sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

25/01/2015                                           INVENTAR

Cara leitora, caro leitor,

Hoje vou dando prosseguimento à série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", com a principal finalidade de divertir Dona Myriam, que felizmente já iniciou as sessões de fisioterapia com drenagem linfática e simpatizou muito com a fisioterapeuta. Tomara que elas conversem muito e que o tratamento contribua para reduzir o edema, aliviando as dores do lado em que foi feita a mastectomia. Tomara também que meu sobrinho neto Cauã Fraga cumpra o prometido e imprima esse texto para que sua bisa possa ler.

Eu estou radiante de alegria com a excelente colocação no concurso para professor da Universidade Federal do Sul da Bahia conquistada por Rafael, meu filho adotivo. Estou feliz e orgulhosa porque Rafa agora faz parte da instituição cujo proposta de trabalho ele muito admira e também porque trabalhando na Bahia ele fica mais perto de mim. Parabéns, Rafa!! Vitória merecida!!

Espero que junto a Dona Myriam vocês também se divirtam com esta história que me foi lembrada por Sandra, minha irmã mais velha.

                                                               INVENTAR 
Pois é. Na década de 60 mudamos de Taperoá para Ibirataia. Deixamos a cidadezinha de tipos humanos como Chico Lecó que desfilava tranquilamente pelas ruas com flores nas narinas, e fomos para onde desfilavam pelas ruas ameaçadores e ostentando poder, os playboys filhos de grandes fazendeiros de cacau. Deixamos a cidadezinha de economia quase artesanal onde predominava a pesca, e fomos para onde o capitalismo já mostrava suas garras, deixando inconciliáveis, de um lado aqueles da classe dominante, de outro, a plebe rude que pelas condições insalubres do trabalho nas fazendas de cacau, vivia se consultando no consultório de meu pai.

Perdemos o nosso frequente e salutar contato com pessoas do povo que em Taperoá gozavam da maior respeitabilidade social, para sermos recebidos, quando chegamos a Ibirataia, pela família de um prefeito reacionário e parceiro dos latifundiários. Perdeu-se a simplicidade dos catadores de cravo da Índia que nas portas de suas casas nos davam, afáveis, um dedo de prosa, e passamos a ser vistos com desconfiança pelos carregadores de sacos de cacau empregados  nos armazéns.

 A cidade era feia, não tinha festa folclórica como a Zameapunga de Taperoá, as crianças muito diferentes de nós, filhos de fazendeiros e comerciantes importantes, usavam bolsa, luva, chapéu e roupas da moda mandadas buscar em Salvador. A isso meu pai, indignado, chamava de "bossalidade". Nossos pais, é claro, desaprovavam estes estranhos costumes, e nós, destoando dos demais, continuamos nos vestindo de forma apropriada para o clima da cidade. Forma simples e despojada cabível a crianças filhas de pai comunista.

Para nós, isso implicou em nos sentirmos excluídos e marginalizados por aquelas crianças afeitas aos extravagantes hábitos de consumo, e, por isso demoramos a fazer amigos, a encontrar a nossa turma na cidade. Nos enturmamos com Marineide, filha de uma humilde vendedora de pastéis e banana real, e com Naldo, Nalva, Néia, Neide e Nólia, filhos de Dona Cide e de "Seu" Ramos, um simples funcionário de um armazém de cacau que morava defronte de nossa casa.

A mudança de cidade não foi sem consequências para a nossa vida privada. Afinal o social e o individual se interpenetram numa multifacetada determinação. De modo que saímos de uma vida inocente e quase paradisíaca que tínhamos em Taperoá, para uma vida em que sofríamos com as contradições que não compreendíamos e que logo se refletiram na vida conjugal de nossos pais que passaram a se desentender. A eclosão do golpe militar de 64 culminou com a nossa urgente e traumática mudança para Salvador, e logo em seguida nossos pais se separaram.

Então como fazíamos para viver em Ibirataia? Não era fácil. Sentíamos muita saudade de nossos deliciosos banhos de mar em Boipeba, e a atividade fotográfica de meu pai sofreu um declínio. Onde a paisagem bonita? Onde os tipos humanos originais? Meu pai, tão logo ficaram claras suas inclinações ideológicas, passou a ser antipatizado e mesmo perseguido pelos representantes da classe dominante.

 Era o médico dos pobres, muitas vezes remunerado com frangos, frutas e verduras. Minha mãe já sofrendo com seus problemas conjugais, se empenhava em cuidar de nós inventando estratagemas para nos divertir e também para se divertir. Muito longe estava de se identificar com os hábitos fúteis das esposas dos fazendeiros e comerciantes. A não ser Dona Cide, não tinha amigos naquela cidade inóspita.

Embora tivéssemos alguns, não éramos muito estimulados no uso de brinquedos industrializados. Eu, minhas irmãs e as amiguinhas filhas de "Seu" Ramos, brincávamos no quintal de fazer cozinhado usando panelinhas artesanais de cerâmica, tínhamos bonecas de pano e com elas exercíamos nossa criatividade lúdica. Lula, nosso irmão, acompanhava meu pai aos domingos no campo de aeromodelismo.

 Quando Dona Myriam, nossa mãe fazia uma fornada de biscoitos, nos estimulava a modelar com a massa figuras que viessem à nossa imaginação e, Sandra e eu, as mais velhas, nos aventurávamos a compor palavras. Era muito divertido comer biscoitos cujas formas foram criadas por nós. Tínhamos muitos livros de literatura infanto juvenil a exemplo do "Mundo da Criança", "Tesouro da Juventude" e a coleção de Monteiro Lobato. Grande parte do tempo minha mãe nos entretinha e educava contando e encenando aquelas histórias.

Um dia, de férias da escola da Professora Teresinha, talvez cansado das fadigas do repouso, Lula folheava uma revistinha e encontrou instruções para confeccionar um cineminha artesanal. Infelizmente não me recordo de detalhes e, por isso, não seria capaz de reconstituí-los aqui. Mas era muito simples. Pegava-se uma caixa de papelão e cortava-se o fundo, colando no espaço vazio deixado, uma tela de papel manteiga. Em seguida, montava-se com recortes de revista uma série de cenas que colocadas na ordem certa viriam a ser o roteiro do filme.

 Montado o roteiro da história, colava-se a sequência de cenas num barbante . Cada ponta do barbante era enfiada em um orifício que ficava em uma das duas  laterais da caixa de papelão por trás da tela de papel manteiga, de modo que conforme puxássemos o barbante, uma determinada cena ficava em evidência, podendo-se em seguida passar para outra e para outra e assim sucessivamente até o final da história. Se fosse só isso, seria um cinema mecânico, sem graça. E para que o papel manteiga? É que ele, por ser fosco, opaco, fazia uma sombra sobre as imagens ofuscando-as, para quem estava do lado de fora da tela como expectador.

 Para aumentar o mistério e a curiosidade sobre as cenas do filme, se fosse de dia, fechavam-se as janelas de modo a ficar escuro. Se fosse à noite, apagava-se a luz para obter o mesmo efeito. No escuro, o animador do cinema vinha com uma vela acesa por trás da cena e do papel manteiga, e movimentava a vela dando visibilidade e animação aos personagens. Era um efeito espetacular, particularmente para crianças que viviam em cidade como Ibirataia. Era preciso haver pelo menos dois operadores. Um para puxar o barbante passando a sequência de cenas, e outro movimentando a vela para dar animação aos personagens.

A descoberta de Lula foi para nós como a invenção da pólvora. Logo todos nós estávamos envolvidos e gastávamos horas na montagem dos roteiros. Dona Myriam, já de há muito preocupada com nosso isolamento social, sugeriu que fizéssemos sessões de cinema para outras crianças da cidade. Sandra confeccionou os ingressos com cartolina. Minha mãe deu a ideia de cobrarmos um preço simbólico para com o dinheiro ela fazer brigadeiro, bolo e suco para oferecer aos expectadores no intervalo da sessão. Com um lençol improvisou uma cortina para ser aberta somente na hora que começasse o filme. Marineide e as filhas de Dona Cide se encarregaram de divulgar a novidade para as outras crianças de Ibirataia.

 De repente, de uma hora para a outra, tínhamos frequentando a nossa casa meninos e meninas filhos de pais pertencentes às mais variadas camadas sociais. De repente não mais importava que fôssemos filhos de um defensor de ideias comunistas, e que usássemos roupas confeccionadas por simples costureiras da cidade. Éramos os criadores da grande invenção que todos queriam ver. Acho que foi essa a minha primeira importante experiência com a arte e com o seu enorme poder de transformação social.

 Em Ibirataia havia um cinema que não frequentávamos. Os filmes eram americanos, de péssimo gosto e nada apropriados para crianças. Com o nosso cineminha construíamos histórias que estimulavam o nosso imaginário infantil e nos tornaram os criadores de uma empreitada que revolucionou nossas vidas e a vida da cidade. Primeira importante experiência com a arte e de com ela construir um novo mundo suplantando o sofrimento. Experiência que me deixou para sempre impressionada e movida pela ideia de inventar. Inventar, inventar sempre, para além das adversidades.
                                                                        Marcia Myriam Gomes.

domingo, 11 de janeiro de 2015

11/01/2015  Cara leitora, caro leitor,

Aqui estou eu retomando a crônica de domingo. Voltando de uma viagem inesquecível a Maceió onde fui passar o Ano Novo com Dona Myriam Urpia, minha mãe, que caminha em franca recuperação da cirurgia. No dia 8 passado ela se consultou com uma oncologista que a considerou em muito bom estado. Apenas prescreveu uma medicação para prevenir recidivas e sessões de fisioterapia com drenagem linfática para que ela recupere mais rapidamente a motilidade da mão e braço direitos.

O encontro com minha mãe em Maceió foi uma experiência muito bonita de amor e respeito mútuos. Para mim foi profundamente importante poder cuidar um pouco da minha mãezinha e meu irmão e minha cunhada, embora estivessem com a casa cheia,  me receberam com a maior generosidade, compreendendo e acolhendo com todo carinho minha necessidade de estar próxima de Dona Myriam o maior tempo possível. Foram 6 dias em que vivi uma intensa e amorosa relação com ela, voltando para Salvador muito saudosa mas tranquila em saber que minha mãe recebe deles o melhor em afeto e cuidados materiais.

Assim que cheguei em Maceió, instalei uma cadeira cativa no quarto dela e só a deixava no fim do dia, quando já se havia preparado para dormir. Pela manhã passávamos a vista por álbuns de fotografia caprichosamente organizados por ela, fazendo uma verdadeira hora da saudade entre lágrimas e risos. Consultávamos alguns textos religiosos e líamos juntas um livro que muito a encantou, presente da sua sensível neta Lívia. É a história de um jovem que abandonou tudo para cuidar da avó que sofria do Mal de Alzheimer. Depois do almoço eu ficava velando seu sono e mais tarde lhe dava banho. Em seguida assistíamos à missa pela televisão e depois do jantar eu acompanhava com ela a novela de que gosta muito.

Me comovi ao observar sua alegre interação com a meiga bisnetinha Iasmin e com o inteligente e peralta Iuri. Fiquei muito bem impressionada com o cavalheirismo do adolescente Cauã Fraga que consciente de que sua bisa precisa de carinho e atenção assumiu comigo o compromisso de imprimir toda semana o "Blá, blá, blá domingueiro..." para ela ler.

Na hora da despedida não consegui controlar o choro convulso e aqui estou de novo escrevendo para ela as "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe" confiante na promessa de Cauã. É a minha forma de mitigar a saudade e me fazer presente na vida de Dona Myriam, já que os dois telefonemas diários que fazemos não apagam a tristeza causada pela distância geográfica.

 Nutrida pelo feliz encontro com minha mãe aguardo ansiosa a próxima semana. É que Rafael, meu filho adotivo colombiano, prestará a última etapa do concurso para professor da UFSB. Torçam por ele que tem estudado muito numa aposta apaixonada pela proposta da universidade. De volta a Salvador tive um feliz encontro com um grupo de colegas de Psicologia, contemporâneas da faculdade, onde papeamos sobre vários assuntos. Foi um evento leve e divertido num fim de tarde de verão.

Recomeço o "Blá, blá, blá domingueiro..." com essas "Peripécias de infância". Espero que vocês e Dona Myriam se divirtam. Ela, quando ler, provavelmente dando muita risada, me dirá: "Não me lembro de nada disso. É pura imaginação sua. Quem conta um conto, aumenta um ponto." Imaginação ou não, muito prazer me dá de pensar que com meu texto posso entreter a ela e a vocês.

                                                   PERIPÉCIAS  DE  INFÂNCIA

Acho que já contei a vocês que quando criança eu adoecia muito. Também já mencionei que eu e Sandra, minha irmã um ano mais velha, temos personalidades quase opostas. Sandra sempre foi muito extrovertida, cheia de energia e gosta de comandar. Já eu sou mais tímida, quieta e fui muito cuidada por todos já que era chegada a ficar enferma com frequência.

Quem mais cuidava de mim era minha mãe. Mulher de médico, iniciada nos saberes da farmacologia, sem que precisasse chamar meu pai, com muito carinho e delicadeza sabia prescrever o remédio certo para debelar uma infecção, abaixar uma febre, aliviar uma dor. Tenho muito viva a recordação do desvelo com que ela cuidou de mim e Sandra quando fizemos cirurgia de garganta no Hospital Espanhol. Ainda hoje, quando adoeço (raramente, felizmente) meu primeiro impulso é telefonar a Dona Myriam para perguntar que médico devo consultar e o que devo tomar.

Eu estava com cinco para seis anos e vivíamos em Taperoá. Cidadezinha muito interessante pelos seus tipos humanos onde vivíamos felizes. Mas a felicidade não me impedia de adoecer. Um dia amanheci com febre alta e tive que ficar acamada. A empregada faltou, meu pai estava ocupado no consultório e estávamos sem antitérmico em casa. O fim da década de 50 no interior era um tempo em que era relativamente seguro deixar duas crianças sozinhas em casa por curto espaço de tempo no caso de uma emergência. Dona Myriam não teve opção. Me deixou em casa com Sandra enquanto ia à farmácia de Dona Adiles buscar o remédio.

Sandra me vendo fragilizada pela febre logo assumiu ares de quem cuida e se dispôs a fazer o que eu precisasse. Eu tinha a estranha mania de escondido dos adultos comer sal. Não sei se sofria de pressão baixa, se vivia desidratada, se era uma idiossincrasia metabólica ou mesmo mera peraltice. Então diante da oferta de ajuda de Sandra, que criança não tem juízo, eu disse que queria comer um pires de sal. E para que a arte tivesse todos os ares de transgressão a que tínhamos direito, não podia ser sal da nossa cozinha.

 Sandra não contou conversa. Saiu mais que depressa e foi ao armazém de "Seu" Aurélio que era defronte de nossa casa. O que ela disse lá no armazém, eu não sei nem tive a curiosidade de perguntar, tão ávida estava por comer meu sal. Sandra me entregou um pires de sal grosso. Será que "Seu" Aurélio julgou ser a minha febre causada por mal olhado? Quem vai saber o que se passa entre uma criança de sete anos e o dono de um armazém em cidadezinha minúscula como Taperoá?

A peripécia estava feita e eu me deliciava com o sal grosso de modo que não vimos nossa mãe voltar. O resultado é que fomos flagradas com o boca na botija. Ou melhor, no pires de sal. Como eu estava acamada e não tinha energia para me levantar para fazer qualquer estrepolia, sobrou para Sandra. Levou um senhor carão e foi ameaçada de ser posta de castigo. Antes porém, cuidadosa, minha mãe pegou o termômetro e mediu minha temperatura. Não é que a febre tinha cedido? Sandra foi então liberada do castigo. Pudera!! Não é para menos. Não é todo dia que se descobre um antitérmico barato e providenciado por uma traquinagem. Será que a minha febre era causada por mal olhado? Até hoje ninguém encontrou explicação plausível para as propriedades farmacológicas do sal grosso. Ou da peripécia?
                                                                                           Marcia Myriam Gomes.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

GRATIDÃO  COMOVIDA  A  MEU  IRMÃO  E  FAMÍLIA.

Saí de Aracaju no fim de novembro de 2014 com o coração apertado. Todos vocês sabem que fui até lá acompanhar uma delicada cirurgia de Dona Myriam Urpia, minha mãe, que para extirpar um câncer se submeteu a uma mastectomia. Poucos dias depois dessa experiência traumática para uma senhora idosa de 81 anos, talvez por efeito da anestesia, minha mãe ficou um pouco agitada e isso implicou em ter que se submeter a uma nova cirurgia para recolocação do dreno que havia saído do lugar. Duas anestesias gerais em curto espaço de tempo, numa paciente que tem já a saúde fragilizada por problemas respiratórios que datam de muitos anos.

Eu me sentindo apreensiva e impotente. Todos os meus irmãos estavam lá acompanhando o processo mas o clima na família era um tanto tenso. Minha mãe que mora com meu irmão Lula em Maceió, foi operada em Aracaju e passou o pós-operatório lá, em casa de Sandra, minha irmã mais velha, que teve a generosidade de me receber como hóspede. Ela tem um amor enorme por nossa mãe, mas é de uma personalidade um tanto centralizadora e autoritária. Juntando isso a todo o estresse da situação aliado talvez a um certo ciúme de mim e de meu irmão, criou-se uma atmosfera tensa no relacionamento de Sandra com minha mãe, o que em termos emocionais, não era favorável à recuperação de Dona Myriam. 

Como eu disse, estava me sentindo impotente. Pelo tipo de medicação que tomo à noite, por ordem expressa do médico não posso perder noite e queria cuidar de minha mãe. Sandra, com o maior empenho em dispensar esses cuidados (ela também pelo mesmo motivo não pode perder noite) e talvez movida por um certo ciúme, de uma forma que me soava um tanto mandona, deliberava as horas e as ocasiões em que eu podia estar com minha mãe. Serei eternamente grata a ela pelo modo dedicado com que recebeu Dona Myriam por quase dois meses na sua casa. Serei eternamente grata por Sandra ter me hospedado por uma semana, tendo por isso que ficar mal alojada no seu quarto de casal com meu cunhado Alfredo que cuidou de minha mãe com o carinho de um filho.

Mas a atmosfera entre minha mãe e Sandra era tensa. Minha mãe, fragilizada num pós-operatório e tendo sido sempre muito independente e dona de suas próprias decisões, sofria com o jeito mandão de Sandra. A impressão que eu tinha é que quanto mais acolhedora e continente eu fosse com o sofrimento de minha mãe, mais autoritária e tensa Sandra se tornava com ela. Chorei muito e conversei muito por telefone com minha terapeuta.

 Me dirigi a meu irmão Lula, e disse a ele que queria ter uma conversa particular com ele. A minha impressão é que a partir do momento em que lhe disse isso, Lula passou a evitar estar sozinho comigo e ignorou meu pedido de conversa. Meu irmão tem um amor extremado por minha mãe, cuida dela com um carinho impecável, tem estado muito sobrecarregado com as incumbências decorrentes de ficar responsável por vários anos por uma mãe idosa, e, pelo menos comigo, não é muito chegado ao diálogo sobre nossa mãe.

 Não tenho palavras para expressar minha gratidão a ele, mas, nesse momento, gostaria muito que tivéssemos um relacionamento que comportasse partilharmos mais um pouco as decisões em relação à nossa mãe, até para que ele ficasse menos sobrecarregado. Na segunda cirurgia de minha mãe, antes que a Sul América fizesse o ressarcimento, ele teve inclusive que tirar uma alta quantia do seu próprio bolso. Financeiramente eu infelizmente não pude ajudar. Mas gostaria, pelo bem de nossa mãe, que ele partilhasse mais as decisões comigo. Não sei se esse seu fechamento em relação a mim advém de alguma mágoa, se é do seu temperamento. Procuro respeitar e compreender.

Com aquela atmosfera familiar em Aracaju e vendo minha mãe em sofrimento, cheguei à conclusão que se eu retornasse a Salvador, talvez o clima entre Sandra e minha mãe ficasse menos tenso. Pensei que Sandra sem eu no seu quarto como hóspede, poderia descansar mais e com a minha ausência se sentiria menos ameaçada pelo ciúme, podendo se tornar mais afável e acolhedora com nossa mãe.

 Com o coração despedaçado por ter que deixar minha mãezinha ainda tão fragilizada, tomei a dolorosa decisão de retornar a Salvador, não sem antes conversar com Lindaura, esposa do meu irmão, que foi para mim um porto seguro. Aura de amor e acolhimento. Linda aura. Lindaura. Com ela desabafei minhas apreensões e conflitos e fui bem recebida e compreendida. Deixei um canal aberto para ter a quem telefonar, ter com quem me informar sobre o estado físico e emocional de minha mãe. Lindaura foi pra mim muito mais que uma irmã. Não sei o que teria sido de mim se não tivesse contado com seu apoio naquele momento. Sua generosidade é impagável.

Chorando muito dentro do avião, chorando muito ainda quando cheguei em casa de volta de Aracaju, mantive-me inquieta quanto ao estado emocional de minha mãe, inquieta quanto à sua recuperação da cirurgia, sentindo muita saudade e medo de perdê-la antes que pudesse voltar a vê-la. No começo de dezembro partilhei minhas apreensões com minha amiga irmã Ana Cecília, que mesmo com os preços altos da época, se disponibilizou a me dar uma passagem para Maceió de presente. Decidi viajar por época do Ano Novo sabendo que nessa fase de fim de ano Lula e Lindaura estão com a casa cheia de filhos, genro e netos. Eu precisava inadiavelmente rever minha mãezinha. Mas onde e com que dinheiro me hospedar?

Comecei uma busca desenfreada por pousadas, sabendo desanimada que em tempos de fim de ano Maceió é muito procurada e os preços encarecem. O preço mínimo que consegui foi para ficar num quarto com mais nove pessoas, numa pousada que por ficar próxima à praia, provavelmente seria muito distante da casa de minha mãe. Mas aceitei o desafio com a mão na cabeça por saber que não dispunha de dinheiro para a despesa com o táxi. Num momento em que rezava muito apreensiva, Lindaura, o anjo, me telefona para dar notícias da chegada de minha mãe em Maceió. Aí resolvo consultá-la quanto à localização da pousada. Ela, com a sua bondade infinita, com o coração terno de quem avalia o sofrimento de uma filha distante geograficamente de uma mãe idosa e se recuperando de uma cirurgia, diz que pode me hospedar.

Embarquei para Maceió com o coração aos pulos pela emoção de rever minha mãezinha, mas constrangida. Sabia que Lula e Lindaura estavam com a casa cheia e que por isso podia lhes dar trabalho. Ia com muita vontade de poder cuidar um pouco de Dona Myriam e ao mesmo tempo preocupada com as limitações impostas por minhas dores. Tenho uma grave hérnia de disco que comprime o nervo ciático que me faz viajar de cadeira de rodas, não me permite subir escada, ficar em pé parada nem caminhar mesmo por curtas distâncias. Ainda assim, acalentava o sonho de dar banho em minha mãezinha e estava com receio de dizer que não suportaria ajudar nas tarefas domésticas quando não houvesse empregados em casa.

Lula e Lindaura tiveram a enorme generosidade de me buscar no aeroporto. Senti Lula um tanto frio comigo, sendo Lindaura quem sustentava a conversa comigo no trajeto para a casa. Como sabia que havia muita gente lá, fui disposta a dormir em qualquer lugar, ainda que sem conforto. Nada disso. Meu irmão e minha cunhada me instalaram num quarto só para mim, tendo que para isso mudar de lugar o computador da minha linda sobrinha Luciana e improvisar a dormida de alguns netos. Cheguei a dizer que isso não era necessário, que eu me ajeitava em qualquer lugar, mas eles, generosos, não arredaram pé e me mantiveram no quarto. Uma gentileza dessa é impagável. Sentia-me envergonhada por saber que a minha presença ali naquele momento não era das mais oportunas, mas eles foram cuidadosos em me deixar à vontade.

Quando fiquei sozinha com a minha mãezinha uma onda de gratidão enorme a Lula, Lindaura, Luciana, Lívia, Iasmin, Iuri, Cauã e Eduardo me tomou. Todos eles colaboraram de forma carinhosa e desprendida para que eu pudesse passar o Ano Novo e aqueles cinco dias na companhia de Dona Myriam. Quando assisti Lindaura lhe dar banho no dia em que cheguei, as lágrimas rolaram de pura comoção. Fiquei certa de que minha mãe está muito bem cuidada e isso me encheu de carinho e gratidão por eles. Não importa se talvez Lula tenha sido o filho preferido por minha mãe e que por isso possa na infância e na adolescência ter usufruído de alguns privilégios. Não importa que ele possa ter diferenças comigo que não o deixam muito à vontade. Estou disposta a pagar o preço. Importa é que ele é um filho amorosíssimo que não mede esforços para proporcionar a minha mãe o que há de melhor em condições materiais e afeto.

Lula está sempre atento quando está para faltar um remédio, estava administrando os horários das medicações controladas e toda noite aplica em minha mãe o adesivo para o mal de Alzheimer. Lindaura até que eu assumisse essa função, é quem estava dando banho em minha mãe, cuidando das suas refeições, preparando seu shake às quatro da tarde, preparando um chazinho. Tudo com muito amor e delicadeza e principalmente respeitando a necessidade de autonomia de minha mãe. Nada lhe era forçado. Se precisavam lhe persuadir de alguma coisa, era sempre com jeito bem humorado.

Assim que cheguei instalei uma cadeira cativa no quarto de minha mãe e praticamente só saía de lá na hora que ela estava deitada para dormir. Lula e Lindaura compreenderam esse meu anseio de ficar com ela o máximo possível e respeitaram. Serei eternamente grata por isso. Talvez a experiência de intimidade amorosa mais importante que tive com minha mãe foi quando eu pude pela primeira vez cuidar de lhe dar banho. As lágrimas de comoção rolaram pelo meu rosto. Ver o quanto empenhada na sua higiene corporal ela está, mesmo com muitos lapsos de memória, me tocou muito. Ver o quanto ela continua imbuída de seu papel de mãe cuidadosa, me fazia ter que segurar as lágrimas quando ela perguntava se eu não queria comer um biscoito, ou quando no banho ficava preocupada para eu não me molhar.

Foi um encontro de mãe e filha muito bonito e enternecedor. Ela estava ainda muito traumatizada pelo modo como as coisas aconteceram em Aracaju e fez queixas do jeito mandão de Sandra. Pela manhã Dona Myriam me mostrava álbuns de fotografias cuidadosamente montados por ela e fazíamos uma verdadeira hora da saudade com lágrimas e muito riso. Também líamos juntas o livro que Livinha  (filha de Lula) lhe deu de presente e que a deixou encantada. É a história de um neto que abandona tudo para cuidar de uma avó com Mal de Alzheimer. Livinha é muito sensível. Luciana, outra filha de Lula, também é muito carinhosa com a avó. Seu filho, Cauã Fraga, um adolescente muito cavalheiro, se comprometeu comigo de imprimir todo domingo o "Blá, blá, blá domingueiro..." para sua bisa ler e irá cumprir o prometido.

Depois do almoço Dona Myriam dormia e eu ficava velando seu sono. Quando acordava eu lhe dava banho e à tardinha assistíamos juntas a missa pela televisão. A fé fervorosa de minha mãe é muito impressionante e comovente. À noite, depois do jantar, assistíamos à novela "Império". Fiquei junto de minha mãe o tempo todo. Nos enchíamos de beijos e afagos. Eu a apaziguava quando ela se desculpava por seus significativos lapsos de memória dizendo que isso é natural pela experiência traumática que foi a cirurgia e que tende a se reverter. Dizia a ela que eu também já estou ficando esquecida e nunca me impacientava quando ela perguntava a mesma coisa várias vezes. Foi uma experiência de amor e respeito mútuos.

Muito dolorosamente chegou a hora de eu partir. Não consegui controlar o choro convulso e senti uma dor imensa no peito quando entrei no carro e lhe acenei pela última vez. Iuri, meu sobrinho neto de 4 anos, ao me ver aos prantos, perguntou a Lula se eu era mãe da bisa. Meu irmão me levou ao aeroporto e voltou lá para saber se eu estava bem quanto soube que o voo estava com mais de uma hora de atraso. Esse cuidado dele comigo muito me comoveu. Parti com uma lembrança terna do meu irmão (estou chorando) e profundamente agradecida a ele e à sua família pelo amor que têm por minha mãe, por terem respeitado e compreendido que eu precisava muito viver esta experiência com ela. Os caminhos da vida são às vezes intrincados e belos. Obrigada, Lula, Lindaura, Livinha, Iasmin, Iuri e Cauã !!! Deus lhes pague!!!
                                                                                          Marcia Myriam Gomes.