segunda-feira, 27 de junho de 2016

12/06/16                                               A  CLAREZA  DE  CLARA (2)

OUTRA VEZ, NUM SEGUNDO DOMINGO, DEDICO ESTE TEXTO À PRESIDENTE DILMA, QUE SENDO MULHER COMO EU, ALÉM DE TODAS AS SÁDICAS ATROCIDADES FÍSICAS E PSICOLÓGICAS QUE SOFREU DIGNAMENTE DA DITADURA MILITAR, ESTÁ EXPERIMENTANDO NESSE DRAMÁTICO MOMENTO PELO QUAL ATRAVESSA A CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA, A LAMENTÁVEL, DESPREZÍVEL MESMO, CHAMADA "CULTURA DO ESTUPRO". DE UMA EXPRESSIVA MAIORIA DE DEPUTADOS E SENADORES HOMENS, MAS NÃO SÓ, SEM FALAR DO, NA FALTA DE MELHOR PALAVRA, DESCONCERTANTE "GOVERNO" (que governo?) TEMER, VEM SENDO VÍTIMA DE DESRESPEITOSAS, VIOLENTAS E CRUÉIS INVESTIDAS CONTRA A SUA CONDIÇÃO DE SUJEITO. HOJE, NÃO ENTRO NO MÉRITO DOS ERROS QUE POSSA TER COMETIDO, ESTANDO CERTA DE QUE NÃO É UMA CRIMINOSA. FALO DA SUA EXEMPLAR PERSISTÊNCIA EM SE APRESENTAR COMO UM SUJEITO DESEJANTE, CUJA CAUSA PELO BEM DO POVO BRASILEIRO, PARTICULARMENTE OS EXCLUÍDOS E DESPRIVILEGIADOS, A EXEMPLO DAS MULHERES, NEGROS, CRIANÇAS E ADULTOS EM SOFRIMENTO FÍSICO E PSÍQUICO, IDOSOS, DESPOSSUÍDOS DE BENS E TERRAS, ENTRE OUTROS, SE SOBREPÕE DE MODO COMOVENTE E CORAJOSO, A SEU SOFRIMENTO. SEI QUE HÁ CRÍTICAS E CONTROVÉRSIAS QUANTO A O QUE REPRESENTARAM PARA O BRASIL ESSES ANOS DE GOVERNO DO PT. NÃO QUERO ENTRAR NESSE MÉRITO. QUERO DEIXAR REGISTRADA MINHA COMOVIDA SOLIDARIEDADE A DILMA, E À MOÇA, QUE NÃO POR COINCIDÊNCIA, NESSE MOMENTO, FOI VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL POR UM GRUPO AO MEU VER, DE DELINQUENTES. NÃO POR COINCIDÊNCIA. NÃO DUVIDO QUE A ESTRUTURA MACRO DETERMINE A ESTRUTURA MICRO. DELINQUÊNCIA MACRO, DELINQUÊNCIA MICRO. ONDE IMPUNEMENTE SE EXERCE O ESTUPRO EM PALAVRAS QUE BEIRAM AS VIAS DE FATO, FICA AUTORIZADO, DE CERTA FORMA, SE CHEGAR, PRETENDENDO FICAR IMPUNES, ÀS VIAS DE FATO. MINHA SENTIDA HOMENAGEM À DILMA, QUE CONSIDERO UMA COMPANHEIRA.

Gostaria que a crônica de hoje e a do domingo passado, chegassem à presidente Dilma. Se alguém souber como devo proceder para fazê-lo, por favor, me informe, escrevendo para meu E-mail.

Diz o comércio que hoje é dia dos namorados. Eu duvido disso. Como, o amor, na sua natureza contingencial, pode ficar marcado por uma data única, para todos? O amor tem datas. Quem não sabe disso? Muitas datas. Assim talvez diga Roland Barthes. Afinal, somos seres de linguagem e gostamos dos símbolos e de celebrar. Particularmente as mulheres. Datas de dois, no que há inescapavelmente de singular. Datas de dois, que pelo amor, felizmente, por mais trágico que isso seja, subvertem o discurso do capitalista.

Então, pensando sobre isso e sentindo isso, me demorei a começar a escrever, assistindo no Arte 1, praticamente meu único canal de televisão, uma bonita exibição do Grupo Corpo, fazendo coreografias musicadas de modo a doer, de corpos de dois, homem e mulher, se contorcendo de modo barroco, em paroxismos de gozo.

Se bem me conheço, se começasse a falar do amor, acabaria de novo por nada dizer da história de Clara, pendente desde o domingo passado. Então, antes de Clara (haverá sempre um antes de Clara?) me ocupo em relatar um evento do qual participei, podendo testemunhar que o povo brasileiro está, sim, por mais que a imprensa vendida insista em não noticiar, se manifestando de forma bela e veemente contra o "Governo " Temer e tudo o mais. 

A convite de amigas queridas, principalmente companheiras de luta, certamente mais esclarecidas e/ou menos preconceituosas que eu, fui numa noite dessas a um evento no TCA, promoção barata (R$ 5,00 para idosos) do Governo da Bahia, cujo tema, se não me engano, era o "empoderamento da mulher", ou qualquer coisa assim. A convidada era Marcia Tiburi, doutora em filosofia, escritora, feminista. Eu, hein!! Aqui fala a voz da ignorância. Nunca ouvi falar dessa distinta figura. Mas, confiando nas minhas amigas, fui. Felizmente, uma das debatedoras era Olívia Santana. Secretária do Governo para assuntos da mulher, filiada ao PCdoB, também feminista e, na minha opinião, principalmente, negra.

 Quem me conhece de perto, sabe, que não é sempre sem protestos que me rendo ao chamado discurso feminista. Me explicando melhor, talvez para parecer menos preconceituosa e ignorante, nem critico, na verdade receio um pouco os mal entendidos que podem causar concepções como dizer que a mulher ocupar a função de objeto de desejo do homem, é coisificá-la. Talvez a psicanálise tenha até talvez alguma responsabilidade nesse mal entendido, por, de certa forma, creio que por uma questão de rigor, preferir (será?) não se popularizar. É que o conceito de objeto, para a psicanálise, parece nada ter a ver com o "objetivável" ,"objetalidade", "coisificação". Ao meu ver, muito ao contrário disso. Mesmo porque, homem e mulher parecem se alternar nesse lugar.

Outra coisa que nesse discurso me deixa um pouco cabreira, é às vezes uma um tanto insistente tendência a examinar com razão, criticamente, a opressão do homem sobre a mulher, indiscutível, mas prescindindo de considerar suas determinações sócio econômicas. Acho isso delicado. Confesso, num tom mais autobiográfico, tenho medo de mulher que não gosta de homem. Não no sentido de suas preferências sexuais, às quais respeito, mas no sentido de terem um certo ódio, alguma questão complicada com aqueles que são portadores de pênis. Lembro que tive uma professora feminista numa pós-graduação , sobre quem muito conversei com o querido amigo poeta Carlos Machado, que na minha presença, recusou-se a orientar uma estudante aplicada, porque, sendo mulher, cometeu a heresia de escolher um escritor homem como objeto de trabalho da sua tese. Dessas coisas, tenho medo.

Felizmente Marcia Tiburi não é dessas. Sabe a que veio. A primeira coisa que ela disse foi: "Em primeiro lugar, FORA TEMER." O teatro em peso, eu arrepiada, levantou-se ao mesmo tempo, homens e mulheres, inclusive eu, gritando por bem uns dez minutos, com toda veemência: "FORA TEMER, FORA TEMER!!!". Foi lindo! Um espetáculo belíssimo!! Além disso, Marcia Tiburi disse que na sua estante ao lado do "Segundo Sexo" fica sempre "O Capital".

 Escreveu recentemente um livro intitulado "Como Conversar com um Fascista". Advertiu, que obviamente, o título é uma ironia, porque não se conversa com fascista. Ou melhor, com fascista, não se conversa. Sou da mesmíssima opinião. Gostei que ela tenha observado que o fascista não sabe escutar. E embora, com muito respeito, não gostei dela dizer que sexo não é a melhor coisa. Não será que as uvas "estejam" verdes? Quanto às minhas uvas, estão maduras, bem o sei. Eu é que preciso crescer, para alcançá-las. Outra nota autobiográfica. Enfim, valeu conhecer esta xará. Mas de quem eu gostei mesmo, sem restrição e com todo entusiasmo, foi de Olívia Santana. Particularmente, quando, com muita delicadeza e parceria, disse à Márcia: " Você é branca, uma intelectual, de classe média, talvez alta, tem título de doutorado. Eu sou uma mulher negra." Sabem como terminou o evento? Do mesmo modo como começou: "FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER, FORA TEMER!!!

 Agora tentarei falar de como uma criança pode também dizer : "FORA TEMER"!!!! Vamos ver se meu lacrimódromo, como de costume, não dá vexame sentimental. Como já mencionei no domingo passado, Clara é uma menina de 6 anos, muito inteligente, sensível e interativa. Filha da moça que me presta serviços como empregada doméstica. Estudando pela tarde, não tendo, muitas vezes com quem ficar em casa pela manhã, quando sua mãe está aqui trabalhando, Clara vem muito com ela e nos damos muito bem. Como, se estou em casa, costumo estar muito ocupada quando ela vem, Clara já se acostumou, ao chegar cedo com sua mãe, a ligar a televisão para assistir desenhos infantis. Às vezes, prefere ficar desenhando. Nos meus intervalos de trabalho, passei a brincar com ela, às vezes assisto aos desenhos junto e quando ela prefere desenhar, conversamos sobre suas criações artísticas. Ficamos amigas.

Gostando muito de criança, não tendo netos e com sobrinhos netos morando fora de Salvador, à exceção de Gabriel, cuja mãe é muito ocupada com a vida acadêmica, fui me apegando a Clara. E, sem perceber, com meus prováveis "desvios pequenos burgueses", passei a convidar somente a ela para irmos ao cinema, ao zoológico, a um parquinho, etc. Cada vez que era convidada, Clara, cabisbaixa, em tom aborrecido mas sem ser birrenta, me respondia: "Eu quero ir, mas só vou se minha mãe for". Eu, com meus prováveis "desvios pequenos burgueses", fazia uma leitura daquilo como se ela ficasse "insegura", "temerosa", sem a presença da mãe. Confesso, ficava um pouco chateada com aquilo. Queria curtir Clara independente de sua mãe poder estar conosco.

Então, com autorização de sua mãe, e, insensível, passei a tentar persuadir Clara a sair sozinha comigo. Ela, respondendo do mesmo modo. Eu tentando explicar que sua mãe não podia ir porque tinha trabalho a fazer. Até que um dia Clara me deu a resposta necessária e desconcertante: "Dona Marcia, minha mãe trabalha muito. Ela também precisa se divertir." Não sem vergonha, não sem uma certa dor, pude enfim compreender que Clara estava me dizendo algo assim: "Não pense você que com seus vícios ideológicos, vai brincar de me adotar como neta, excluindo minha mãe, por ser empregada." Foi uma porrada!! Dali em diante, passamos a sair as três juntas, em horário de passeio, em geral no sábado à tarde.

Infelizmente, pelo menos para muitos de nós, chegou aquele tristíssimo dia 12 de maio. Clara, que quando vem, chega muito cedo, quando acordei a encontrei com a televisão já ligada (na minha casa há um só aparelho de televisão).  Com braço e mão estendidos na minha direção, esboçava o gesto de me entregar uma moeda de dez centavos, troco de umas compras que sua mãe havia feito, enquanto eu ainda dormia. Ocupada com o que precisava lhe dizer, e já muito tensa com a perspectiva de assistir no Senado aquele tenebroso espetáculo, eu não cuidei de pegar o dinheiro e Clara, me ouvindo atentamente, continuava me oferecendo a moeda.

Então, eu já muito triste, expliquei pacientemente a Clara que ia precisar mudar o canal da televisão porque umas pessoas que trabalhavam num lugar chamado Senado, a maioria delas, muito próximas das pessoas muito ricas, queriam colocar Dilma para fora do Governo e do palácio e eu precisava assistir. Clara me perguntou por que essas pessoas queriam colocá-la para fora. Meio sem saber como abordar a questão com ela, que é uma criança, respondi que era porque Dilma era amiga do povo brasileiro e dos pobres.

 Então ela perguntou por que sendo Dilma amiga dos pobres, seria posta para fora? Eu, ainda sem saber ao certo o que daquilo ela poderia compreender e sem querer desqualificá-la, respondi que em geral, as pessoas muito, muito ricas, não gostam de dividir o dinheiro que possuem, com os pobres. Que na verdade, muito do dinheiro que possuem, pertence ao povo brasileiro e que eles ficam muito ricos roubando o povo brasileiro e botando as pessoas pobres para trabalhar e pagando bem pouco.

 Ela me escutava atentamente, muito concentrada. De repente, percebi uma mudança no seu gestual, que lerda, não compreendi. Clara recolheu o braço com o qual estendia a moeda, e fechou-a na sua mãozinha. Sem entender perguntei : "O que foi, Clara?" Ela, sem titubear respondeu: "Esse dinheiro, não é seu. É de minha mãe." É preciso chorar. Então choro. Respondi que por enquanto, aquele dinheiro era meu. Mas que eu compreendia o que ela queria me dizer. Que trabalhando tanto quanto sua mãe trabalha, ela ganhava muito menos que eu e isso não é justo. E que Dilma queria resolver essa situação. Por isso os muito ricos a queriam fora. Caí num choro sem poder continuar a conversa.

Desamparada, pedi a Clara e a sua mãe que sentassem comigo na sala para assistir a televisão. Chorando muito, ainda recebi essa impressionante lição de Clara: "Dona Marcia, não chore assim, não. Ela vai voltar. Ela é como minha mãe. Não chora". Obrigada, Clara!!! Jamais me esquecerei desse lindo dia. E já sei, sem que soubesse, por que só consegui concluir o escrito, hoje, segunda-feira, dia 13, um mês e um dia depois. Clara, mais bonito que o inconsciente, só você. Eu não lembrava. Hoje é seu aniversário e você está aqui, ao meu lado, assistindo seu desenho, enquanto escrevo. Só não quero que me veja chorar. Quero ser como sua mãe. A que sabe, que temos porque esperar.  FELIZ  ANIVERSÁRIO!!!!
                                                                                              Marcia Myriam Gomes.
                                                                                             

domingo, 26 de junho de 2016

05/06/16                                A  CLAREZA  DE  CLARA.

TEXTO DEDICADO À QUERIDA PRESIDENTE DILMA, POR SER MULHER COMO EU SOU, POR TER PASSADO COMO EU, MAS EM PROPORÇÃO BEM MAIOR, PELA DOR NA PRÓPRIA PELE DE VER A SI E/OU QUERIDOS COMPANHEIROS, ULTRAJADOS FÍSICA E/OU PSICOLOGICAMENTE PELA SÁDICA, PERVERSA E IMPUNE VIOLÊNCIA DA REPRESSÃO DA DITADURA MILITAR NO BRASIL.. POR SER AGORA, SEM NUNCA SE FAZER DE VÍTIMA, POR ENLOUQUECEDOR QUE PAREÇA, ALVO DAS MAIS ATROZES VINGANÇAS, RETALIAÇÕES E INJUSTAS ACUSAÇÕES, POR TER LUTADO E CONTINUAR LUTANDO POR UM BRASIL MELHOR PARA CLARA, E PARA TODOS NÓS, AO INVÉS DE DAR UMA PRIORIDADE NARCÍSICA À SUA PRÓPRIA DOR. POR, MOVIDA PELA SUA CAUSA, CONSEGUIR TER UM  INVEJÁVEL EQUILÍBRIO  EMOCIONAL, SEM PRECISAR ESCONDER QUE ESTÁ TRISTE, COISA QUE POR MUITO MENOS, MUITAS DE NÓS NÃO TEMOS. A DILMA, COMPANHEIRA, MINHA HOMENAGEM SENTIDA.

Coisa que não é frequente, escrevo com dificuldade. Depois de um longo tempo, retomo a crônica domingueira. Com medo. Sim, medo. Escrevi no domingo passado a uma corajosa amiga, dizendo que desde o dia 12 de maio, venho querendo voltar a escrever a crônica, contando a minha bonita experiência com Clara (menina de 6 anos, muito querida e sagaz, filha de Jovita, minha empregada doméstica, de inteligência invejável, a quem agradeço por me ajudar a mexer no celular, no controle da Sky, ligar o DVD, etc) em homenagem a Dilma, mas que me sentia severamente inibida, sofrendo mesmo um impedimento pelo medo.

 Sendo eu uma pessoa um tanto contrafóbica quanto a me expor e explicitar publicamente, na maioria das vezes, por escrito, minhas posições, opiniões, sentimentos e principalmente o que chamo minhas convicções inegociáveis, acabo por ter que lidar, muitas vezes, com penosas consequências. Não nego que sinto dor. Sinto tristeza por me deixar funcionar assim, abrindo espaço para um certo volume de críticas, tratamento descortês, exclusão, ironias perversas, investidas que considero covardes de amigos queridos, e, principalmente, por acabar magoando pessoas de quem gosto.

 Por outro lado, sinto muito orgulho por ser assim. Coisa que penso ter adquirido nos meus preciosos anos de militância política clandestina, na organização de Lamarca. Ao tempo em que éramos super reservados e discretos por questões de segurança, entre nós, companheiros, exercíamos uma honestidade e fidelidade rigorosas quanto ao que pensávamos e sentíamos uns dos outros. Embora não pudéssemos dispor de analistas, o obstinado apego à verdade, não nos autorizava a sermos dissimulados, complacentes ou mesmo cegos quanto às questões subjetivas, que perpassavam nosso relacionamento.Todos vocês sabem que na militância, se exercia de forma até muito rígida, a crítica e a auto-crítica e até por razões de sobrevivência, acabávamos por cultivar um afinado senso de observação do outro.

 Dizem que quem muito fala, muito erra. Pra mim, é difícil às vezes deixar de dizer, mesmo correndo o risco de errar muito. E creio que não quero ser diferente. Tenho enorme dificuldade de lidar, com aqueles que a título de se proteger, se calam em momentos graves ou encontram "argumentos nobres de bons samaritanos" para sair pela tangente, às vezes até justificando atitudes pusilâmines. Mas compreendo que cada um é do modo que pode."Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".

 E afinal, todos nós sabemos que é em momentos de crise como este pelo qual passa o nosso país, que as pessoas se revelam. Provavelmente, terá sido mais fácil, cômodo e oportuno se revelar de esquerda quando, sem maiores contradições, conflitos e enfrentamentos, ocupava o governo um partido de certa forma com essa tendência. Agora é a hora do "vamo" ver. Minha mãe costuma dizer sabiamente : "Um cão danado, todos a ele".Isto é, é na hora que se parece estar fragilizado, que os covardes atacam.

Estou com medo de, com o jeito intenso, passional mesmo, com que abraço minhas causas (vários de vocês são testemunhas da forma apaixonada com que abracei e abraço a causa psicanalítica), carregar nas tintas nas minhas leituras, cometer equívocos de interpretação que ofendam pessoas queridas,( se o faço, a elas peço que me perdoem) ou mesmo, mergulhando com as minhas convicções inegociáveis das quais não abro mão haja o que houver, nas coisas que acredito incondicionalmente defensáveis, ser vista por amigos e, principalmente por algumas colegas psicanalistas, como uma "comunista" perigosa daquelas que comem criancinhas.

Já disse o meu querido Guimarães Rosa: "Viver é perigoso". E eu digo: "Viver sem respeitar o direito em cada um, de ter iguais oportunidades que outros, de se exercer como sujeito desejante, é desastroso." Entre o perigo e o desastre, escolho o perigo. Se isso é ser comunista, eu sou comunista. E, embora sinta desapontar a muitos com isso, não posso lhes pedir desculpas.

Mas nem tudo é medo. Há vários amigos e colegas psicólogos e/ou psicanalistas, companheiros fiéis à luta por um Brasil mais justo e democrático. Deles recebo apoio, textos esclarecedores, mensagens afetuosas e gratas por eu estar junto com eles, na luta. Fico muito feliz por Freud e Lacan, por aqueles companheiros psicanalistas tão legitimamente causados, que compreendem, que lutar por igualdade de oportunidades e justiça social, ao invés de anacrônica extravagância de comunista que come criancinha, é INTRÍNSECO a ocupar o lugar de analista. Condição necessária. Será "analista" aquele que não apreende isso e pensa, que fazer política caminha para um lado, e o fazer analítico, caminha para outro, inconciliáveis?

Mas nem tudo é medo. Felizmente o povo brasileiro se manifesta veementemente dizendo "Fora Temer" e em defesa da democracia. A mídia vendida ao "governo" Temer, quase ou nada noticia. Mas o povo está lutando bravamente. Nossa, isso é tão bonito!! Tão esperançoso, tão alentador!!! Vejo que já escrevi  um tanto e por enquanto, nada contei da história de Clara com Dilma. Das duas, uma. Ou escrevo muito, abusando da paciente leitura de vocês, até chegar ao caso de Clara, ou resolvo deixar para contá-lo no próximo domingo. Vamos ver o que escolho. É que as coisas, nos últimos meses, têm acontecido numa velocidade impressionante e a gente acaba por precisar dizer muitas coisas, sem saber ao certo o que privilegiar.

Estou impregnada por assim dizer, pelo que me aconteceu na sexta-feira passada. Divulguei para todos vocês que nesse dia, haveria às 14:00 h no IML (Instituto Médico Legal) a exibição do documentário "Em Busca de Iara", sobre a vida, o amor por Lamarca, e a morte de Iara Iavelberg, musa da resistência contra a ditadura. Por ignorância, achei o lugar da exibição um tanto macabro. Mas lá fui eu, acompanhada por uma amiga, que tem se revelado uma corajosa companheira. Esse filme, certamente, diria muito da minha própria vida como militante da organização e, por isso, fui pra lá um tanto mexida. Mal sabia o quanto choraria.

Pra começar, fiquei muito feliz de saber que o filme seria exibido lá, por iniciativa de um jovenzinho colega, para minha alegria, psicanalista. Ele, consciente e esclarecido politicamente faz parte do atuante Coletivo de Psicólogos pela Democracia Iara Iavelberg (ver a página do coletivo no Facebook. Tem muita coisa interessante). O jovenzinho psicanalista, que trabalha no Projeto "Viver em Cena" funcionando (pasmem) no IML, ficou curioso de saber por que o Coletivo tinha aquele nome e sobre quem foi Iara.

 Descobriu várias coisas sobre Iara, inclusive da monstruosa (já comecei a chorar) notícia que o corpo daquela linda jovem psicóloga, que estudou e participou das movimentações na Maria Antônia da USP, ficou escondido por quatro meses no IML aqui em Salvador, servindo de isca para atrair Lamarca que, sem notícias da sua amada, provavelmente viria à sua procura, podendo assim, ser assassinado pela patológica perversa repressão fascista, como de fato, aconteceu. Shakespeare, como muitos que escrevem, um visionário com a sua linda e política história "Romeu e Julieta". Como bem diz Roland Barthes, nada mais revolucionário do que o discurso amoroso, cada vez mais banalizado e excluído na feroz sociedade capitalista.

Como já disse, o sensível jovenzinho psicanalista, trabalha no IML no muito interessante Projeto "Viver em Cena", que entre muitas coisas legais (vão até lá, conferir) presta atendimento multidisciplinar a mulheres vítimas de violência sexual. Psicanalista sensível, mexido por assim dizer, pela trágica coincidência (?) "IML", resolveu lá exibir o documentário. Convidou para o debate ao final, a uma senhora do PCdoB de nome, se não me engano, Diva, que tem (sinto, tanto, Diva!!! Você é uma mulher corajosa!! Parabéns!!! Se existisse céu, você iria para o céu) dois irmãos dados por desaparecidos na guerrilha do Araguaia, e, entre outras coisas, participa da comissão "Tortura Nunca Mais".

Graças a mim, graças à vida, é com esse povo, que tenho andado ultimamente (lembram do outro filme que fui ver na ufba e dei meu depoimento de ex-militante?), ao invés de andar me deixando machucar por gente que não pode se responsabilizar por suas próprias escolhas e faz do outro, maltratado perversamente, "bode expiatório" das mesmas. Esse povo com quem volto a andar, felizmente, sabe o que é dor. Sabe como é imprescindível, ter convicções inegociáveis, mesmo tendo que pagar um preço que acaba, sintomaticamente, impagável.

Eu e a minha amiga, sentamos à frente no pequeno auditório. O filme ia passando, e em meu rosto, as lágrimas escorrendo. O rosto lindo daquela jovem psicóloga, me lembrava o rosto lindo da minha companheira Virgínia, também assassinada pela ditadura, e como doía!! A atrocidade da repressão, em vários momentos encarnada pelo sacana Luiz Artur, me fazia pensar, literalmente "eu já vi esse filme." Minha amiga e companheira, firme, do meu lado.

O jargão, com o qual, se eu fosse poeta, escreveria um poema, mais do que uma viagem no tempo, me fazia sentir como se estivesse, de novo, ali dentro: "aparelho", "ponto",  a triste notícia "fulano(nome de guerra) caiu", "desapropriar". O tão familiar hábito de estando com os companheiros batalhando, passar a muito cafezinho e cigarro. A perigosa característica inescapável do discurso amoroso: ser bandeiroso. Sob as mais severas normas de segurança, Lamarca escrevia um diário para Iara, com as mais lindas confissões. Lembro de Neruda, "Vinte poemas de amor e uma canção desesperada". O atroz desespero dos amantes, de não terem como saber quando se veriam de novo.

 Várias pessoas que foram da organização dando depoimento no filme. De repente, sem que eu jamais esperasse por aquilo, aparece no filme o companheiro que era meu "ponto" e fico sem qualquer preparação para aquilo, sabendo (na época não podia saber) que ele era um dos articuladores dos encontros de Iara e Lamarca. Dou-me conta, gravemente emocionada, que estive a poucos metros de Iara, e por ela, nada pude fazer. E a ela, (imerecidamente?) sobrevivi. Que dor insuportável!! Caio num pranto convulso. Iara e Virgínia se misturam. O pessoal, no auditório, sem que eu me surpreenda  com a solidariedade, vem com carinho me oferecer água e trazer lenço de papel.

A criminosa, inqualificável, monstruosa maldade de dar como "suicidada" aquela linda jovem judia, que sendo "suicida" não podia ser sepultada como os demais. Por pouco, também meu pai, não poderia ser sepultado como os demais. Cumpridos alguns anos de sepultura provisória, seria jogado na vala dos indigentes. Confesso, talvez ressentida, sinto um ódio repugnado dessas pessoas que não sabem o que é sofrimento e que vivem se queixando "minha meia rasgou na festa. Meu Deus, como faço com esse mico?"

 A linda, obstinada, incansável investigação de familiares e companheiros do que de fato aconteceu na morte de Iara. "Em busca de Iara". Iara, companheira, você está aqui comigo.  E daqui, nunca saia.  Que me importa, que alguns "psicanalistas" digam que estou fazendo uma identificação masoquista e melancólica com você? Por favor, Iara, nunca deixe de me fazer companhia na minha coragem, e inteireza de caráter. Como você, que foi desqualificada como suicida, também, nunca jamais nas mesmas proporções, sou dada como aquela que abandonou seu emprego, irregularmente, aquela que levantou calúnias sobre amigos. Quem, entre amigos e familiares, se daria ao trabalho de investigar o que de fato aconteceu? Ninguém. Os tempos são outros. Onde, os fiéis companheiros de organização?

Quando, durante o filme, aparece o médico simpatizante da causa, já bastante idoso, aos prantos, contando que foi procurado por Iara, porque ela estava com dificuldade para engravidar, o que queria muito, tenho outro momento de choro convulso. Que coisa linda!! Que coisa nobre!!! Que irresponsável pulsão de vida vibrando naquela mulher, naquela heroína!!! Sou uma privilegiada de ter vivido tão perto de você, ainda que não soubesse, Iara !! Ai, o filho que não tive, ainda que tenha Rafa. Como dói, o filho que não tivemos, Iara!!

Ao final do filme, começa o debate. Diva (será mesmo esse o nome daquela senhora do "Tortura Nunca Mais"?) se emociona e fala um bocado. A interrompo, pedindo para dar meu depoimento, pois tinha hora marcada para sair. Com os olhos inchados, conto da minha militância. Conto da versão que recebi da morte de Virgínia. Ela estava indo com um companheiro, num jeep velho no qual muito andei, fazer um trabalho de panfletagem na região onde fica hoje a Av. Suburbana. Devíamos estar entre 68 e 70. Por aí. A polícia passou a seguir o jeep numa perseguição desenfreada. O companheiro tenta correr o mais que pode. O carro da polícia bate no jeep e Virgínia ( ai, que saudade, minha companheira!! Com que direito sobrevivi a você?) é lançada pra fora do jeep tendo um traumatismo craniano. Seu corpo foi entregue à família, sob a alegação de que houve um "acidente".

Diva me pergunta se fui perseguida, como não fui presa. Conto que meu nome passou a fazer parte de uma "lista negra" e por isso,  tive que me afastar um tempo do Manoel Devoto, onde era presidente do grêmio. Aí muito emocionada, conto, que fui escondida por uma espécie de pai substituto, que me chamava brincando de "cabeça de motim". Era um juiz de menores, patrão de minha mãe, sua escrivã. Choro muito e com muito orgulho, digo seu nome: Armando Augusto Góes de Araújo. Meu querido e saudoso Doutor Armando, pessoa inigualável, salvou muitos e muitos menores do camburão e de serem assassinados. Gostaria muito (estou aos prantos) que seu nome constasse de algum registro daqueles que lutaram contra a ditadura. Com muita coragem, peitava os delegados sacanas e os filhos da puta do DOPS. Como meu pai não podia ir, me acompanhou ao funeral de Virgínia. Meu querido Doutor Armando, não resistiu à dor da perda de um filho e logo após, morreu de um infarto fulminante. Como pensar que não existe céu? Senão, para onde terão ido Iara, Virgínia, Doutor Armando?

Finalmente, acontece talvez a coisa mais bonita da minha experiência com o filme. Estando eu de saída, Diva me convida para depor no "Tortura Nunca Mais". Digo que irei com toda a certeza e lhe dou meu cartão. Saio com minha amiga que me dará uma carona. Por conta de experiências de infância, o que mais me machuca, magoa, dói, nas minhas relações interpessoais é sentir que não há "empatia" por parte do outro. Sentir que o outro não pode, não quer, não é capaz de "intuir" o que estou sentindo, me deixa numa inapelável solidão. Isso para mim é muito mais penoso do que uma grosseria, uma observação de mal jeito, coisas que faço muito. Alguns amigos dizem que sou pessoa de muito difícil compreensão, que sentem como se não me conhecessem. Faço outra leitura disso.

Outro dia, veio um amigo à minha casa, sabendo ele que eu estava com vergonha , por ter uma casa pobre, imaginando, que muito provavelmente pelas posições que ocupa, ele deve ter uma casa rica. Ao chegar, ele elogiou muito a arrumação da casa. A uma certa altura, convidei-o para ir à cozinha pois iria assar um pão de queijo. O meu fogão é automático. Estando com ele na cozinha, acendi o forno. Aí ele me perguntou :" já acendeu?" Eu disse: "já". Aí ele comentou : "estou perguntando porque não percebi. Porque o da minha casa é de acender com fósforo." A isso eu chamo sensibilidade. Quero tê-lo como amigo para sempre. Esse é daqueles que sabe o que é dor, para além de "a minha meia rasgou na festa. Meu deus, como sobrevivo com esse mico?"

Por outro lado, quando fui ver Rafa em Porto Seguro, estando duríssima de grana, tanto que foram seus pais que custearam tudo da minha viagem, (Rafa também sintoniza muito bem comigo pela sua sensibilidade. Por isso o tenho como filho) muito carinhosamente comprei um móbili feito pelos índios muito bonito e também muito barato, para presentear a netinha de uma amiga queridíssima, por quem tenho enorme gratidão. Quando encontrei com sua filha, esta, muito socialmente, agradeceu o presente. Mera formalidade. Ao que a minha amiga acrescentou sem a menor intenção de me ofender: "mas quem gostou mesmo do móbili, foi o gato". Acho que sou sensível por demais. Ou então, tenho, como se costuma dizer, "complexo de inferioridade".

Voltando ao filme e às questões de sensibilidade, a minha amiga, que tem se revelado uma companheira pra valer, corajosa e solidária, ao sairmos do filme para pegar o carro, me fez uma pergunta. Relativamente temos poucos anos de amizade. Ela já defendeu posições mais à direita, bem mais à direita do que defende agora. Assinou o manifesto nacional dos psicanalistas, divulgou para um monte de gente o Ato dos psicanalistas ocorrido na USP, gritou entusiasticamente "Fora Temer" num evento a que fomos no TCA .

E, o que mais me comove, a pedido meu, me acompanhou a um evento ao qual receei ir sozinha, confesso, assustada que eu estava com o "virar de cara", tratamento descortês, ou mesmo o tático silêncio cortante de colegas psicanalistas em geral de elite, posicionados à direita e que se sentem ofendidos com minhas posições, não podendo falar sobre isso, claramente. 

 A pergunta: "você não fica muito mal, muito mexida, quando vem a esses eventos? Não é muito desgastante para você?". Eu respondi que não estava mal. Estava comovida e um tanto machucada por ter sobrevivido a tantas pessoas de valor. Acrescentei que considero minha obrigação, o mínimo que posso fazer, comparecer e dar meu depoimento. Ela escutou (escuta que não é dar ordem do ouvido, órgão dos sentidos. Tem gente que pensa que escuta é somente isso) e não me refutou, acreditando em mim. Isso pra mim não tem preço.

 Fomos pelo caminho conversando sobre o filme, eu dizendo do enorme impacto que teve sobre mim, reconhecer no filme o companheiro com quem fazia "ponto". Quando chegamos ao Shopping Salvador, onde ela me deixaria, ela pegou carinhosamente na minha mão e me disse: "Quando você for depor no "Tortura Nunca Mais", eu vou com você." Nesse momento pós GOLPE, ando com meu lacrimódromo a mil. Chorei tanto que não pude entrar no Shopping.

 Descobrir que em meio à luta, respeitando o tempo de cada um, sem com isso termos de deixar de nos posicionar, sabendo que o outro acolhe a diferença, sem narcisicamente tomar como ofensa,menos ainda sem fazer proselitismo de bom samaritano, sobre o que é ou não democrático, olhando com respeito  alguém que sofreu uma experiência de militância com uma dolorosa perda, em plena ditadura militar, é que se constroem companheiros. Resgatei uma amizade muito importante, com pessoa sensível e de valor de uma forma muito bonita. Se ela puder, já sei com quem quero passar meu aniversário no dia 19. É com esse tipo de gente que tenho escolhido andar.

E aí, gente, acho que para alguns, contei uma história bonita. Para outros, pouco importa. Para outros tantos, mereço desprezo. Que graça teria, se não fosse assim? O importante é a gente, teimoso, não insistir masoquisticamente, naquilo que não dá mais certo. Tomara que meu amigo do fósforo no fogão, me leia. Não quero abusar da atenção de vocês. Então, a linda lição que me foi dada por Clara,  no dia muito triste em que foi votada no Senado a saída de Dilma, fica para a próxima.
                                                                              Um abraço,
                                                                         Marcia Myriam Gomes.