na Letra Freudiana, onde a propósito das insígnias de poder que precisam os machos apresentar, alguém comentou que José Wilker morreu de um infarto de tanto que consumiu Viagra para comparecer viril a uma amante jovem. Penso que se é à custa de infartar, prefiro um parceiro não tão viril que consuma o seu Viagra com parcimônia para poder envelhecer comigo. Penso em Gabriel Garcia Marques e o seu lindo "O Amor nos Tempos do Cólera". E o céu continua a se abrir.

 Lembro também que na discussão da Letra Freudiana comentou-se que as insígnias da masculinidade não estão na posse de um órgão sempre ereto (um homem "neurótico normal" precisa sucumbir à realidade da detumescência para que possa ter uma vida amorosa saudável), mas no quanto um homem pode despertar admiração, respeito pela sua competência, sentimento de proteção e cuidado na sua parceira. Lembro que no início da minha adolescência eu ficava fascinada com um casal de idosos que ficava namorando, se olhando, se beijando e conversando muito, no largo do bairro da Graça. Quanta coisa pareciam os dois ter a conversar!! Eu achava lindo!

Agora o seriado acabou e há um ator sexagenário dando uma entrevista e dizendo que nos tempos atuais da internet e do Facebook, a experiência de intimidade está na criação artística. A amiga que me deu o Ítalo Calvino me telefona e meio sem pensar no que estou dizendo, lhe digo que escrevo sobre o amor na maturidade. Me assusto. Agora o ator entrevistado fala da sua ascendência portuguesa e no fundo da entrevista toca um fado. Me emociono. Acho que fado combina com o amor na maturidade.

 Penso que em começo de outubro Rafael, meu filho adotivo, vem com uma amiga ficar aqui em casa. Gosto muito de ter o status de mãe. Receber seus telefonemas para lhe aconselhar sobre seus planos como professor na universidade. Gosto de ser uma mãe respeitosa do seu desejo, só aconselho quando ele me demanda, e penso mesmo que o melhor que temos a oferecer a um filho é dar o exemplo de ser um sujeito desejante.

Agora volto a olhar o céu. É de um azul claro com nuvens totalmente brancas. Acabou-se o plúmbeo. Penso que hoje estou de visão do céu. Divisando. Divisão. O que faço agora que o céu é azul luminoso e tenho um corpo idoso? O que teria no meu corpo para oferecer a um parceiro? À essa altura da vida é difícil se confrontar com as estrias, as celulites, as adiposidades que despencam e ter que mostrar o corpo. Por que não mostrar? Por que não me ancorar no fato de que não preciso de reposição hormonal? Não é essa a evidência de que tenho ainda um corpo amorável? E pensar que vou ter coragem de postar este texto no Facebook amanhã...

 Vontade de conversar coisas dos meus interesses atuais. Vontade de partilhar, de ouvir sobre experiências. Alguém me contou com entusiasmo que visitou o Museu de Freud compreendendo a importância histórica daquele que trouxe à humanidade mais uma ferida narcísica. Penso que há até pouco tempo atrás eu escrevia num diário intitulado "Palavra Ferida". Vontade de conversar sobre as feridas narcísicas trazidas à humanidade. Acho que Copérnico, Darwin, Freud. Definitivamente gosto de quem compreende a importância histórica de Freud. Gosto de quem se faz respeitar.

Definitivamente o céu ficou azul. Me alegra saber que daqui pra frente haverá cada vez mais céus azuis. Eu, dividida, como o é um bom sujeito neurótico, me permito me alegrar com isso. Não há um bom papo que não cure tempos sombrios.

 Agora no Arte 1 estão passando um texto satírico de Hamlet.  Aprendi no meu curso de psicanálise e literatura que Shakespeare foi contemporâneo de Descartes. "Penso, logo existo." "Ser ou não ser, eis a questão." Hamlet, personagem emblemático da divisão subjetiva, não por acaso. Há então uma coincidência histórica entre o momento em que existem os pré-requisitos para o surgimento da ciência e em seguida da psicanálise, e os dilemas existenciais de Hamlet. Gosto de quem entende de razões históricas. Isso nos permite contextualizar, transcender. Isso nos permite deixar prevalecer a alegria do encantamento com a chegada da primavera. Divagar, pra não assustar, se fecha o ciclo do plúmbeo. É hora de amar de novo?
                                                                                    Marcia Gomes.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

07/09/14                                             O  CISNE  VIVO.

Quinta-feira passada. Prenúncios no ar de primavera à moda baiana. Um dia que não chega a ser acalorado, mas sem os ruídos do vento úmido entrando na varanda do meu apartamento. Para matar as saudades, saio com uma amiga para almoçar num restaurante português aqui perto. Comida honesta, bom atendimento. Como isso me agrada!!

 O papo entre amigas foi delicioso. Falamos até um pouquinho do encontro da turma de Psicologia que acontecerá em 1 de novembro. Falamos do quanto me surpreendeu um escritor que respeitamos muito, haver sugerido que eu publique num livro algumas crônicas selecionadas. Falamos também das nossas preocupações com a saúde uma da outra. Fomos ao banco e estacionamos na vaga para idosos. Com essa amiga eu posso ser eu mesma. Prescindimos de máscaras sociais. Como isso me agrada, me enternece, me gratifica!!

De volta para casa, vou cuidar de fazer alguns contatos para o encontro da turma de Psicologia e me chega a notícia desconcertante. Diante da notícia perco muita energia e não quero fazer mais nada, a não ser falar com Sandra, minha irmã mais velha. Me sinto um tanto em estado de choque. Tento o telefone uma, duas, três, vezes. Sandra não responde. Não sei e não gosto de enviar mensagens. Me sinto desolada, envelhecida e solitária com a noite que chega. Finalmente Sandra atende o telefone e posso partilhar a minha perplexidade.

Conhecemos Cilinho quando eu contava apenas 10 anos, morando no bairro de Nazaré. Nossos pais ainda viviam juntos. Cilinho ficou amigo de Sandra através de um namorado dela que era nosso vizinho. Morava na Rua da Poeira. Que poético esse nome de rua! Tudo que diz respeito a Cilinho me soa poético. Com a separação de nossos pais mudamos para o bairro da Graça e Cilinho muda da Poeira para o Canela. Era só descer um pedacinho da Euclides da Cunha e já estávamos no apartamento dele, um adolescente de rosto delicado, olhos pequenos amendoados, testa muito grande e voz grave-doce.

 Filho caçula temporão de Dona Lurdes que o enchia de mimos. Colega de Sandra no Severino Vieira, os laços de amizade entre os dois se fortaleceram com a intermediação de Bento, agora já outro namorado de Sandra com quem ela se casou e teve minha sobrinha Daniela, de quem Cilinho viria futuramente tornar-se padrinho. Ele e Bento eram unha e carne. Cúmplices nas malandragens que faziam com as garotas, onde um estava, o outro estava também.

Me vejo então já com 12 anos, corpo de mulher feita sob a ebulição dos hormônios. Por conta do namoro de Sandra e Bento convivo com Cilinho que devia ter já uns 17 anos.  Trabalhava na prefeitura e gazeteava trabalho e aulas para fazer poemas e tocar violão. Era sensível, inteligente, delicado e muito sedutor. Eu estava com meus hormônios à flor da pele, também era sensível, delicada, inteligente e não resistia a uns versos bonitos feitos só pra mim. Como resistir àquela voz grave-doce ao som de um violão bem tocado? Quando Cilinho me olhava passava um choque elétrico em todo meu corpo. Eu tinha medo daquela intensidade. Ao tempo em que queria, fugia dele. Houve uma noite em que ele tomou minhas mãos nas suas e me disse estar se cansando das minhas escapadelas.

Fomos milhares de vezes juntos à praia do Barravento. Dançamos a noite toda de rostos colados na festa do Manoel Devoto, onde eu estudava e era presidente do grêmio. Íamos sempre com Sandra e Bento à casa de uma amiga no Cabula comer Maniçoba. Partilhei com ele a minha descoberta de Drummond e de Fernando Pessoa. Aprendi com ele a recitar uns versos de Augusto dos Anjos que terminavam assim: ... "no desespero dos iconoclastas, quebrei a imagem de meus próprios sonhos".  Também, acho que de Raul de Leone: ..."que o cisne vivo cheio de saudade, nunca mais cante  nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne". Cantamos juntos muitas canções da época. 

 Eu me enfeitava toda e me perfumava para estar com ele, mas nem um beijo na boca eu permiti. Cilinho era o primeiro grande amor da minha vida com direito a todos os clichês. Ele se cansou de me esperar e se interessou por outras garotas. Eu, uma donzela abandonada, chorei lençóis de lágrimas e escrevi milhões de versos.

Vieram novos amores pra mim já sem medo, mudei de casa mais uma vez, e, embora ele continuasse amigo de Bento, as contingências da vida nos separaram e ele saiu do meu coração e do meu campo visual.

Quando estava cursando Psicologia na Ufba, encontrei na faculdade o colega Caria. Pequena a aproximação. Batíamos papo de corredor, nunca estudamos juntos, frequentávamos galeras diversas. Muito boêmio, Caria era próximo dos simpatizantes da psicanálise, gostava muito de tomar uma cervejinha, fazer versos e tocar violão. Eu era praticamente noiva nessa época. Caria, se não me engano, já separado da primeira mulher, namorou e casou com uma moça chamada Cléia ou Icléia, ou algo assim. Morou na Vila Matos, se não me engano teve filhos estudando na Via Magia. Mas eu e esse colega de faculdade vivemos sempre meio afastados e chegou um tempo que mais nada soube dele.

Até que chega a quinta-feira passada e nos contatos de preparação do encontro da turma de Psicologia, uma colega me diz que o colega Caria já há algum tempo não está mais entre nós. Transmutou-se em poeira com toda a poesia a que esta palavra tem direito. A minha memória retrocedeu num torvelinho desamparado de recordações.

 Por que a perda de um colega com quem não tive ligação mexeu tanto comigo, trouxe a inexorabilidade da morte pra tão perto de mim, me fez sentir uma solidão infinita diante do anoitecer? Não parece simples responder. Vocês já devem ter adivinhado. Aqui vai mais um clichê: "o primeiro amor a gente nunca esquece". É que o nome de Cilinho era Otacílio Mendes Caria.

 Pra mim, na quinta-feira passada, quem morreu não foi Caria. Foi o meu Cilinho. Morreu um pouco da Marcia de 12 anos que subia num caixote conclamando os colegas pra derrubar a ditadura. Morreu um pouco da Marcia que tendo medo do amor, tremia de amor. Porque qual um cisne solitário sobreviveu a Otacílio uma senhora que perdeu a única possível testemunha do que é apaixonar-se  pela primeira vez sem coragem de beijar na boca. Como eu gostaria de ter podido sentar com ele e relembrar aqueles tempos!

"Que o cisne vivo cheio de saudade, nunca mais cante nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne". Obrigada, Cilinho, por me iniciar, com suavidade, com a delicadeza da poesia, no tortuoso percurso dos desfiladeiros do amor.
                                                                                                                   Marcia Gomes