domingo, 21 de setembro de 2014

21/09/14                               VOTAR  PRA  NÃO  VOLTAR.

Tenho ficado atenta às datas. Não sei bem o por quê. Também não sei se esse "por quê" substantivo é junto ou separado. Lapsos. Lapsos porque o inconsciente parece existir e ninguém é de ferro. Lapsos que me deixam sem saber se a primavera chega amanhã, dia 21, ou se há um decreto muito antigo postergando em dois dias a data de sua chegada. Não importa. O azul do céu é definitivamente um azul que se espraia sem quaisquer ameaças de cinza.

Penso em N., a auxiliar doméstica que perdi porque só queria trabalhar como diarista sem assinar a carteira. Como preciso de alguém que venha todos os dias e N. não se sensibilizou com meus insistentes apelos para que aceitasse ter carteira assinada e direitos trabalhistas assegurados, o jeito foi despedi-la. Fiquei com o coração amargurado. Temos um vínculo afetivo muito forte e sou uma manteiga derretida para as perdas do afeto. Esta semana ela já veio me visitar e o papo rolou muito gostoso, como sempre foi.  Não quer assinar a carteira mas veio demarcar território em relação a minha nova auxiliar doméstica e fez cara de desaforo pra ela. N. é uma figura!! Totalmente diferente de mim, é muito espaçosa e não leva desaforo pra casa. Totalmente diferente de mim, N. é despachada.

Mas tanto quanto eu, N. é cheia das controvérsias e não tenho muita aparelhagem para entender como lida com as contradições inerentes à sua condição sócio-econômica desprivilegiada. Sempre foi difícil pra mim entender como uma pessoa assim prefere votar em políticos como ACM  Neto, dizendo que o seu avô roubava mas fazia. Usei todo o meu verbo e não consegui convencê-la de que a novo regime do atual governo  beneficia as empregadas domésticas e que ela deveria lutar por seus direitos. Para N. uma carteira assinada é uma mácula. Quando eu a convidei para meu aniversário de 60 anos no ano passado, ela só aceitou comparecer sob a garantia de que na festa haveria outras pessoas negras. Do contrário, podiam pensar que ela era uma assaltante. Assim me disse.

Sempre tratei N. com muito carinho e quando eu ia ao shopping, às vezes a convidava para ir a passeio comigo. O que ela me respondia?  "Vou com a senhora porque a senhora já tem uma certa idade e não deve andar desacompanhada. Mas shopping center não é lugar de empregada doméstica". Se eu entrava em alguma loja, ela preferia ficar me aguardando do lado de fora para não ser tomada como uma assaltante.

 Tanto comentou  sobre a propaganda na televisão anunciando a beleza que ficou a reforma da Ceasinha do Rio Vermelho, que eu, toda animada, a convidei para irmos lá visitar o mercado e comer no Boteco do Edinho uma daquelas comidas que N. gosta. Marcamos o dia e o horário e ela confirmou presença. Resultado: fiquei como uma boba esperando.  N. não apareceu e depois alegou ter esquecido o compromisso. Tenho cá com meus botões a impressão de que ela ficou constrangida de aparecer num restaurante comigo.

Pois é. Não dou conta das idiossincrasias de N. Mas posso intuir que há na sua subjetividade, subjacente a seu jeito despachado e desaforado de ser, uma grande dor. Uma dor secular das rotinas oprimidas das senzalas. Uma dor que a faz se desqualificar como um sujeito que tem direito a frequentar os mesmos lugares que eu frequento, de cabeça erguida. A dor de preferir perder um trabalho de que gosta muito, por não querer formalizar a sua condição de empregada doméstica. A dor de preferir votar em ACM  Neto talvez como uma forma de não se identificar com a grande parcela do povão que reconhece os benefícios que obtém de um governo mais progressista e popular. A grande dor da negação, do não saber o que faz com o que é. Dor na recusa de vislumbrar possibilidades de ascender socialmente para obter um lugar mais dignificante da sua condição de empregada doméstica, negra e mulher.

O sofrimento de N. me comove muito. E cuido de não apagá-lo da minha visão recorrendo a clichês como classificá-la como uma pessoa reacionária, que não tem consciência dos próprios direitos. Ao sintonizar com sua dor, não tento com argumentos políticos racionais persuadi-la a votar em candidatos mais à esquerda cujos projetos atendem aos anseios das camadas populares mais desfavorecidas. Bem que gostaria. Mas intuo que não é por aí. Quando vejo o sofrimento de N. dou-me conta de que há todo um trabalho ainda por fazer, e em várias frentes, para que alguns desfavorecidos despertem do pesadelo histórico desalentador que foi o nosso passado político.

 A propósito de várias frentes de trabalho, sinto muito orgulho da minha colega psicanalista do Instituto Viva Infância, que não tem receio de publicar no Facebook a sua preferência pela candidata Dilma. O Instituto Viva Infância, como muitos de vocês sabem, é uma organização sem fins lucrativos cuja causa é a criança e que entre outros serviços, presta atendimento psicoterápico a crianças e pais de baixa renda. Atendi no Viva Infância por alguns meses, e fiquei encantada com a proposta de atendimento inclusive a crianças autistas, totalmente destituída de vieses caridosos ou populistas. Lá as pessoas são tratadas como sujeitos que têm legítimo direito aos serviços que usufruem. Acho que um trabalho como esse cala mais fundo na consciência política das pessoas do que qualquer discurso eleitoreiro que eu tentasse fazer a pessoas como N.

Nas minhas noites de reflexões meditativas quando volto do consultório, penso muito no que posso fazer em prol de pessoas como N.  Tenho as minhas posições à esquerda, mas não sou, nem de longe uma pessoa bem informada. Não tenho muita paciência para acompanhar programas de notícias, e as opiniões de Marilena Chauí, uma intelectual da filosofia que escreve sobre o desejo, me sensibilizam mais do que ler sobre as plataformas políticas dos candidatos. Compartilhei no Facebook um depoimento muito esclarecedor de Marilena sobre o perigo que representa para o país a candidatura de uma pessoa como Marina.

Desde que abandonei a minha ativa militância na adolescência em uma organização clandestina de esquerda, fiquei um pouquinho desconfiada dos métodos de persuasão política usados naquela época, no contexto da mais cruel repressão da ditadura militar. Tornei-me um pouco cética e anárquica. Algumas vezes cheguei a votar nulo.

 Foi o que aprendi  numa correspondência diária sobre poesia e sobre a vida com todo o seu colorido pessoal de dilemas existenciais com um escritor que foi ativo militante do PCdoB, que me fez no ano passado sair à rua para celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra. Falar sobre poesia e sobre o viver com uma pessoa sensível com passado tão significativo, reavivou meus interesses pela política. Porque escrevíamos diariamente  sobre poesia sem deixarmos de considerar temas como a exclusão dos negros, dos deficientes físicos, dos idosos, dos que padecem de sofrimento psíquico, das mulheres que são maltratadas pelos maridos ou assediadas pelos patrões. Acho que é fundamental o "sem perder a ternura". Acho que é fundamental não perder a delicadeza. E é pela via da ternura e da delicadeza que tomo minhas posições políticas. É pensando toda noite no sofrimento de N. 

Por essa via, fiquei muito tocada de ver um homem inteligente, sensível e de esquerda, muito esclarecido politicamente, cavalheiro, me fazer passar à sua frente na hora de entrar no elevador e de subir a escada rolante. Não gosto muito das pessoas politizadas que confundem as mulheres terem direitos sócio-econômico-político-culturais iguais aos homens, com serem tratadas por eles sem quaisquer deferências ou delicadezas. É com esse homem cavalheiro que vou me aconselhar a respeito de em quem votar para os demais cargos além de presidente. 

Pela via da ternura e da delicadeza é que fiquei assombrada de admiração por um senhor de 92 anos, que por ter sofrido um processo de interdição por motivo de saúde, teve cassado seu direito ao voto nas próximas eleições presidenciais. Quando soube que não poderia exercer seu direito de cidadão, este senhor ficou muito indignado e triste. No meu modo de ver a vida e o mundo, este fato tem toda uma beleza particular e constitui um chamado para nos fazer pensar. Pensar em N. Pensar no que há de extraordinariamente dignificante, neste senhor tão apropriado do seu valor como sujeito e do seu dever como cidadão. Nele, nos seus 92 anos, a vida pulsa. E sentir vergonha, uma enorme vergonha, se algum dia me passou pela cabeça a ideia de votar nulo.

Temos ainda um longo caminho a percorrer para que um dia a ficha de N. possa cair. Foram anos infindáveis de escravidão. Foram anos massacrantes de ditadura. Me deixa triste, mas é compreensível a sua desesperança sofrida  e de alguns semelhantes a ela. Isso sem pensarmos na diuturna maciça propaganda na mídia, particularmente nos canais de TV e rádio escutados pelas camadas populares, nos empurrando para um retrocesso político, para uma volta a um passado desalentador.

Mesmo sendo uma pessoa pouco informada das notícias políticas de jornal (prefiro ler sobre literatura, artes e cultura),  mesmo preferindo a opinião de Marilena Chauí e de outros intelectuais sobre as eleições, sou inquieta quanto ao futuro do meu país. Quero que as pessoas de baixa renda que vêm usufruindo de melhores condições de vida, usufruam mais ainda. Quero que pessoas como o vigia noturno do prédio onde tenho consultório, sobre quem falei a vocês na crônica intitulada "Quebra-cabeça", possa ter uma vida profissional promissora quando se formar em filosofia. Quero sobretudo que ele não tenha que esperar a Doutora Marcia descer num fim de dia de trabalho para que possa ter uma interlocução sobre Ariano Suassuna e Manoel de Barros. Quero que ele possa conversar sobre essas coisas com seus parceiros de trabalho. Quero que N. não se sinta constrangida de entrar comigo num boteco da Ceasinha ou  num restaurante mais sofisticado.

Por isso passei a manhã de hoje dando uma devassa no meu minúsculo quartinho de estudos para encontrar meu título de eleitor. Encontrei. Estava no meio de uns papéis destinados à minha inscrição na pós-graduação do Instituto de Letras. Deixei o título guardado bem à vista para não desaparecer de novo. Faço absoluta questão de votar e penso que escolherei com critério minhas candidatas e/ou meus candidatos.

 Se vou votar numa mulher, não o faço apenas por ser mulher. Tenho um pouquinho de pé atrás com o discurso feminista. Pelo menos aquele discurso feminista cheio de investidas fálicas que tenta contemplar as mulheres desqualificando os homens. Acho que embora tendo direitos iguais, para além da anatomia homem e mulher são coisas muito diferentes e assimétricas. Então certamente as questões das mulheres têm especificidades às quais uma mulher pode ser mais sensível, sem dúvida. Penso contudo, que as questões do masculino têm também suas particularidades, às quais uma mulher sensível pode e deve também contemplar. Voto numa mulher pelo programa político que defende para os cidadãos, mulheres e homens cujas demandas específicas devem ser escutadas.

 Não digo a nenhum de vocês "votem nesse, votem naquele". Até tentei dizer a N. Mas acho que usar da prerrogativa de ter sido sua patroa para convencê-la é abuso de poder. Acho que ela, como todos nós, precisa de tempo para amadurecer suas posições. Acho que quando a gente se ocupa das questões da subjetividade, acaba por saber que nem tudo se resolve pela via da mestria das argumentações racionais.

 Não quero persuadir N. enchendo-a de argumentos fazendo uso da minha "superioridade" intelectual. Que superioridade? N. com a escolaridade que teve e as oportunidades que lhe foram oferecidas é muito mais inteligente que eu que não sei registrar números de telefone numa agenda de celular. Não sei. Mas acho que sua questão diz respeito ao lugar que se permite ocupar na vida, no mundo. Isso não se resolve necessariamente pelo caminho da racionalidade. A opressão destitui as pessoas da sua condição de sujeitos desejantes. O que seria preciso fazer para lhes restituir essa condição? Aqui acredito que a psicanálise joga um papel importante. Mas qual? Certamente não seria o caso de recomendar a todas as pessoas como N. que se submetam a um tratamento psicanalítico. Mesmo porque infelizmente a psicanálise não é ainda acessível a todas as parcelas da população.

Estas questões me ocupam a cabeça. As precárias condições de vida de pessoas como N. clamam por  soluções mais imediatas. A fome não pode esperar.  N. passou um mês pernoitando em uma cadeira de hospital público acompanhando seu marido que sofria de cirrose hepática e acabou vindo a falecer. Ela estava tão exausta na hora do funeral, que atualmente não se lembra a data da morte. Como falar de elaboração de luto a uma pessoa que vive assim? O que posso fazer de mais imediato por ela, é exercer com consciência o meu voto. As eleições estão aí.

 Por isso, quando chegar na cabine de votação estarei pensando nela. E em mim também. Quero eleger um governo que possa permitir que algum dia faça parte dos programas de saúde um projeto que vise restituir aos cidadãos sua condição de sujeitos desejantes. Sei que para isso há um grande caminho a trilhar. Há que se definir prioridades. Por isso é preciso primeiro chegar na cabine de votação. Quando lá chegar, também estarei pensando em vocês que me leem, a quem não digo "votem nesse, votem naquele". Votem de acordo com suas consciências. Eu vou votar para dar continuidade a um projeto de Brasil sem desigualdade social.  Vou votar, pra não voltar.
                                                                                                             Marcia Gomes.

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