domingo, 8 de dezembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro...."e....Taperoá.



  • 08/12/13                                             TAPEROÁ

    Vastas recordações comprimidas num espaço exíguo. Era quase uma aldeia. Um lugarejo. Primeiro me vem a praça. Jardim simples e bem cuidado circundado de casas em modesto estilo colonial. A casa do prefeito, não tão modesta, contrastando com as demais.

    Recordo-me de Alzirinha andando de bicicleta na praça. Nós, os filhos do médico, não podíamos pegar carona na bicicleta de Alzirinha. Provavelmente a menina era filha de gente da classe dominante. Quem sabe do prefeito? Também não podíamos ter bicicleta. Onde já se viu tamanho luxo em vida de filhos de comunista? Mas nada disso nos aperreava.

    Muito da rotina da cidade girava em torno daquela praça. Era lá que na escuridão, quando faltava luz -- e sempre faltava --, que alguém em tom fantasmagórico gritava : "Olha a onça!" Circulava o boato de que uma onça pintada se apoderava da praça quando o breu se fazia. Meu pai, desfazendo o ar assustador da lenda e com uma certa ironia, dizia que a onça era o próprio prefeito, devorando selvagem os impostos do povo humilde que vivia da pesca.

    Meu pai insistia em nos explicar que a onça era uma metáfora. E nós lá queríamos saber de metáfora? Queríamos saber de ter medo da onça e perder o sono, como faziam as outras crianças de Taperoá. Mas nada disso nos aperreava.

    Era também na praça que ficava a igreja de São Brás, o padroeiro. A festa de São Brás era o maior acontecimento. Havia uma longa escadaria para alcançar a igreja. Num dia de festa caí escadaria abaixo assustada com o barulho de um foguete e machuquei feio o nariz. Mas nada disso me aperreava.

    Taperoá era uma cidade de braço de rio se misturando ao mar que banhava o Morro de São Paulo. Havia pescadores. Muitos. "Seu" Luís de Abrão, talvez o mais velho deles, está ainda hoje na sala de minha casa num porta-retratos, com um chapéu de palhas de abas enormes. O decano dos pescadores era sogro de Conceição, nossa empregada doméstica. Como não lembrar de Concé com sua tatuagem em carne viva? Concé pegava castanha de caju ardendo em brasa para gravar na coxa o nome do seu amado. Ainda bem que o nome era curto. Ficava com a coxa toda queimada. Mas nada disso lhe aperreava.

    Além da pesca, vivia-se de catar cravo da Índia nas fazendas. Perfumada, colorida e poética atividade artesanal. As pessoas colocavam os cravos a secar em esteiras nas portas de suas casas. Eles iam secando numa gradação de matizes do verde ao preto. Havia também uma fábrica de azeite de dendê.

    Ninguém se surpreendia se encontrasse um caranguejo caminhando placidamente dentro de casa. Era a famosa andada do caranguejo. Algo do ciclo de vida desse bicho o fazia adentrar as casas sem a menor cerimônia. Como posso esquecer da caranguejada com o delicioso pirão que comíamos às escondidas quando nosso pai viajava? Bendita transgressão.

    Agora bem me recordo : havia um caranguejo gigante artesanalmente construído posto no coreto da praça. Sim, sim. Havia a Zameapunga. Festa folclórica muito particular. Mascarados dançando um ritmo próprio desfilavam pelas ruas e depositavam o caranguejo na praça. Todos dependurados nas janelas para ver a Zameapunga passar.

    Como esquecer de Chico Lecó, Cassiano, "seu" Pequenito, Dona Odete e tantos outros? Taperoá era sem dúvida a cidade de tipos humanos interessantes. Mais interessante ainda é que naquela época, transição dos anos 50 pra 60, meus pais se amavam e viviam namorando pela casa. Pra que aperreio?

    Chico Lecó era um doido que passeava solenemente pela cidade com flores espetadas nas narinas. O negro Cassiano, alto e forte, muito forte, fazia rodopio na beira da cisterna com cada um de nós de pé na palma de sua mão enorme. "Seu" Pequenito tinha uma loja de artesanato em cerâmica que nada deixava a dever a uma feira de caxixis. Vendia também tamancos. Dona Odete burlava as fronteiras entre campo e cidade morando num sítio bem defronte à nossa casa. Que doce de leite, o de Dona Odete!

    Que doce deleite memórias de infância quando os pais da gente se amam! Vontade de retroceder no tempo e nunca mais sair de Taperoá, cenário temporário de romance familiar temporário. Taperoá, o lugarejo. Vastas recordações comprimidas num espaço exíguo. Saímos de Taperoá. Mas Taperoá, quem disse, me sai da memória? Pra que aperreio?
                                                                                                            Marcia Gomes.
                                                                          

    sábado, 30 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....." e.....Fênix.‏



  • 01/12/13                                     FÊNIX

    Maçãs e peras se depositam silentes sobre uma bandeja, como natureza morta. Vermelho e amarelo impressionam as retinas e a mistura de aromas me dá notícias da vida. Entretanto mantenho maçãs e peras à distância. Acabo de falar ao telefone com a minha mãe. Fico condoída com a sua vozinha frágil, ressentida que está ela com uma provisória mudança geográfica à qual vai se adaptando com dificuldade.

    Quinta-feira. Trovoada no céu. Chove torrencialmente. Quinta-feira, dia em que não vou ao trabalho. Quinta-feira, dia de folga. Manhã de calor opressivo estrangulado pela umidade da chuva. Ou é a umidade da chuva que fica estrangulada pelo calor opressivo da manhã? Delicada questão metafísica.

    Questão metafísica sem qualquer delicadeza é a relação da boa poesia com o ambiente acadêmico e seus "cacoetes". Parece não haver espaço para bons poetas na academia. Questão metafísica sem qualquer delicadeza é a relação da psicanálise rigorosa com o ambiente acadêmico e seus "cacoetes". Parece não haver lugar para uma psicanálise rigorosa na academia. Desapontamento não surpreendente. Um projeto abortado de um trabalho buscando confluência entre literatura e psicanálise. Eu, é claro, escolho o bom poeta e o rigor da psicanálise e mando os acadêmicos plantar batatas. Então me resta uma quinta-feira para exercer pretensões ociosas, já que o desapontamento não surpreendente me cai como um doloroso alívio.

    Por que não vou ao cinema? Mas o cinema é tão longe! A poucos metros daqui. É que o diabo cutuca com a vara curta da inércia. Essa vida é um "despautério". Não sei se existe essa palavra, quanto mais o que significa. Às vezes teimo em não visitar os dicionários para gozar do anônimo efeito sonoro das palavras. "Despautério" ecoa consonante com uma academia como uma repartição pública cheia de "cacoetes". Essas coisas parecem não fazer sentido. Portanto a vida é um "despautério".

    É um meandro rosa tímido. Um lusco-fusco de solidão. Queria ser grandiosa. Dizer o mundo em palavras. Dizer o quê, se é tão árduo o exercício da palavra? Dizer o quê, diante do inexprimível? Dizer que mundo, se fora a página de cultura, nem leio jornal?

    Queria dar uma festa dentro de um transatlântico. Que festa, se não gosto de festas? O transatlântico seria o melhor significante para uma defesa maníaca. Jamais entrei num navio. Sabe mesmo o que eu queria? Que o Príncipe Encantado viesse e batesse à minha porta. Ao me ver toda roliça, celulitosa, ele já virara sapo. Eu lhe jogaria um punhado de sal e ficaria morgando a minha preguiça em letras neste computador.

    Mas ano que vem, prometo, vou fazer uma dieta, arrumar a casa, se ganhar na loteria. Se ganhar na loteria quer dizer "nada disso farei" porque me sinto tão só! Por que me sinto tão só quando estou acompanhada e me sinto desacompanhada quando o que quero é ficar só?

    É o meandro rosa tímido. Nem branco nem escarlate. Já se viu coisa pior do que uma xícara de chá que amornou além da conta em cima da pedra fria porque o dono não foi buscar? Sou eu. Não fui me buscar enquanto estava quente, perfumada, olorosa.

    Com que cara oferecer uma xícara de chá que se sabe, passou do ponto? Melhor levar o chá para fazer companhia ao sapo. A preguiça é tanta, tão grandes o tédio e a náusea, que sequer me animo a jogar chá e sapo no vasilhame de lixo. Ave Maria, leitor, que texto mais baixo astral! Tudo isso por conta de uma instituição que parece não ter o estatuto da LETRA? Qual o quê?

    Olho para a maçã silente depositada na bandeja. Aspiro seu aroma, deixo que o vermelho impressione as retinas. Estendo a mão e levo a fruta à boca. Mordo. Seu sumo doce e suave escorre reanimando as papilas gustativas. Um imenso prazer de vida recai morno na mucosa do estômago. Alegria, beatitude. Como Fênix, renascida das cinzas, vejo um senhor de cabelos brancos como os meus ao meu lado. Ofereço a maçã a ele. Saboreamos juntos, cúmplices. Vejo bem. Não é um príncipe, nem tem cavalo. É o meu parceiro amoroso. Amor na minha vida.
                                                                                                  Bom domingo a todos.
                                                                                                             Marcia Gomes.
                                                                                            

    domingo, 24 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e....De um outro lugar.‏



  • 24/11/13                            DE  UM  OUTRO  LUGAR

    Fora de casa. Escrevo de um outro lugar. Uma sala de espera. Meu consultório. Aguardo a hora marcada para uma reunião de estudo de Lacan. Então visito a minha sala de espera. Sento no sofá. Contemplo a mulher pendurada na parede. A mulher pendurada na parede tem olhos vazados. Olho para ela da perspectiva de quem me aguarda. Nesta sala, de vez em quando alguém me aguarda. Aguarda e olha para a mulher de olhos vazados. Aguarda o que? Aguarda olhando para a mulher pintada por Modigliani. A mulher cuja cabeça inclinada mal se sustenta num pescoço longuíssimo. Mal se sustenta. Tem um rosto comprido. Na blusa uma gravata também comprida. Tudo nesse quadro é longilíneo. Quem aqui me aguarda, aguarda o que?  Tudo nesse quadro é de um abandono melancólico. Os cabelos da mulher querendo extrapolar os limites da tela. A mulher é triste. Definitivamente. Quem aqui me espera é triste? A mulher tem olhos vazados e olha para o nada. Quem aqui me espera olha para o nada? Quem espera confia em algo mais que o nada para olhar? Ruídos chegam do corredor. Pessoas numa outra sala de espera. Conversas triviais. Quem aqui me espera contempla a melancolia da mulher pintada por Modigliani?  Melancolia tão funda que parece sair da moldura. Conversas triviais na sala ao lado. O episódio "Mensalão". Trivial?  O menino diabético que foi assassinado pelo padrasto. Trivial? A mulher está melancólica e quer sair da moldura. Será sua dor, trivial? Dor de amor? Antes que adivinhe a dor estampada nos olhos vazados da mulher, resolvo abandoná-la. Quem aqui me aguarda especula sobre a dor da mulher?

    Resolvo abandoná-la e entro na sala de atendimento. Abro a cortina. O sol exuberante entra. Colhe de surpresa a planta depositada sobre o chão. Quem eu recebo nesta sala vê a luz do sol? Deito no divã. Vejo a árvore imensa do lado de fora. Galhos verdejantes acenam para a janela. Quem eu recebo nesta sala vê uma árvore imensa com seus galhos verdejantes? É uma árvore frondosa. Raízes bem fincadas e antigas. A luz incide diferentemente produzindo diferentes matizes de verde. Quem eu recebo nesta sala enxerga diferentes matizes de verde? Um passarinho se embalança num galho da árvore. Conforme a velocidade do vento o aceno dos galhos torna-se mais ou menos vigoroso. Quem eu recebo nesta sala percebe a oscilação no aceno dos galhos? O que vislumbra quem eu recebo nesta sala?

    Quem vai saber a razão de uma mulher de Modigliani na sala de espera? Quem vai saber a razão de um divã defronte de uma árvore frondosa e verdejante?  Como saber quando abrir a cortina? Chegou a hora da reunião de estudo de Lacan.
                                                                                                         Bom domingo,
                                                                                                                 Marcia Gomes. 

    sábado, 16 de novembro de 2013



  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e....Lió.‏



  • 17/11/13                              LIÓ

    Era franzina. Quase uma folha ao vento. Idosa. E antiga na casa. Uma espécie de agregada. Vinha do Engenho Velho de Brotas para o bairro de Nazaré costurar para seu Zacarias Germano Gomes e toda sua família. Vinha costurar e dormia uma noite, duas, quando viu já estava morando lá.

    Pelos meus cálculos, deve ter se aproximado da família por volta de 1930, quando meu pai estava com um ano de idade. Leonídia, nessa época, já era uma senhora contando em torno de setenta anos. Acompanhou o crescimento de meu pai e de meus tios do segundo casal, provavelmente fazendo contraponto ao alheamento taciturno de Dona Santinha, a da tribo.

    Não estaria na presença de Leonídia na casa, a resposta para a indagação se meu pai e seus irmãos teriam podido ter uma infância lúdica e afetuosa? Sem dúvida ela foi uma espécie de mãe postiça que cuidou daquelas crianças com amor e dedicação. Na verdade, pela sua idade, nem mãe. Avó.

    Então com seus óculos de aros redondos, vestidos sempre de mangas compridas e golas altas, cabelos grisalhos e longos amarrados num coque, altiva e magra como uma vara de pescar, Lió -- assim era chamada -- testemunhava continente a dinâmica daquela família grande e um tanto desordenada que acolhia numa mesma casa algumas gerações. Testemunha muitas vezes sentada à máquina de costura.

    Embora já uma avó postiça, ninguém a chamava de Dona, Senhora, nada dessas coisas. Pra todos era simplesmente Lió. Creio que até tratada com uma certa irreverência por parte de meu pai que gostava de perturbá-la com algumas anedotas indecentes e mexendo jocosamente com sua solteirice. Simplesmente Lió.

    Pois foi esse nome, de uma anciã beirando os cem anos, o primeiro que pronunciei nos meus balbucios. Isso está registrado por meus pais no meu álbum de bebê que guardo até hoje. Assim como lá está também registrada a história da barata que conto já, já.

    Quando nasci, ainda que muito idosa, Lió era forte, saudável e lúcida. Uma figura de apego e de referência fundamental na minha vida. Há milhares de fotografias, ela me carregando no colo. Era minha madrinha e me cercava de mimos. Eu usufruía, quase com exclusividade, de seus paparicos. Nas fotos eu apareço sempre com vestidinhos singelos cheios de laços e bordados confeccionados por ela com o maior esmero. Lió se ocupava da máquina de costura e da sua pequena afilhada.

    Tantos paparicos e a vontade determinada de não me contrariar, que Lió permitiu que eu chupasse uma barata. Eu era de meses. Engatinhando pela casa encontrei o nojento inseto e o coloquei na boca. Meus pais, felizmente, surpreenderam a cena e quase morreram de tanto brigar com Lió, por tamanha e imprudente falta de juízo. Ela apenas respondeu que não achava de bom alvitre me desapontar arrancando a barata de minha boca. Lúcida, hein?

    Lió era hipertensa. Portanto cozinhava sua comida em separado, sem sal. Sua, não. Nossa comida. Porque se meus pais bobeassem, era com aquilo que eu era alimentada. E comia e gostava. Como não gostar do que me oferecia aquela madrinha tão terna, amorosa? Meus pais que se resolvessem com ela. Eu estava muito feliz com seus mimos.

    Eu sempre fui muito sensível. Deve ter sido muito sofrida a minha separação de Lió quando a deixamos na casa de Nazaré e mudamos para Taperoá. Não tenho registro desta dor, que certamente houve, talvez atenuada com as minhas vindas a Salvador para fazer os óculos.

    Mas com aquela anciã que me iniciou nos ritos de celebração da vida, mesmo à custa de quase engolir uma barata, tive uma precoce, doída, assustadora e primeira experiência com a morte.

    Nós já morávamos em Ibirataia, eu com uns sete pra oito anos, e meu pai me chamou para uma conversa séria. Não me poupou. Me disse que Lió havia voltado para a casa de seus familiares no Engenho Velho de Brotas porque estava muito doente. E disse mais. Talvez com os recursos discursivos com que se argumenta com uma criança, meu pai me deixou ciente que minha madrinha iria morrer em breve.

    Dessa dor eu guardo registro. Entramos, eu e meu pai, numa casa muito humilde no Engenho Velho de Brotas. Havia pessoas ao redor. Primeira vez que fiz contato com pessoas de Lió que não fossem da minha família. Ela, esquálida, praticamente só cabelos, deitada numa cama, me reconheceu. Compenetrada na minha dor, me despedi de minha madrinha.

    Ainda esta semana, um amigo poeta muito sensível, me mandou de Jorge Luis Borges : "Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos".
                                                                              Bom domingo a todos,
                                                                                                  Marcia Gomes.

    sábado, 9 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e......Estilhaços.



  • 10/11/13                                  ESTILHAÇOS

    Das minhas entranhas hoje não brota nenhuma personagem feminina "interessante". Nenhuma terna empregada doméstica segurando um candeeiro nos tempos de infância sombria. Nenhuma avó indígena com suas beberagens. Nem mesmo a minha mãe com seus cinquenta cadernos de escritos bíblicos, vem em meu socorro.

    Estou só, circundada de paredes neste apartamento, e os carros lá embaixo na avenida me chegam com seu barulho célere de quem passa desapercebido, indiferente à solidão que me toma. Nenhum carro irá parar, sequer reduzir a velocidade para chegar perto de alguém em meio ao claustro. Enclausurada de mim mesma. Uma monja que não mais reconhece a face de Deus.

    A estante exígua no meu quarto, bem defronte à minha cama de casal desfigurada, colabora para compor uma atmosfera intimista. Clarice Lispector, "A Paixão Segundo GH"; J. C. Onetti, "Tão Triste como Ela"; Hilda Hilst, "Estar Sendo Ter Sido"; Drummond, muito Drummond e o seu reverberativo, sonoro, bem ritmado desfile de nomes de flor, resultando numa corola sem cor nem nome, anônima, depositada em uma sepultura. Esse poema se chama "Declaração de Amor".

    Na estante exígua de meu quarto, ao contrário daquela que fica em meu gabinete de estudos, meus livros de cabeceira, como que a me olhar, silentes, paralisados. Jorge Luis Borges e "Sete Noites" com a lindíssima conferência sobre a cegueira. Meus livros me olham me interrogando por que não os manuseio, não os folheio, apenas olho para eles como se fossem mudas testemunhas do que se passou comigo.

    Dentro de mim. Há dentro de mim uma borboleta abatida por um caçador impiedoso. O algoz de mim. O tempo que passa fazendo de toda espera um adiamento intolerável. Não posso esperar. Não há tempo. E no entanto, espero. Escrever, sabendo que a mensagem não tem destinatário algum.

    Na mesa da sala, junto ao computador, "olha" para mim "O que é um Autor ?" de Foucault. Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Letter, litter. Penso em Joyce e não quero saber de Foucault. Quem disse que quero enveredar pelas questões filosóficas que cercam a autoralidade?  Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Saber fazer com meu Sinthoma?

    Estou bem aqui dentro, espiando para os meus "Brejos D'alma". Vejo canetas, cadernos, tudo espalhado na mesa da sala. E o computador silente. Puta dor. Nenhuma mensagem a acalentar um coração voraz da palavra poética. Onde estão meus amigos poetas? Resulta que o coração esmorece, perde a voracidade. Como querer devorar o verso do outro? O verso que não me pertence, o outro que não me pertence. Voracidade de nada. Anorexia poética.

    Me toma a inapetência de quando meu único irmão homem nasceu depois de mim. Me toma a falta de coragem de encontrar a "Paulicéia Desvairada". Ainda hoje, meu filho adotivo colombiano falou de São Paulo, comigo no Skype : "quando você vem? estamos lhe esperando aqui." Tenho anorexia de São Paulo, o meu objeto mais desejado. Como uma púbere com receios de ser desejada ganhando formas e não come, não vou a São Paulo.

    A imobilidade dos móveis no apartamento me espreita clamando por novidade. Por que não muda-los de posição? Por que não cortar o cabelo? Por que não fazer compras? Não são esses os estratagemas das mulheres desamparadas, abandonadas na sua insatisfação?

    Felizmente li hoje "O Tabu da Virgindade" para discutir no seminário da Letra Freudiana. O velho Freud, sempre tão novo, tão atual! Diz que a mulher é toda ela tabu. Nas tribos primitivas o deflorador costuma não ser o candidato a marido. Para poupar-se do perigo que representa uma mulher que sangra. O que há de tabu em mim, que sou mulher? No que assusto, o que há de proibição ? Será que não me escondo travestida daquela que se expõe? Me digo tanto ao outro que já não sei quem sou quando o outro me escapa?

    Enquanto escrevo vejo que na varanda, recebendo a luz que entra pela vidraça, há uma planta em broto. Um verde vívido de uma futura trepadeira que tímida, se insinua querendo ganhar espaço. Sou eu. Quero ganhar espaço. Como a planta que se insinua, sem nenhum projeto. Simplesmente brota. Ela espera? Esperar até quando? Ao invés de sair exuberante por aí, atraindo aquele que queira recolher meu viço? A planta é um broto. Pode esperar. A planta que como Fênix, renasce.

    Essa mesma planta que hoje brota, já vi desfolhada, decaída. Mas ela teima em renascer, sob os cuidados de Nice. Pra renascer, tem que cuidar. Cuidar de mim. Hoje nem isso me tira desse tom melancólico que me deixa sem personagem sobre quem escrever, que me deixa soturna entre as paredes do apartamento, que me deixa ausente de mim, por ser o outro inalcançável.

    Junto ao computador outro livro me espreita. Não ouso tocá-lo. Não ouso anteprojetar. Não, não e não. É ilusão de ótica. Não é um livro. É apenas um peso de papel em forma de pássaro. Não canta, não pousa, não voa. É o antipássaro. Eu, como se fosse de vidro, em estilhaços. Vou cortar o cabelo.
                                                                                                    Bom domingo a todos,
                                                                                                            Marcia Gomes.

    sábado, 2 de novembro de 2013




  • "Blá, blá, blá domingueiro....." e....Santinha da tribo.‏



  • Caro (a)  leitor (a),

    É chegado o mês de novembro. 2013 ensaia sair do palco. Foram belas cenas. Novos personagens a me trazer uma rica interlocução. Muito estudo, trabalho feliz, entrar no facebook, fazer o blog. Principalmente estar com o outro. Escutando, papeando, indo ao cinema, vendo o pôr do sol, escrevendo e-mail escutando a linda orquestra de passarinhos ao amanhecer. Pensar no envelhecer, na morte, o tempo como algoz, mas sobretudo pensar no amor. Ainda não tenho ideia de como será o último ato. Enquanto aguardamos o grande final, boa leitura do meu texto!

                             03/11/13           SANTINHA  DA  TRIBO

    Seu apelido era SANTINHA. Seu nome? Petronilha. Provavelmente foi batizada assim, quando pôde, contra a vontade, vir beber das águas da civilização. Afinal, onde já se viu uma índia de tribo ser chamada Petronilha? Quem lhe pôs o nome, pétreo, estaria a antever seu jeito de estar no mundo? Pedra e ilha.

    Como já disse, SANTINHA era de origem índia. Ou indígena? Atualmente vivo me dando a perder com as palavras. Cabocla, era ela. Não será por isso que às vezes sou tão antissocial, com meus "calundus" tribais? Interessante que "calundu" parece ser uma palavra de origem africana. Índia e negra, eu sou. Sem lugar? Voltemos a SANTINHA.

    Pelos meus cálculos, devia-se estar por volta de 1925. Seu Zacarias, um tradicional escrivão, dono de cartório no Fórum de Salvador, ficou viúvo, com uns quatro filhos pra criar. Precisava então de uma esposa. Não sei detalhes da história. Segredos de família guardados a sete chaves que se vão lendo nas entrelinhas. Talvez, pagando, recebeu aquela cabocla como candidata.

    Olhos oblíquos, pele acobreada um tanto amarelecida, cabelos negros batendo na cintura, nenhum sorriso, assim era SANTINHA. Ascendência índia, já com sinais de miscigenação, foi "pegada a cachorro". Assim ouvi a empregada da casa contar. Quer dizer, colocaram cachorros no mato na caça à SANTINHA. Foi apreendida, e, desse modo, desenraizada de sua gente, sua tribo, chegou para casar com Seu Zacarias.

    Dá pra acreditar? Já em começos do século XX, em plena Salvador-Bahia, uma mulher é brutalmente afastada do seu povo que vive no mato, de suas raízes índias e levada à força a morar na cidade, no convívio da civilização.

    Que convívio, o quê? SANTINHA  era amuada. Circunspecta. Como um bicho acuado, vivia em silêncio. Não sei como acabou de criar os filhos de Seu Zacarias e teve outros tantos. Pelas minhas contas teve seis rebentos.

    Minhas primeiras recordações dela, vêm desde os meus três anos de idade, mais ou menos. Nunca a vi, nem de longe, exercendo os papéis esperados de uma mulher, na década de 50. Nunca a vi administrando a casa, dispensando quaisquer cuidados aos netos. Nunca a vi conversando com os filhos. Assim, conversa de papear mesmo, nunca vi. Só curtas frases entrecortadas de silêncio. Como esposa, não sei como era. Quando a conheci já era viúva. Seu Zacarias faleceu antes que eu nascesse.

    SANTINHA se ocupava de uma gata. Tinha uma forte vinculação e a batizou com o curioso nome de "Tapeação". Mas aqui não sou psicanalista. Sou "escrevedora" de histórias para entreter o leitor. SANTINHA dava banho em "Tapeação" amarrando-a dentro de uma fronha. E lhe fazia afagos, lhe dizia coisas, dava à gata tudo o que não dava às pessoas da casa.

    Acordava cedo e logo se envolvia com as suas infusões. Na casa tinha um armário com algumas prateleiras sobre as quais depositava os vasilhames para receber os chás. Assim ela passava o dia : cozinhando ervas, preparando chás. Ainda me recordo dos aromas. Aquilo, para nós, não tinha serventia. Era um demorado, silencioso ritual de resgate de suas origens. As ervas e a gata, as razões de viver de SANTINHA.

    Tenho desse tempo uma recordação muito particular : estávamos, eu e SANTINHA na sala da casa, ela concentrada nas suas infusões. Na mesa estava servido um arroz-doce, que eu, gulosa, subi num banco para alcançar. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Não lhe ocorria me tirar dali ou me servir o arroz-doce. Minha estripulia tentando alcançar a guloseima, resultou num corte sangrento no meu queixo. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Eu chorei, berrei, gemi, gritei. SANTINHA e as suas beberagens. Meu pai e minha mãe vieram em meu socorro. Levei vários pontos no queixo. Ainda hoje tenho restos da cicatriz. SANTINHA, de costas pra nós, ocupada com suas beberagens.

    Também recordo, quando Maria José, minha tia, era levada por enfermeiros para ser internada no Juliano, SANTINHA, de costas, cuidando das infusões. Aqui a nosologia psiquiátrica faria a festa. Mil rótulos pra SANTINHA. Podíamos chamar aquilo de indiferença? Não quero rótulos civilizatórios para SANTINHA. O irremediável abismo cultural. Despojada dos seus, das suas origens, ela não pertencia a nosso mundo. De familiar, só a gata. Por que será que ela imprimia marcas civilizatórias à "Tapeação" e lhe dava banho? Não sei. Não sei. Vai entender cabeça de índia, "pegada a cachorro"......

    Nunca entendi. Só sei que gosto de ficar no meu canto, tenho meus amuos. Estranho muito o que não me é familiar, e, às vezes, me recolho nos meus livros, meus escritos. Nunca entendi as idiossincrasias de minha avó paterna. Só sei que gosto de ficar no meu canto.
                                                                                                  Bom domingo a todos,
                                                                                                                   Marcia Gomes.                       


    quarta-feira, 23 de outubro de 2013

    "Blá, blá, blá domingueiro...."e...."Ernesto, meu rapaz!"

    27/10/13

    Caro(a)  leitor (a),

    Creio que todos vocês ficaram sabendo que recentemente um pretenso assaltante, quebrou ao meio a armação dos meus óculos. Por isso, fui ainda esta semana à ótica providenciar óculos novos, e me recordei deste texto escrito em 2002 em CONVERSA  MARCIANA. O texto é uma homenagem póstuma a Joaquim Leal Gomes, meu pai.

    Vocês devem saber que a frase "Ernesto, meu rapaz!" circulou muito na mídia há anos atrás na propaganda da Ótica Ernesto, senão a mais antiga, uma das mais antigas óticas de Salvador. Comecei a usar óculos com 5 anos de idade e naquela época, década de 50 ainda, Sr. Ernesto estava instalado na Avenida Sete, na altura da Praça da Piedade.

    Longe de mim querer fazer propaganda de óticas, ainda mais nos meus escritos. Mas sempre vou lá por tradição. Para matar as saudades de meu tão querido pai. A diferença, é que quando fui lá por esses dias, fui tranquilamente sozinha e não precisei de ninguém para dizer que a armação ficou bonita. Eu me achei bonita com ela no rosto. Mesmo de 2002 para cá, felizmente, a gente cresce e com muita saudade, prescinde do pai. Espero que vocês apreciem o texto abaixo.

                                           ERNESTO,  MEU  RAPAZ!  (a meu pai, in memoriam)

    Não gosto de comerciais. Acho a propaganda, em geral, muito perversa, alienante. Gosto do amor. Mesmo passional. Amor àquele que brincava com aeromodelos, com palavras e animais. Àquele que nos botava apelidos excêntricos, tomava banho de mar de sapatos e adorava contar "causos" de pescador. Àquele de mente brilhante que fazia versos; tão incompetente pra ganhar dinheiro que vivia a repetir: "sou pobre mas sou honesto". Àquele que era médico, ateu, mas acendeu uma vela quando eu, pequenininha, beirava a morte.

    Amor ao insensato. Me apresentou a Freud quando eu contava apenas 10 anos. Ao asséptico. Não nos deixava sentar no chão porque tinha micróbios. Ao passional. Quando apaixonado, ficou irreconhecível. Aparentemente, em razão disso, nos machucamos a todos. Amor àquele que nos deixou tão cedo. Aos 45 anos. E foi conversar com as estrelas, ficando eu numa orfandade de temer estar no mundo sem a sua mão enorme, mulata, segurando a minha.

    A sua mão enorme, mulata, segurando a minha a caminho da Ótica Ernesto. Era um passeio de lamber os beiços de tanto prazer. Já devo ter dito : nasci quase cega. Primeiro eu pensava que o mundo era assim, impressionístico. Mas quando veio a curiosidade pelas letras, eu precisava dos contornos e enfiava o texto no nariz. Assim comecei a usar óculos aos 5 anos de idade.

    Taperoá não tinha ótica, muito menos oftalmologista. Como fazer então? Viajar pra Salvador com direito a baldeação em Santo Antônio de Jesus. Eu e meu pai. Dr. Joaquim, se lhe querem saber o nome. Creio que chegávamos à noite, pois lembro do encantamento com as luzes de neon. Na mala vinha um vestido único para a ocasião de passear em Salvador. Acho que era de organdi.

    Vejo a minha mão tomada por aquela outra, enorme. Me ajuda a subir no ônibus (ou será que era ainda bonde?), rumo ao Doutor Papaléo. Ele sempre me deixou sentir compenetrada pelo jeito de falar. Se não fosse imaginação de criança de 5 anos, eu poderia dizer que a conversa de pai e filha era conversa de igual para igual. Observávamos a rua e também tipos humanos, gosto comum aos dois. Mas se a mão era enorme, é certo que o tom da conversa não devia ser menor. Digamos que nos acomodávamos à diferença de tamanhos e vinha muita risada. Essa sim, nos igualava. Risada não tem tamanho.

    Onde era Papaléo perdido ficou na memória. Mas lembro do consultório. Austero, como convém a um doutor com ares de europeu. Na verdade um velhinho bondoso de deixar criança quieta com a cara enfiada naquelas aparelhagens. Mesmo assim, de vez em quando eu desviava o olhar. Não podia resistir a examinar, curiosa, como numa escrivaninha cabia tanta tranqueira. Nada que me interessasse, senão a desordem. Finalmente o bom velhinho nos entregava a receita sem cobrar um tostão. Naquela época, a ética não permitia colega cobrar de colega. Era um tempo de elegância.

    E por acaso havia algo mais elegante do que a Loja " Duas Américas" com a sua casa de chá? Hora de lamber os beiços com aquelas iguarias. Se lambuzar não podia porque o pai era rigoroso nas regras de educação.

    E satisfeitos partíamos para a Praça da Piedade encontrar outro velhinho. Esse, de fato, europeu? Que tanto velhinho é esse? Há de perguntar o leitor. Nem eu sei responder. Deve ser pelo que passa em cabeça de criança. Passou dos 40 , é vovô. Pois o velhinho nos atendia com presteza e paciência. Era seu Ernesto. O dono da ótica. Aqui a paciência é dado fundamental. Pois eu punha a armação no rosto, punha uma, punha outra com direito de escolher. Mas meu rosto no espelho era pouco mais que um borrão. Apesar do livre arbítrio, pedia socorro a meu pai para dizer qual ficou mais bonita. E ele apontava aquela que em mim ficou exata, parecendo uma professora. Porque progressiva a miopia, todo ano era hora de passear com meu pai.

    Muitos anos se passaram, eu fiel ao velho Ernesto, embora já falecido. Mas na hora do espelho, doído enfrentamento. Vira um caso lacrimoso a escolha da armação. Quem, pra dizer se ficou bonita?
                                                                                                Bom domingo a todos,
                                                                                                                      Marcia Gomes.        

    quinta-feira, 17 de outubro de 2013

     "Blá, blá, blá domingueiro...." e....Texto extraído.

    Texto de 20/10/2013
     
     
     
    ATO  FALHO  (à Myriam Urpia, minha mãe)
                 
                                                  
    Minha mãe, perco-a pela distância (mora em outro Estado), ganho-a pela maturidade. Quanto mais envelheço, mais gosto de minha mãe. Gratidão, perdão, ternura, compaixão. Uma saia tecida de palavras piegas que enxergo aos borrões.

    Minha mãe cresceu uma vida controvertida. Primeiro morou num casarão enorme e elegante no bairro da Graça. Depois, enquanto seus pais estiveram separados, dividiu um único prato de caruru com seus seis irmãos. Coisas que aparentemente se repetem ao longo de diferentes gerações. Mas ganham seu tom de novidade mais ou menos trágica, porque muda a cultura, porque cada um é um.

    Minha avó materna, na Rua dos Aflitos (ai, as palavras), dava aulas de datilografia para comprar o prato de caruru. Minha mãe, quando se separou de meu pai, vendia livros de literatura de porta em porta. Trabalho em casa, trabalho na rua e a mesma tenacidade dessas mulheres de diferentes épocas, com coragem de sair das relações se não são mais amadas.

    Lembro que numa dessas histórias que já contei, falei que aos meus oito anos o mundo parecia ruir sobre nossas cabeças. E, minha mãe, que não era exagerada nem eloquente, pelo contrário, naquele tempo tímida, nos contava "causos" para nos entreter. Se não tinha o dom da palavra como meu pai, tinha a voz linda, musical. Não era só a voz. Era toda linda. Parecia aquelas estrelas de cinema da década de 50. Estrela de cinema triste e mal cuidada.

    Seu nome, Myriam, é o da Virgem Maria em hebraico. Seu cheiro ainda é o mesmo, até hoje. Açucena, talvez. Mais pelo nome do que pelo cheiro. Eu não sei ao certo que cheiro açucena tem. Mas é um "açucenar" de maternidade.

    Quando as lides domésticas davam trégua, minha mãe sentava no batente do fundo da nossa casa em Ibirataia e contava. Sem amargura, com bom humor ela nos disse que queria ser engenheira. E o que é pior: ficou sabendo que estava destinada a ser pianista. Onde já se viu, naquela época, uma mulher fazer engenharia?  As aulas de piano eram seu terror. Mesmo no tempo da Rua dos Aflitos, continuaram as aulas. Creio que era sua tia Noêmia, professora da Escola de Música quem patrocinava.

    De modo que não tendo como escapar, minha mãe teve que dar um concerto. O grande problema eram os sapatos. Eram todos velhos, de segunda mão e um par de sapatos custa bem mais caro que um prato de caruru. Não havia dinheiro. Chegou o dia do concerto. Praticamente em cima da hora o dinheiro apareceu. Provavelmente dádiva de tia Noêmia.

    Minha mãe foi mandada às pressas à sapataria e comprou o "par" de sapatos, sem que houvesse tempo de experimentar. Ao sentar-se ao piano, sentiu-se torta dentro deles. De repente deu-se conta que havia comprado dois pés esquerdos. Não sabia se olhava para o teclado ou para os pés. Não teve conserto mas houve concerto.

    Minha mãe formou-se em música. Conheceu meu pai no Largo da Piedade, junto ao conservatório. Nada conservadora a minha mãe. Nunca a vi tocar piano. Vejo-a sim a fazer planilhas, orçamentos, cálculos complicados, inclusive os meus.
                                                                                                                 Marcia Gomes

    P.S. Texto extraído de CONVERSA  MARCIANA (2002). Coletânea de escritos para circulação entre amigos. 
     

    quinta-feira, 10 de outubro de 2013

    "Blá, blá, blá domingueiro......"e.....Textos extraídos. ("Conversa Marciana" e "Declaração de amor II")
     
     
     
    Texto de 13/10/2013 
    
     
    Foto: Debruçar-se.
    Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)
     
     
     CONVERSA  MARCIANA


    Um encontro com Ana Cecília. Foi assim que aconteceu : eu dizia que comida mexicana era boa e ela dizia que não gostava daquela comida. Sem muita insistência, venci a contenda. Pedimos um taco cada uma. Ela gostou tanto que repetiu.

    Nem sempre a gente repete quando gosta tanto. Às vezes, a gente se repete e não gosta nada. Mas isso é papo que deve escapar a essas linhas que não quero pesadas. Quero-as leves.

    E falávamos, eu e Ana, de Drummond. A propósito de seu centenário, a propósito de uma palestra que ela faria sobre ele. Contamos uma à outra como foi o nosso primeiro encontro com Drummond. Sim, porque embora ele fosse parcimonioso em assuntos de encontros, ele nunca se furtou a estar conosco. E, mais ainda, foi ele quem promoveu o primeiro encontro entre nós duas. A primeira vez que fui à casa de Ana foi para conhecer o seu volume da obra completa. Velho como o meu.

    Só para dar uma idéia, estávamos em 1972 e meu primeiro encontro com Drummond aconteceu quando eu contava apenas 12 anos. Eu tinha medo da escola pública. Eu tinha mesmo medo de escolas. Pois se só fui frequentar uma aos 10 anos !  Antes era professora particular. Então na escola pública minha mão pingava na sala de aula. Até parecia que eu estava no "Congresso Internacional do Medo". Mas estava apenas numa sala de aula cheia de adolescentes às vezes muito mais velhos que eu, muito mais espertos e maliciosos que eu.

    Abrindo um parêntese, olhei agora para um retrato de Freud que tenho no meu mural. Senti um pouco de medo da severidade de seus julgamentos. Mas isso é coisa de adolescente de doze anos. A mesma cujo pai sugeriu que lesse Freud aos dez. Mas sejamos leves. O olhar de Freud no meu mural é compassivo, doce.

    Se minha mão pingava na sala de aula, quiçá no recreio. Eu não me aventurava. Ficava na sala rezando que a próxima aula viesse logo. E um dia veio. Ela se chamava Ana Maria. Não deve ser à toa que as minhas mais antigas amigas se chamam Ana. Ana Maria, a professora de Português, era alta, magra, morena e muito mais coisa que a minha memória não alcança mais. Mas a memória nunca perde o alcance do que soa. A voz de Ana Maria era como o olhar de Freud. Doce. E com a doçura de quem sabe estar fazendo uma reverência, ela distribuiu uns papéis.

    Era uma crônica. Chamava-se "Conversa de Velho com Criança". E era Drummond. E o que eu fiquei sabendo de Drummond naquele dia? A candura. Ai que palavra dura de tão cândida!  Era Drummond. Uma dureza cândida. Na crônica, a cumplicidade tão sutilmente construída, do velho Ferreira com as estripulias da menina no bonde, foi secando a minha mão e me encharcando por dentro de dor bonita. A dor do belo. Não havia mais nada senão Drummond. O meu Ferreira.

    Depois da aula lá estava eu no recreio pela primeira vez. A minha mãe sem que nada soubesse, no mesmo ano me presenteou com a obra completa em papel bíblia. Não tinha dinheiro mas vendia livros de literatura batendo de porta em porta. Não pensem que perdi meu medo de recreios, reuniões sociais e coisas que tais. Se preciso ir, penso na dor bonita de ser "gauche". Penso em Drummond. Vou em frente.


    P.S.1 Texto extraído dos escritos intitulados CONVERSA  MARCIANA (Salvador, 2002) para circulação entre amigos.
     
     
     

                                                              DECLARAÇÃO  DE  AMOR  II
     


    Para cada um, o sorriso, o enternecimento, a alegria do outro era o bem mais caro. Com o fervor próprio dos apaixonados nos dedicávamos, entregues, a intermináveis jogos de encantamento. Em nossa busca, era como se escavássemos um poço de delícias que não se esgota. Havia sempre uma nova forma de dizer "gosto de você". Estávamos apaixonados.

    Naquela época você trabalhava na Avenida Santo Amaro. Meu consultório, no Itaim Bibi. Almoçávamos juntos quase todo dia. Eu lhe pegava no trabalho e aproveitávamos aquela horinha sagrada, nossa, para pormos os corações em dia. Falávamos de tudo. Sua literatura, nossas descobertas profissionais, as nossas alegrias, nossas dores.

    Às vezes brigávamos. Brigávamos feio. Eu tenho o péssimo defeito de confundir o outro em momentos do afeto mais delicado. Por medo. O seu defeito, explodir intempestivamente quando se sente ameaçado. Também nos permitíamos fazer silêncio, esse comovido cúmplice da intimidade.

    Era véspera do meu aniversário. Você telefonou, todo esbaforido, para fazer duas estranhas perguntas. Queria saber o tipo de açúcar que podem usar os diabéticos. Respondi, e, curiosa, quis saber porque. Segundo me disse, você estava obtendo informações para construção de um personagem. A segunda estranha pergunta era : "que horas são"? Para a qual você pretextou alguma coisa convincente que eu não me lembro mais. A ela não respondi, ou melhor, respondi que não podia respondê-la. Meu relógio havia quebrado e eu não comprara outro ainda. O seu tom de voz ao telefone era de menino peralta que não quer ser pego no pulo. Sou meio lerdazinha. Nesses momentos do afeto mais caro, fico meio retardada. Em seguida você me ligou de novo, convidando para almoçarmos juntos no dia seguinte. Embora o fizéssemos diariamente, aquela data era especial e merecia convite. Topei. Não havia melhor forma de celebrar meu aniversário.

    Você entrou no carro portando uma sacola como se fosse uma bomba. Proibida a mais longe intenção de tocá-la. Você fazia malabarismos corporais para carregá-la. Todo o mistério existencial parecia residir ali. Inibindo qualquer manifestação de curiosidade a respeito, você explicou ser o conteúdo da sacola coisa pessoal, indevassável. Portanto, nada de perguntas. Concordei, intrigada. Almoçamos. Teria você esquecido meu aniversário? Não o mencionou, a não ser um beijinho de cumprimento, nenhum afago. E o meu abraço? Eu já ensaiava o momento de reivindicá-lo, chegando perto de ficar magoada. Frustrada com o possível esquecimento, eu já nem me dava conta daquele insólito objeto que se interpunha na nossa relação, ameaçador, porque secreto.

    Mencionei a vontade de pedir uma sobremesa, adiando reclamar o meu abraço. Estranho, você quase suplicou que eu não a pedisse. Estranho mesmo. O abraço tornava-se inadiável. Tínhamos horário para voltar ao trabalho. Para chegar ao cúmulo da esquisitice, você me perguntou se eu não queria ir ao toalete. Concordei mais por obediência do que por necessidade. Intuí estar naquela ida ao toalete a chave de todo o mistério. Apressei-me em ir, ansiosa que estava para que fosse posto fim àquela enigmática forma de celebração, desconcertante.

    Voltei do toalete mais que depressa. Você não estava na mesa. Escondido, me espionava de algum canto do restaurante. Sobre a mesa, um maravilhoso bolo de aniversário, um cartão e um presente. Era um relógio. Como não percebi? Sou mesmo lerdazinha. "Pra você lembrar o tic-tac de um coração que lhe adora", dizia o cartão.

    Você se aproximou sapeca, orgulhoso. Não era pra menos. Era o autor do bolo, dietético. Ficara até a madrugada exercendo seus dotes culinários. Era irrepreensível, o resultado. Repreensível é fazer tanto suspense, quase me matar de susto para me dar um abraço. É que além de lerda, eu gosto às vezes de surpresa.
     


    P.S.2 Texto extraído de RECORTES (Salvador, 1991). Escritos para circulação entre amigos.
                                                                                   
     
           Marcia Gomes.
                                                            

    quinta-feira, 3 de outubro de 2013

    "Blá, blá, blá domingueiro......."e.....Texto extraído. ( CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.)


    Texto de 06/10/2013



    Foto: Boipeba. Florescer..
    Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)



     CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.
     
    Um dia, indo à feira, apaixonei-me por uma casinha na Vila Madalena. Tinha, na frente, uma área luminosa, a céu aberto. Havia muros brancos onde poderia se esgueirar uma unha-de-gato. Não titubeei. Mudei-me. Com o coração ainda um pouco doído. Doendo uma separação conjugal que ao mesmo tempo me aliviava. A vila, com seus enternecedores paradoxos, prometia, se não dissipar a dor, pelo menos acalentá-la. Mal sabia eu que seria depois de separada, que viria a viver a dor de amor indissipável, inacalentável, "razão" da minha vinda de volta para Salvador. Quando a gente se repete, embora mudem as pessoas, persiste, denunciadora, a viciada escolha de objeto.
     
    Pois é. Mudei-me para a Vila Madalena. Afinal, não é em qualquer bairro que um girassol enorme brota, teimoso, em plena calçada ! E lá brotava. Em meio à sacralidade da santa e o desvario da puta, Madalena. Em meio à graça dos nomes de rua :Purpurina, Harmonia, Fidalga. Em meio às rotinas nostálgicas dos velhinhos e à  irreverência transgressora dos artistas.
     
    Na minha rua predominavam os velhinhos. Casinhas simples, mantidas a singelos cuidados de aposentados. Nas manhãs de sol, todos eles acorriam aos portões e lá ficavam, contemplando, na sua placidez, a rua, como se fosse a antevisão da eternidade.
     
    Mudei-me. Tudo no bairro o fazia parecer imune à maldade. E eu, dormia a sono solto, quando o ladrão levou consigo o banco dianteiro do meu carro. Velho, talvez para fazer face à morte, tem sono leve. Acordaram a tempo de ver o ladrão levando o banco, na sua barulhenta impunidade. Solidários, confabulavam. Logo eram duas facções : os pró e os contra acordar a dona do carro. Liderando os contra, estava o guardião maior do sono da donzela. Segundo ele, uma moça tem direito ao sono, irrevogável, pelo menos até que se anunciem as primeiras cores da aurora. Isso, a despeito do que quer que tenha sido roubado. "Inda mais essa moça que trabalha tanto e se recolhe tarde". Era verdade. Sempre precisei trabalhar à noite, no consultório.
     
    E assim foi feito. Sua opinião prevaleceu. A moça, quando acordou, já ia alto o sol da manhã. Era sábado. Saía, desavisada, em direção à feira, motivo de alegria por si só. A feira, na Vila Madalena, é um acontecimento estético-social. Formas, cheiros, cores, sons e tipos humanos invadindo as ruas. Pois então ia a moça à feira, quando vários vizinhos se aproximaram notificando o fato.
     
    Mais comovida com o gesto do que assustada com o roubo, procurou saber de quem partiu sensível adivinhação das idiossincrasias de seus hábitos. Detesta ser acordada, seja qual for o motivo. E agradecia.
     
    Finalmente foram apresentados. Com a sobriedade que convém aos quase oitenta anos, ele disse : "Eu sou Chakib, às suas ordens". A moça, adivinhando ser a solenidade mera fachada, brincou : "Também esfiha e coalhada?" Ele era de origem árabe, via-se pelo nome. Sorriu e prometeu apresentá-la a seus dotes de cozinheiro.
     
    Iniciou-se então aquela bonita amizade. Sr. Chá - assim ele gosta de ser chamado- , no seu ócio de aposentado, estava sempre à porta, intrometido, acompanhando vigilante os destinos dos moradores da rua. Que não me leiam as feministas, considerava-se o guardião da suposta desproteção das mulheres que vivem sozinhas.
     
    Tão logo entrava um homem na minha casa, tocava o telefone. Era Sr. Chá colocando-se disponível para me proteger, caso alguém me importunasse. Sinto tê-lo frustrado, sempre. Nunca foi chamado. Não pra isso, é claro. Também, se o chamasse por outro motivo, jamais viria. Não ficava bem. Ele, um homem sozinho, entrar na casa de uma moça também sozinha, explicou-me. De modo que o nosso caso amoroso acontecia da porta pra rua. Exceto quando havia alguma amiga na minha casa. Aí ele vinha e contava "causos" e "causos" dos seus tempos de mascate.
     
    Adorava ópera. Chorou emocionado quando lhe dei de presente um toca-discos para escutar Pavarotti. Tanto quanto a ópera, a horta, o jardim, o pomar. As maiores jabuticabas já vistas nesse mundo; couves, cheiro verde, alface, almeirão; rosas, cravos, rendas portuguesas; tudo era generosamente distribuído com a vizinhança. A mim, Deus sabe porque, cabia o melhor quinhão. Através de quibes e acarajés derrubamos fronteiras geográficas, cronológicas, raciais.E era entre nós uma ternura sem conta.
     
    Acima e além de tudo, exercia a função poética de guardador de minha luz. Tão logo anoitecia, se punha a postos. Era um holofote que ficava do lado de fora iluminando meu caminho de entrada. Às vezes, algum passante se atrevia a apagá-lo. Ele intervinha, severo. E lá permanecia de plantão até que eu chegasse do trabalho.
     
    Quando tudo foi desfeito, aquela lâmpada foi, felizmente, presenteada a ele. Nada mais justo, nada mais certo. Às vezes, eu penso, toda minha luz ficou lá, para sempre. Não faz mal, tá bem guardada. Saudades, Sr. Chá !!!
     
    P.S. Texto extraído de  RECORTES (1991). Coletânea de escritos para circulação entre os amigos.

                                                                                    Marcia Gomes.  


    "Blá, blá, blá domingueiro...."e....Textos extraídos. ("DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I" e "PARANÓIA")


    Texto de 29/09/2013



    Foto: A Letargia. Sabotagem à Mais-Valia?
    Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


    DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I

    Foi há muitos anos.1985.Eu tinha a pele acobreada dos raios de sol generosos de quem volta de férias da Bahia. O coração em alvoroço. Você era um amigo à moda de amante século XIX. E eu nem saberia suspeitar onde termina o amigo, onde começa o amante. Você, tampouco. Talvez menos ainda. Será que tínhamos como álibi dizer que o amor inocenta? Eu, embora infeliz, era compromissada numa relação de casamento que ia chegando ao fim.
     
    Você, de São Paulo, me enviou, para inaugurar o Ano Novo, uma foto sua junto com rosas vermelhas.Rosas vermelhas de surpresa foram suficientes para pôr meu coração em alvoroço.
     
    Eu, alvoroçada mas tímida, cheguei de surpresa. Se avisasse a data, mal conteria o sobressalto da expectativa.Creio que foi desta vez. Tenho dúvidas. Estava dura de grana.Muito dura. Havia pedido demissão do emprego que me mantinha, a contragosto, de pés amarrados ao passado na Bahia.Foi com dor, mas cortei os laços. Naquele tempo começar de novo não me atemorizava.
     
    Desempregada, dura, voltei de ônibus.Havia uma geladeira no ônibus. E na geladeira do ônibus havia sorvete pra você. Que loucura! Trinta e seis horas de calor inclemente e lá estavam: mangaba, cajá, umbu. Sapoti? Sapoti não tenho certeza. Talvez não fosse época. Mas é impossível falar em você sem lembrar sapoti.
     
    O coração em alvoroço não se impediu entristecer ante a vida miserável do interior da minha terra. O ônibus, cruel, parecia persegui-la. Era quase proibido sentir-me apaixonada em meio àquela paisagem.
     
    Cheguei a São Paulo às cinco horas da manhã. Em São Paulo, às cinco horas da manhã é noite ainda. E pensar na preguiçosa, lenta e sorrateira aurora em São Paulo me lembrou "A Morte do Leiteiro" que você, segundo me contou, recitava na sua adolescência. Leite e sangue se misturam compondo os tons da aurora....mataram o leiteiro. O motorista de táxi me roubou e ficou impune...
     
    Assaltada, mas feliz, fui ter com você à tarde.Você me abraçou por trás e o meu corpo pareceu dissolver-se no tamanho do seu abraço. Desfeito o abraço, intimou-me docemente: "Vamos tomar um café?" Fomos sempre cúmplices em café de máquina que só agora chega na Bahia. Contanto que não passasse das 5 da tarde. Senão você perdia o sono. Deus me livre fazer você perder o sono. Aliás, bem que gostaria.
     
    Fomos tomar o café. Subimos no ônibus. Descemos do ônibus e toca a caminhar. Era fim de semana e eu usufruía, saudosa, o tom bucólico das ruas do centro de São Paulo. O que me prometia um café tomado assim tão longe?
     
    Você me guiava no emaranhado de ruas.Estava perdida. Pra que me achar? Você conhece São Paulo como a palma da sua mão. Linda mão, diga-se de passagem. Caminhando, olhávamos os tipos humanos. Como o café, também é hábito comum. Como nos divertíamos ante o inesperado das cenas dessa gente multifacetada de São Paulo! Os nordestinos, especialmente, que percorrem as vitrines com o olhar comprido.
     
    De repente, chegamos. Você tinha um ar maroto. Tímido. E a doçura do olhar. Não tenho esperança de encontrá-la em ninguém mais. E, o que é pior, nem em você agora...Tomamos o café. "Gostoso", "tá forte", "tá quente", "tá fraco".Tá tudo o que pode ser um café.
     
    Acabado o café, você toma minha mão, a põe no seu peito, e diz: "Alguma coisa acontece no meu coração".Estávamos na esquina da Ipiranga com a São João.
     

                                                           
    PARANÓIA

    Hoje estou feliz. Escrevi uma carta entrecortada. Esse motivo de felicidade não vem ao caso. A não ser para dizer que já não sei mais como se escreve um texto feliz, ainda mais com esse nome tão pesado.Como, de volta à Bahia saber escrever um texto feliz? Como, escrever um texto feliz, exilada?
     
    Pois eu também estava feliz naquela ocasião. Passamos um ano longe, eu e você. Nunca um longe foi tão saboroso! Eu usufruía gota a gota cada momento da sua estada fora. Era minha a sua alegria. Cada cidade visitada, cada descoberta, cada novo encontro pessoal, cada tudo.....a gente compartilhava.
     
    Seu quarto ocupava o primeiro andar da casa. Lá, da sua escrivaninha, na sua máquina de escrever, eu lhe fazia mil cartas. Às vezes a revoada de pássaros no céu, às vezes o pôr do sol, uma música, qualquer coisa do cotidiano era notícia que eu lhe mandava.
     
    Você deixara as suas coisas comigo, plantas, pessoas, papéis, inclusive a casa. E eu cuidava. O desvelo se renovava diariamente, como se fosse você chegar amanhã. Um ano era pouco para preparar a sua chegada. Os envelopes de suas cartas eram azuis. Dentro, a poesia revelada. Somadas, dariam um livro, se você quisesse. Se não o mais bonito, o mais fiel  ao seu ofício de com o deslizar da pena deixar pegadas nos caminhos que o coração percorre.
     
    O nosso amor, imenso, a nenhuma categoria se aplicava. Era estranho, transgressor, desafiava. O carteiro do Sumaré, todo dia, parecia lambuzado de alegria; o carinho, no envelope, mal cabia. Transbordava. Não era só o carteiro. Uma vez, um eminente portador internacional me entregou delicados doces de marzipã, dietéticos. Você se dava ao trabalho de visitar lojas especializadas.
     
    Outra vez, lhe mandei uma colcha de retalhos feita por mim. Causou estranheza. Aqueles diversos pedaços de panos ajuntados, pareceram aos europeus testemunhas da nossa pobreza, brasileira. Estavam redondamente enganados. Testemunhavam, isso sim, a riqueza da nossa relação pacientemente costurada.
     
    Nesta história, tão bonita, pra que aparecer percalços? Apareceram. Quem já viu amor sem percalços? De repente, talvez por força do medo de toda aquela intensidade, medo do meu próprio desejo, deixei a sua, voltei pra minha antiga casa. Em razão disso, as suas coisas, embora cuidadas, não o eram mais diariamente. Outra vez, lá estavam os nós. Difícil desatá-los, ainda mais por carta.
     
    Num dia cheio de acidentes e obstáculos, você chegou. Dezesseis de abril, não esqueço. Por razões de acidentes e obstáculos, a gente dificilmente se encontrava. Finalmente aconteceu. Nos encontramos numa tarde outonal no Largo do Arouche, para conversarmos. Passeamos, tocados pelo tom bucólico da praça. Sentamos em algum lugar, se não me engano, com cadeiras na calçada. Você me presenteou com um maço de violetas.
     
    Culpada, constrangida, pedi-lhe desculpas por, de certo modo, ter abandonado suas coisas, sua casa. Então você disse que me desculpava e que independentemente do modo como cuidei das suas coisas, tinha a fantasia de me levar a um juiz de paz. Não tenho registro da emoção. Deve ter sido pânico. Apavorada, me deu um branco, não entendia o que você falava.Eu não suportava. Então fui agressiva com você.
     
    Você explodiu em fúria. Saiu, abandonou-me sozinha na praça. Antes porém, sugeriu que eu fosse consultar o dicionário.Não resolveria. Era no coração que o significado não cabia.
     



    P.S.1. Digitando em setembro de 2013, este texto que quando escrevi intitulei "Paranóia", vejo hoje que caberia chamá-lo  "masturbação de uma histérica de compêndio psicanalítico". 
     
    P.S.2. Textos extraídos do manuscrito RECORTES (1991). Digitados por Ana Cecília e Virgílio para me presentear no meu aniversário e fazer circular entre amigos.
                                                                            
             Marcia Gomes.