sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

25/01/2015                                           INVENTAR

Cara leitora, caro leitor,

Hoje vou dando prosseguimento à série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", com a principal finalidade de divertir Dona Myriam, que felizmente já iniciou as sessões de fisioterapia com drenagem linfática e simpatizou muito com a fisioterapeuta. Tomara que elas conversem muito e que o tratamento contribua para reduzir o edema, aliviando as dores do lado em que foi feita a mastectomia. Tomara também que meu sobrinho neto Cauã Fraga cumpra o prometido e imprima esse texto para que sua bisa possa ler.

Eu estou radiante de alegria com a excelente colocação no concurso para professor da Universidade Federal do Sul da Bahia conquistada por Rafael, meu filho adotivo. Estou feliz e orgulhosa porque Rafa agora faz parte da instituição cujo proposta de trabalho ele muito admira e também porque trabalhando na Bahia ele fica mais perto de mim. Parabéns, Rafa!! Vitória merecida!!

Espero que junto a Dona Myriam vocês também se divirtam com esta história que me foi lembrada por Sandra, minha irmã mais velha.

                                                               INVENTAR 
Pois é. Na década de 60 mudamos de Taperoá para Ibirataia. Deixamos a cidadezinha de tipos humanos como Chico Lecó que desfilava tranquilamente pelas ruas com flores nas narinas, e fomos para onde desfilavam pelas ruas ameaçadores e ostentando poder, os playboys filhos de grandes fazendeiros de cacau. Deixamos a cidadezinha de economia quase artesanal onde predominava a pesca, e fomos para onde o capitalismo já mostrava suas garras, deixando inconciliáveis, de um lado aqueles da classe dominante, de outro, a plebe rude que pelas condições insalubres do trabalho nas fazendas de cacau, vivia se consultando no consultório de meu pai.

Perdemos o nosso frequente e salutar contato com pessoas do povo que em Taperoá gozavam da maior respeitabilidade social, para sermos recebidos, quando chegamos a Ibirataia, pela família de um prefeito reacionário e parceiro dos latifundiários. Perdeu-se a simplicidade dos catadores de cravo da Índia que nas portas de suas casas nos davam, afáveis, um dedo de prosa, e passamos a ser vistos com desconfiança pelos carregadores de sacos de cacau empregados  nos armazéns.

 A cidade era feia, não tinha festa folclórica como a Zameapunga de Taperoá, as crianças muito diferentes de nós, filhos de fazendeiros e comerciantes importantes, usavam bolsa, luva, chapéu e roupas da moda mandadas buscar em Salvador. A isso meu pai, indignado, chamava de "bossalidade". Nossos pais, é claro, desaprovavam estes estranhos costumes, e nós, destoando dos demais, continuamos nos vestindo de forma apropriada para o clima da cidade. Forma simples e despojada cabível a crianças filhas de pai comunista.

Para nós, isso implicou em nos sentirmos excluídos e marginalizados por aquelas crianças afeitas aos extravagantes hábitos de consumo, e, por isso demoramos a fazer amigos, a encontrar a nossa turma na cidade. Nos enturmamos com Marineide, filha de uma humilde vendedora de pastéis e banana real, e com Naldo, Nalva, Néia, Neide e Nólia, filhos de Dona Cide e de "Seu" Ramos, um simples funcionário de um armazém de cacau que morava defronte de nossa casa.

A mudança de cidade não foi sem consequências para a nossa vida privada. Afinal o social e o individual se interpenetram numa multifacetada determinação. De modo que saímos de uma vida inocente e quase paradisíaca que tínhamos em Taperoá, para uma vida em que sofríamos com as contradições que não compreendíamos e que logo se refletiram na vida conjugal de nossos pais que passaram a se desentender. A eclosão do golpe militar de 64 culminou com a nossa urgente e traumática mudança para Salvador, e logo em seguida nossos pais se separaram.

Então como fazíamos para viver em Ibirataia? Não era fácil. Sentíamos muita saudade de nossos deliciosos banhos de mar em Boipeba, e a atividade fotográfica de meu pai sofreu um declínio. Onde a paisagem bonita? Onde os tipos humanos originais? Meu pai, tão logo ficaram claras suas inclinações ideológicas, passou a ser antipatizado e mesmo perseguido pelos representantes da classe dominante.

 Era o médico dos pobres, muitas vezes remunerado com frangos, frutas e verduras. Minha mãe já sofrendo com seus problemas conjugais, se empenhava em cuidar de nós inventando estratagemas para nos divertir e também para se divertir. Muito longe estava de se identificar com os hábitos fúteis das esposas dos fazendeiros e comerciantes. A não ser Dona Cide, não tinha amigos naquela cidade inóspita.

Embora tivéssemos alguns, não éramos muito estimulados no uso de brinquedos industrializados. Eu, minhas irmãs e as amiguinhas filhas de "Seu" Ramos, brincávamos no quintal de fazer cozinhado usando panelinhas artesanais de cerâmica, tínhamos bonecas de pano e com elas exercíamos nossa criatividade lúdica. Lula, nosso irmão, acompanhava meu pai aos domingos no campo de aeromodelismo.

 Quando Dona Myriam, nossa mãe fazia uma fornada de biscoitos, nos estimulava a modelar com a massa figuras que viessem à nossa imaginação e, Sandra e eu, as mais velhas, nos aventurávamos a compor palavras. Era muito divertido comer biscoitos cujas formas foram criadas por nós. Tínhamos muitos livros de literatura infanto juvenil a exemplo do "Mundo da Criança", "Tesouro da Juventude" e a coleção de Monteiro Lobato. Grande parte do tempo minha mãe nos entretinha e educava contando e encenando aquelas histórias.

Um dia, de férias da escola da Professora Teresinha, talvez cansado das fadigas do repouso, Lula folheava uma revistinha e encontrou instruções para confeccionar um cineminha artesanal. Infelizmente não me recordo de detalhes e, por isso, não seria capaz de reconstituí-los aqui. Mas era muito simples. Pegava-se uma caixa de papelão e cortava-se o fundo, colando no espaço vazio deixado, uma tela de papel manteiga. Em seguida, montava-se com recortes de revista uma série de cenas que colocadas na ordem certa viriam a ser o roteiro do filme.

 Montado o roteiro da história, colava-se a sequência de cenas num barbante . Cada ponta do barbante era enfiada em um orifício que ficava em uma das duas  laterais da caixa de papelão por trás da tela de papel manteiga, de modo que conforme puxássemos o barbante, uma determinada cena ficava em evidência, podendo-se em seguida passar para outra e para outra e assim sucessivamente até o final da história. Se fosse só isso, seria um cinema mecânico, sem graça. E para que o papel manteiga? É que ele, por ser fosco, opaco, fazia uma sombra sobre as imagens ofuscando-as, para quem estava do lado de fora da tela como expectador.

 Para aumentar o mistério e a curiosidade sobre as cenas do filme, se fosse de dia, fechavam-se as janelas de modo a ficar escuro. Se fosse à noite, apagava-se a luz para obter o mesmo efeito. No escuro, o animador do cinema vinha com uma vela acesa por trás da cena e do papel manteiga, e movimentava a vela dando visibilidade e animação aos personagens. Era um efeito espetacular, particularmente para crianças que viviam em cidade como Ibirataia. Era preciso haver pelo menos dois operadores. Um para puxar o barbante passando a sequência de cenas, e outro movimentando a vela para dar animação aos personagens.

A descoberta de Lula foi para nós como a invenção da pólvora. Logo todos nós estávamos envolvidos e gastávamos horas na montagem dos roteiros. Dona Myriam, já de há muito preocupada com nosso isolamento social, sugeriu que fizéssemos sessões de cinema para outras crianças da cidade. Sandra confeccionou os ingressos com cartolina. Minha mãe deu a ideia de cobrarmos um preço simbólico para com o dinheiro ela fazer brigadeiro, bolo e suco para oferecer aos expectadores no intervalo da sessão. Com um lençol improvisou uma cortina para ser aberta somente na hora que começasse o filme. Marineide e as filhas de Dona Cide se encarregaram de divulgar a novidade para as outras crianças de Ibirataia.

 De repente, de uma hora para a outra, tínhamos frequentando a nossa casa meninos e meninas filhos de pais pertencentes às mais variadas camadas sociais. De repente não mais importava que fôssemos filhos de um defensor de ideias comunistas, e que usássemos roupas confeccionadas por simples costureiras da cidade. Éramos os criadores da grande invenção que todos queriam ver. Acho que foi essa a minha primeira importante experiência com a arte e com o seu enorme poder de transformação social.

 Em Ibirataia havia um cinema que não frequentávamos. Os filmes eram americanos, de péssimo gosto e nada apropriados para crianças. Com o nosso cineminha construíamos histórias que estimulavam o nosso imaginário infantil e nos tornaram os criadores de uma empreitada que revolucionou nossas vidas e a vida da cidade. Primeira importante experiência com a arte e de com ela construir um novo mundo suplantando o sofrimento. Experiência que me deixou para sempre impressionada e movida pela ideia de inventar. Inventar, inventar sempre, para além das adversidades.
                                                                        Marcia Myriam Gomes.

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