sábado, 25 de outubro de 2014

26/10/14                                        PIQUENIQUE.

Cara leitora, caro leitor,

Hoje estou começando uma série de crônicas dominicais intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Com isso, pretendo fazer relatos sobre eventos pitorescos e divertidos que tive a oportunidade de experienciar graças à personalidade mandona, corajosa, criativa, empreendedora, generosa e bem humorada de Dona Myriam Urpia, minha mãe. Mulher pioneira à frente no seu tempo na luta cotidiana pela afirmação feminina com independência e dignidade, Dona Myriam foi para nós um exemplo de enfrentamento das adversidades da vida com cabeça erguida. Nunca se deixou abater. Por isso, tenho hoje gratas recordações de episódios vividos na minha infância, adolescência e mesmo vida adulta, onde a presença de Dona Myriam foi determinante para que sejam relembrados hoje não só com bom humor, mas com muita, muita ternura e muito orgulho da mãe que possuo.

Escrevo principalmente para ela. Como não tem mais condições de manipular o computador, espero que meu irmão Lula ou seu neto Cauã Fraga, imprimam o texto para minha mãe ler. Temos conversado ao telefone sobre alguns desses episódios e isso tem feito com que ela dê gostosas risadas. Espero que você, leitor, nos acompanhe e se divirta com nossas aventuras e peripécias. Com isso, pretendo deixar um testemunho alegre da mulher extraordinária que é minha mãe.

Não se esqueçam que hoje é dia de votar. Votar, pra não voltar. Vote de acordo com sua consciência. Eu, também para homenagear minha mãe, vou votar em Dilma. Ainda ontem, muito lúcida, ela me disse que Dilma é muito melhor do que o neto de Tancredo Neves, que usa indevidamente o nome do avô por interesses eleitoreiros. Dona Myriam é assim. Faz questão de expressar sua opinião. Além de homenageá-la, vou votar exercendo meu direito de lutar para que a direita reacionária não volte a ocupar o poder. Vou votar para que não se jogue por terra o sonho de milhões de brasileiros por uma sociedade com menos  desigualdade social.

                                                                       PIQUENIQUE

Os tempos em que vivíamos só nós cinco, minha mãe, eu e meus três irmãos, poderiam ter sido de uma dureza dramática não fosse o jogo de cintura de Dona Myriam. Nossos pais estavam separados e nossa mãe nunca havia trabalhado antes. Era formada em música sem qualquer vocação para tal, qualificação que a deixava em dificuldade para arranjar um emprego que lhe desse condições para nos sustentar. Então primeiro trabalhou vendendo livros de porta em porta, em seguida foi secretária de Doutor Jorge Valente no Hospital das Clínicas, depois foi auxiliar de cartório. Finalmente fez concurso e passou brilhantemente para o cargo de escrivã no Fórum Ruy Barbosa. Só aí pudemos respirar quanto aos apertos  financeiros. Até fazer o concurso, o salário era uma coisica de nada. E haja privação!!

Por todo lugar que passava ganhando o pão de cada dia, minha mãe ficava reconhecida por sua competência e sociabilidade. Era querida, fazia amigos e também inimigos quando alguém tentava assediá-la, suborná-la ou desrespeitá-la nos seus direitos. Mexer com sua prole, nem pensar!! Quando ela era vendedora de livros, mesmo que mal tivéssemos o que comer, ela me presenteou com as obras completas de Fernando Pessoa, Drummond e Cecília Meireles.Mesmo estranhando um pouco, sempre estimulou meu gosto pela leitura e pela literatura e o dono da editora lhe facilitava a compra a prazo em infinitas prestações. Por isso tive o prazer de me deliciar com Drummond quando contava apenas 12 anos. Trabalhando no Juizado de Menores tornou-se muito respeitada e querida pelo juiz Doutor Armando Augusto Góes de Araújo. No tempo da cruel ditadura, graças a Doutor Armando eu, como militante de esquerda, fui salva de cair nas garras da repressão. Mas já que hoje é domingo, vamos à história do piquenique.

Morávamos em uma espécie improvisada de apartamento de sub-solo na casa de nossos avós maternos no bairro da Graça. Nossa mãe vendia livros de porta em porta para uma editora de nome "Aguilar", se não me engano. Eram livros de literatura e artes em geral.  Sandra, minha irmã mais velha, ajudava nas vendas. Ambas no fim do dia queixavam-se do dano ao solado dos sapatos que aquelas longas caminhadas com os livros pesados na mão causavam. A grana para o ônibus era curta. Mas quando chegavam em casa com calos nos pés, elas nos contavam entusiasmadas da aventura que era conversar com todos aqueles escritores e artistas plásticos, como Mário Cravo e Jenner Augusto.

Para o que tínhamos condições de comprar para comer, feijoada era um manjar dos Deuses reservado para ocasiões muito especiais. Se quiséssemos nos divertir, tínhamos que ser criativos. Nem pensar em restaurantes, cinemas, coisas assim. Nos tempos da dureza nunca fomos a um teatro. Mas fazíamos teatro no colégio público. Nem mesmo parques de diversões ou circos nos eram acessíveis. Mas nos divertíamos e como!!!

 Assim foi que juntada uma graninha boa, Dona Myriam nos comunicou que faríamos um piquenique com direito a feijoada. Nesse dia em que fomos comunicados do programa, de tanta alegria eu quase não dormi. Chegado o sábado antes do dia da farra, nossa mãe depois de chegar do trabalho passou boa parte da noite preparando a iguaria. Nunca aceitou que a ajudássemos na cozinha. Além de mandona, era centralizadora e também gostava de nos poupar. Além disso, tínhamos que dormir cedo para madrugar na direção do ponto de ônibus de Itapuã. O piquenique seria em Itapuã e, obviamente, de ônibus. Que farra!!!

No domingo, muito cedo descemos a ladeira com toda a tranqueira em direção ao ponto de ônibus. Tinha toalha de mesa para estender no gramado, o panelão com a feijoada, arroz, farofa, refrigerante, copos, talheres e pratos descartáveis à vontade. Nossa mãe, apesar da pobreza, gostava das coisas fartas e abundantes. Vestidos com nossas roupas de banho, distribuímos a tranqueira entre nós cinco, o panelão ainda quente, e sabe Deus como, chegamos ao ponto de ônibus.

 Na hora que o ônibus encostou, o primeiro arranca-rabo: o cobrador não deixou entrarmos com a tranqueira pela porta dos fundos. E Dona Myriam se manifestou. Discutiu, brigou, argumentou que havia outros passageiros com bagagens no fundo do ônibus, e depois de muito vai não vai que me deixava, tímida, meio envergonhada, fomos autorizados a seguir viagem com panelão e tudo mais.

Dentro do ônibus era uma festa só. O povão, acostumado a uma pobreza mais antiga que a nossa, saía em direção à praia com suas tranqueiras e fazendo batucada. Não sei como nos acomodamos dentro do ônibus, mas nos acomodamos e seguimos viagem felizes da vida. Eu, que sempre fui mais reservada, deixava pra lá o batuque e me encantava com a vista da praia na linda manhã que fazia. Observava os reflexos da luz do sol na água do mar e mesmo com batucada, escutava as diferentes espécies de sons do arremesso das ondas nos rochedos. Curiosa, me deleitava com o balé ao vento das folhas dos coqueiros que compunham a paisagem por onde o ônibus passava.

 E o ônibus seguia. Como me acomodei um pouco mais pra frente, a certa altura pude ver que o  motorista precisava fazer repetidos esforços para engatar a marcha e às vezes o ônibus não respondia à suas tentativas. Quando constatei que isso acontecia várias vezes, fui até nossa mãe que estava mais ao fundo e notifiquei o fato. Nossa mãe, diligente, logo passou à frente e perguntou ao motorista se estava havendo algum problema. Ele, com um senso de humor meio fora de hora e com cara de quem não quer nada, respondeu que aquilo era só chilique de fim de semana do ônibus e que estava tudo bem. Estávamos na altura do Jardim de Alah quando o ônibus empacou e não saiu mais do lugar.

Foi um alvoroço. Os batuqueiros fizeram os tambores reverberarem, crianças choravam, pessoas passavam por cima da panela de feijoada para ir à frente ver o que estava acontecendo, um Deus nos acuda!! Começou um empurra-empurra que resultou em briga. Dona Myriam foi até os beligerantes e lhes passou um sabão. Logo se acalmaram. E o ônibus parado. Então nossa mãe foi até o motorista e com voz firme de quem receava o seu piquenique com seus filhos ir por água abaixo, lhe tomou satisfação. Ele, diante de mulher tão valente, tentou sair de mansinho dizendo que aquilo já havia acontecido antes e que dali a pouco o ônibus ia se movimentar. E o ônibus parado. Alguns passageiros impacientes e pouco persistentes começaram a descer e ir embora. Nós ficamos e nossa mãe voltou a enfrentar motorista e cobrador, dizendo que nosso destino era Itapuã e que a Itapuã teríamos que chegar.

Àquela altura a nossa feijoada estava pra lá de esfriada e nossa mãe vendo que o ônibus estava definitivamente quebrado e não ia sair do lugar, exigiu que fosse providenciado um ônibus substituto que nos levasse ao destino. Foram providenciar quando já passava do meio dia. Mais passageiros começaram a se evadir do ônibus e nossa mãe, mais que depressa, os convidava a voltar persuadindo-os a permanecer lutando pelo direito de um transporte substituto. Algumas pessoas cederam ao apelo reivindicatório de Dona Myriam e permaneceram aguardando o novo ônibus chegar. Saímos de dentro do ônibus porque fazia muito calor, mas não arredamos pé. Colocamos as nossas tranqueiras na calçada e tocamos a esperar. Àquela altura permaneciam conosco na luta, por volta de uns 10 passageiros.

Mais de uma hora da tarde e finalmente aparece o tal ônibus substituto. E aí nossa mãe surpreendeu a todos. Disse aos funcionários da empresa que já que teve seu direito assegurado mas em hora tardia, mudou de ideia e resolveu fazer seu piquenique ali mesmo, no Jardim de Alah. E que fossem ônibus velho e ônibus novo para o quinto dos infernos. Generosa e solidária,  convidou os passageiros persistentes para comerem uma feijoada conosco. Eles, ao invés de seguirem viagem no ônibus novo, aceitaram nosso convite felizes da vida. Dona Myriam, embora vinda de família tradicional em Salvador, desde criança passou por dificuldades e aprendeu a dividir. Também por motivo de separação de seus pais, teve que partilhar um só prato de caruru com seus seis irmãos.

 Comida havia suficiente. Talvez não pudéssemos nos fartar com pratos muito cheios, mas mais importante era partilhar com nossos companheiros de empreitada. Os objetos descartáveis também davam para todo mundo. Dona Myriam é muito prevenida. Sempre fizemos gozação  porque em ocasião de um passeio ou  viagem,  carrega um monte de traste. Resultado: na hora que necessitamos de algo e temos que recorrer a ela, somos socorridos mas recebemos em troca, uma outra gozação. Talvez só o refrigerante não tenha dado pra todo mundo.

 Dona Myriam, com a ajuda de seus convidados estendeu a toalha na grama embaixo dos coqueiros e fez com seus filhos e companheiros de luta um senhor piquenique. Mais tarde todos tomaram um delicioso banho de mar, quando já estava toda a turma entrosada. Entrosada, só não estava eu, sempre um pouco arredia com pessoas desconhecidas. Sandra batia o maior papo com o pessoal, enquanto eu me refugiava distraindo-me com a beleza do Jardim de Alah. Estávamos, cada um a seu modo, muito contentes.

Assim é Dona Myriam. Multifacetada e de uma coerência com seus princípios que eu fiz questão de "herdar". Não é qualquer conversa mole que me demove daquilo que acredito. Muito menos me atemoriza passar dificuldades em nome das causas que defendo. Facilidades materiais não me seduzem. Devo isso a Dona Myriam. Branca, de olhos azuis, de família tradicional, tendo estudado em colégio de freiras, escolheu casar com um médico mulato e pobre. Quando não se sentiu mais amada, deixou o casamento para trás arcando com todas as consequências. Às vezes era braba. Às vezes também sou. Às vezes acho mais honesto a brabeza que a dissimulação.

Dona Myriam também é chorona. Não sei qual de nós duas é mais chegada à uma comoção. Não é sem dificuldade que lido com pessoas secas, contidas. Também lido com dificuldade com os que vivem a todo o custo fazendo o discurso do alegre. Aprendi com minha mãe que há horas que cabe ficar triste e chorar muito. Aprendi com ela que ficar triste não é necessariamente estar deprimido.

Desde que a conheço ia à missa aos domingos. Mas depois que mudou-se para Aracaju devotou-se fervorosamente à igreja, dedicando-se a causas sociais. Quando, há anos atrás, tomou o Hábito de Carmelita, tornou-se mais dócil, compassiva, tolerante. Talvez, por na sua compreensão, estar na mão de Deus, saber que não tem controle de tudo, tornou-se menos valente. Eu também por outras vias, à medida que fui envelhecendo, fui me dando conta, cada vez mais, que não temos controle de tudo. Não sabemos o que vai nos acontecer daqui a cinco minutos.

 Mas eu sei que daqui a cinco minutos estarei amando ainda mais essa mãe. Estarei grata à vida pelo que tenho de tão parecido com ela. Estarei grata à vida por cada cinco minutos que passo com ela ao telefone. Por que só ao telefone? Por que nesse exato momento, não posso deixar o computador e abraçá-la e dizer o quanto a amo? Só perguntando ao bom Deus dela. Só perguntando às ingratas contingências da vida e às escolhas que cada um faz e vai saber só depois. Agora tenho que pedir licença aos leitores. Está na inadiável hora de falar com Dona Myriam.
                                                                                                Marcia Gomes.

sábado, 18 de outubro de 2014

Cara leitora, caro leitor,

O texto abaixo foi escrito por uma mulher de 61 anos que por ser "muito emotiva" foi "poupada" por sua irmã mais velha e por seu irmão. Viveu o mês de setembro entusiasmada com as eleições e na torcida por Dilma. Viveu o mês de setembro encantada com a chegada da primavera e com a possibilidade de poder amar de novo.  Se planejava com muito amor e  entusiasmo para um encontro com seus colegas de Psicologia 38 anos depois. Se planejava para ir e levar junto um monte de gente à feijoada do Instituto Viva Infância que acontecerá em novembro. Seguia encantada com a psicanálise fazendo seus estudos e exercendo sua clínica muito causada por ocupar o lugar de analista.

 Soube que a sua mãe passava uns dias em Aracaju porque seu filho e nora com quem mora em Maceió, estavam passeando em Paris. Soube que sua mãe tinha um nódulo benigno no seio sem qualquer importância que seria extirpado apenas para não lhe causar desconforto. Foi "poupada". Não entendeu porque se o nódulo era benigno, sua mãe que tem uma saúde gravemente fragilizada por problemas respiratórios  seria submetida a uma cirurgia. Manifestou-se veementemente contra tal procedimento. Estava, com a melhor das intenções por parte de seus irmãos, sendo "poupada".

No dia 30 de setembro, chegando cansada do seu consultório, recebe a visita de seu irmão e sua cunhada que de volta da viagem a Paris vieram a Salvador. Numa conversa que dura menos de 30 minutos toma conhecimento que já há coisa de um mês, pelos resultados da ultrassonografia e da mamografia, foi dito pelos médicos que havia noventa por cento de possibilidade de sua mãe estar com um câncer cuja extensão estava sendo avaliada. A mulher cai em prantos e agradece penhoradamente a seu irmão e a sua cunhada por terem tido finalmente a sensatez de deixarem de "poupá-la".

Dessa noite em que deixou de ser "poupada" abruptamente, essa mulher de 61 anos que vive sozinha em seu apartamento e praticamente não tem familiares em Salvador, passa a viver um pesadelo. O texto abaixo é um depoimento triste, melancólico até, dessa mulher que ainda não conseguiu sair do pesadelo. Está se trabalhando para elaborar a notícia. E toma você como interlocutor para partilhar esta experiência. Toma você como interlocutor, para pela via da escrita, elaborar e circunscrever o real do trauma.

O texto foi escrito na circunstância  em que essa mulher, por não ir ao trabalho nesse dia, passa longas horas de solidão no seu apartamento, tendo a escrita como única salvaguarda para sua intensa angústia. Angústia de uma mulher que teve uma relação ambivalente com sua mãe de quem está distante geograficamente. Uma mãe idosa, com a saúde muito fragilizada, que está deprimida e que por isso não lhe foi dito a gravidade da sua situação, nem lhe foi dito o resultado da biópsia. Uma mãe que a mulher que escreve não sabe por quanto tempo terá, não sabe quanto tempo lhes resta.

Por tudo isso o texto sai como associação livre, sem retoques, mal escrito e perpassado de muita dor. Provavelmente tem muitas inconveniências. Por favor, caro leitor, não se assuste. O escrito reflete um momento. Não me encontro assim todo o tempo. Tenho trabalhado normalmente e tento dar conta das minhas atividades buscando me deixar tomar pela vida necessária que pulsa em mim. Partilho com você esse momento como forma de elaboração.  Ficarei muito grata àqueles que puderem ler partilhando comigo.


19/10/14                                   ESPERANÇA  TRISTONHA

Hoje é quinta-feira. Numa manhã ensolarada  já desperto sob o impacto de medidas a tomar e mensagens a receber relativas ao estado de saúde de minha mãe. Acordei pensando em como notificar Lily, a minha irmã caçula que mora em Rio de Contas, a respeito deste assunto. Acho que ela tem direito de saber e com todas as letras, que o estado de nossa mãe é delicado para que possa elaborar este sofrimento sem subterfúgios e mensagens ambíguas. Fiz o telefonema a Lily.

 Foi difícil, foi penoso, mas ela reagiu com serenidade e me disse que há dias atrás nossa mãe lhe telefonou e lhe disse que vai se submeter a uma cirurgia que talvez resulte numa mastectomia. Isso me deixa um tanto arrasada e perplexa, mas seguro a onda no telefonema a Lily. A minha mãe é uma mulher inteligente e foi casada com médico. Quanto estará  sofrendo sem que tenha espaço para falar e ser ouvida nos seus temores, apreensões e receios?

As opiniões na família quanto a dizer ou não dizer a minha mãe o que ela tem, divergem. Há aqueles que pensam que é melhor esconder por enquanto, esperar que o médico fale, o que, pelo que ela disse a Lily, e pelo que tem perguntado sobre o resultado da biópsia, ela já sabe. Eu não sei o que pensar. No momento da dor e vendo-a tão fragilizada, nenhum saber psicanalítico me socorre. Para o seu bem estar emocional é melhor que não saiba até a hora da cirurgia ou esta condição do não dito, das mensagens veladas, agrava o seu estado emocional? Não sei, não sei.

 Não sem apreensão, tenho respeitado a opinião de meus irmãos que pela proximidade geográfica estão mais à frente do processo de levá-la a médicos, providenciar os exames pré-operatórios e encaminhar a burocracia do plano de saúde. Felizmente há na família um médico oncologista muito afetuoso e competente que já deixou claro que no momento apropriado o paciente deve ser informado do que se passa  para fazer suas escolhas. 

Assim que acabo de falar com Lily, ainda muito mobilizada, recebo um alentador, continente e inesperado telefonema solidário de uma colega que sequer é minha amiga. Convivemos juntas quando eu fui professora na UFBA e na Ruy Barbosa, mas nunca tivemos proximidade. Ficou sabendo da doença de minha mãe na rede internética de comunicação sobre o encontro das turmas de Psicologia que ocorrerá em novembro. O telefonema me comove muito.De repente, de onde menos se espera, aparece uma pessoa sensível, justo na hora em que acabo de conversar com  Lily. Eu queria muito poder ser religiosa num momento desses. Então atribuiria o telefonema dessa moça aos desígnios de Deus.

 Os amigos e colegas de modo geral têm sido muito solidários. Participando da preparação do encontro das turmas de Psicologia que ingressaram na UFBA em 71 e 72, retomei contato com muitos colegas e alguns professores que têm se mostrado sensíveis à minha dor, telefonando e enviando mensagens de apoio. Para mim, que praticamente não tenho familiares em Salvador, é muito, muito mesmo, alentador saber que não estou sozinha, que posso contar.

 Há também aqueles que em momentos como esses preferem, até para não correrem o risco de serem invasivos, fazer de conta que nada sabem, desconversar. Há  os que se escondem nas ocupações e desaparecem sem dar notícia. Há os que fazem comentários e perguntas indiscretas. Há os que dão conselhos, prometem rezas. Há reações de todos os tipos. Porque há pessoas de todos os tipos. Cada um com sua sensibilidade, cada um com mais ou menos aparato para lidar com a dor.

Felizmente entre esses e aqueles há uma Ana Cecília, que assoberbada de tarefas com a preparação do casamento da filha, acha tempo para telefonar a minha mãe e a sensibilizar com a sabedoria da palavra amorosa. Há uma Denise Coutinho que como leitora do "Blá,blá,blá..." não receia partilhar comigo sua própria experiência com a dor de perder um ente querido, e há um Virgílio, que passando por cima de todas as nossas diferenças, escreve um E-mail amoroso partilhando sentimentos.

 Há Rafa, meu filho adotivo, que, mesmo meio desajeitado como são os homens para assuntos de sofrimento, conversou longamente ao telefone com minha mãe com um carinho que me deixou eternamente grata. Ela ficou contente quando soube que ele estaria por aqui. Rafa passou uma semana aqui com Nelly, uma sua amiga colombiana. Jamais poderei esquecer dessa moça, que tendo vindo a Salvador para passear, em nenhum momento se furtou a estar comigo da forma mais solidária, mesmo sacrificando seus programas turísticos. Nelly cozinhou comida colombiana para me agradar, me serviu chá bom para relaxar e me maquiou antes de eu ir para o consultório para levantar meu astral e para que os pacientes não percebessem que eu estava abatida. Isso sem falar uma palavra de Português. Pessoas como Nelly vão para o céu mesmo eu não acreditando que o céu existe.

 Há Gláucia, Letícia, Anamélia, Eglê, Sônia Pata, Ana Helena, Myrian Vallias, Aninha Portela, Eulina (Bolota), alguns colegas da Letra Freudiana e tantos e tantos nomes de gente que sabe que é difícil falar de dor, e apesar da dificuldade, não foge do sofrimento por mera comodidade e se sente tocada pelo desejo de dizer que me quer bem.

 E há a analista que detrás do divã, no secreto das quatro paredes, consegue causar em mim o desejo de me manter de pé e me oferece o dinheiro com que pago a consulta para eu fazer alguma coisa que me relaxe, me dê prazer. Há a analista para quem trabalhar na transferência significa a qualquer preço, me sustentar como um sujeito causado. Há a analista que "compreende" que não devo me forçar a somente fazer tarefas de rotina. Nesses momentos, fazer coisas práticas, particularmente aquelas que envolvem números, fica muito, muito difícil. Há a analista que sentiu a dor de perder uma mãe e com a firme coragem do seu lugar, opera efeitos de com cuidado me permitir me deparar com a dor que é minha.

Há Kécia. Minha amiga Kecinha que assim que soube que minha mãe está gravemente doente, me fez um telefonema de um amor e uma empatia, difíceis de imaginar. A religiosidade de Kécia não me assusta. Pelo contrário, sinto inveja de quem tem essa possibilidade sem querer fazer a cabeça de ninguém. Me faz bem saber que rezará por mim e por minha mãe. Ela é tão sábia e sensível, que me disse que quando tememos ter pouco tempo para usufruir do amor de alguém, em vez de ficarmos negando e escamoteando a realidade, a vontade é poder chorar junto. Kécia se disponibilizou para o que eu precisar e aceitei ir com ela à missa neste domingo. Na missa irei procurar por um senhor que presenteou minha mãe com um azulejo com um texto de Santa Tereza D'ávila. Minha mãe me pediu que encontre esse senhor e que informe a ele que ela tornou-se noviça carmelita. Neste momento movo céus e terra para realizar um desejo de minha mãe.

No domingo passado deixei os leitores do "Blá, blá, blá domingueiro...." na mão. Não escrevi a crônica. Como observou uma amiga muito sensível, foi um domingo sem crônica. Na verdade, me deixei na mão. Passei um fim de semana um tanto deprimida, quase enveredando para uma melancolia. Este fim de semana estou tentando fazer diferente. Como o texto é muito íntimo, não o enviarei a todos os leitores. Para preservá-los, para me preservar e sobretudo para preservar minha mãe. Mas o enviarei às pessoas que me parecem mais sensíveis, que parecem suportar bem um escrito triste. Acho que tenho compromisso com meus leitores e enquanto tiver condições, procurarei honrá-lo. Mas não me peçam pra falar de flores.Não me peçam porque não quero escrever só pra não dizer que não falei de flores. Não quero e não posso falar de flores. Hoje sou de uma esperança tristonha.

Me bateu mal ouvir de uma pessoa que eu devo continuar fazendo as minhas tarefas rotineiras "como se nada estivesse acontecendo". Será que foi assim que ela fez quando perdeu sua mãe? Tenho baixa tolerância para esse nível alienado e patológico de negação. Só não mandei essa senhora à merda porque minha mãe tem uma enorme gratidão a ela. De mais a mais é uma dondoca que nunca se esforçou para ter um melhor nível de informação.

 Sei que me exponho muito partilhando com meus leitores um momento de sofrimento tão pessoal. Alguns me criticarão. Poucos elogiarão a coragem. Alguns silenciarão num ignorar em tom de censura. Sei que é quase consenso que não pega bem a uma psicanalista esse grau de exposição. Mas me reservo o direito de ocupar o lugar de analista dentro do meu consultório. Dentro dele sei o lugar que me cabe e o cumpro com rigor. Aqui quem escreve é a pessoa. E nesse momento faz bem à pessoa escrever. Nem que seja para estar melhor aparelhada para às 19:00h, depois da sua missa na televisão, dizer algo que faça bem à minha mãe.

Agradeço à vida a oportunidade de estar vivendo um momento de sintonia com minha mãe. Um momento em que converso com ela com entusiasmo, sobre o fato de ontem ter sido o dia de Santa Tereza D'ávila. Sua vozinha está muito frágil, com cinco minutos de conversa pede para descansar.Procuro oferecer a ela uma escuta para que se sinta à vontade para partilhar seus medos, receios e apreensões.

 Temo que por um mecanismo involuntário de negação as pessoas que a cercam evitem escutar, minimizem ignorando seu sofrimento, deixando-a muito só do ponto de vista do apoio psicológico, mesmo que se desvelem em outros cuidados com ela como administrar remédios e levá-la para fazer exames. Não podemos exigir de todos que tenham conhecimento e habilidade para escutar o sofrimento. Sei que tenho essa habilidade e gostaria de estar mais perto para exercê-la mais continuamente junto a minha mãe.

 Acho que meus leitores sabem que minha mãe é uma católica muito devota e que há poucos anos atrás ordenou-se noviça carmelita. Então converso com ela sobre o dia de Santa Teresa D'ávila. Não sem dificuldade, leio a Bíblia e comento com ela. Sinto que a religião é o que a mantém ainda conectada ao mundo ao redor e então converso sobre religião, lembro que Deus está segurando sua mão. Quando desligo o telefone estou exausta e aos prantos. Que Deus, meu Deus, que permite que uma senhora de 81 anos que já sofreu horrores na vida, passe pelo que ela está passando, sem que saibamos quanto de mais sofrimento a vida lhe reserva nos dias vindouros? Que Deus, meu Deus?

Se não tem Deus, agradeço à vida poder dar a minha mãe a alegria de saber que finalmente me converti, coisa que era o seu maior desejo. Ela, ao ouvir isso, esboça um quase sorriso. Não sinto culpa, remorso e muito menos me sinto pecando se escolho dizer a ela essas certas inverdades. De certa forma me converti. Hoje o que me move é poder proporcionar a ela momentos de alento, de alívio. Disse-lhe hoje que estou com muitas saudades e que na hora que ela quiser pego o avião e corro para abraçá-la. E aí ela me pergunta brincando se estou nadando em dinheiro para poder abandonar meus pacientes a qualquer hora, pelo tempo que for necessário. Eu respondo brincando que ganhei na Mega- Sena.

 Mas para meu desamparo ela em seguida me pede que não vá por agora vê-la em Maceió, porque isso atrapalharia a vida do meu irmão.Diz que prefere que eu vá na ocasião da cirurgia. Pra mim a prioridade é fazer a vontade dela. Mas isso me condena a um calvário sem fim. Ficar acompanhando os acontecimentos por telefone, à distância. Ruídos na comunicação, mal entendidos no relacionamento familiar, o medo, o terrível medo de ela não resistir a tempo de eu poder me despedir. A vontade de poder estar junto, cuidar. Acho que só quem cuidou de um ente querido gravemente enfermo, sabe o quão desamparante é ficar à distância. Beira o insuportável.

Com tudo isso, agradeço à vida pela irmã mais velha que tenho. Tão amorosa e tão empenhada quanto eu em proporcionar à nossa mãe momentos de alento. Sandra, que sempre foi muito maternal comigo, me telefona todo dia para saber como estou aguentando o tranco. Também, de modo diferente, porque ele é mais contido e chegado a uma negação, agradeço à vida estar podendo ter uma interlocução afetuosa com meu irmão. Tudo deve estar sendo muito difícil para ele e minha cunhada com quem mora minha mãe.

 Agradeço muito a eles por esses anos que vêm cuidando dela.  Meu irmão é seu filho preferido. Sempre foi o xodó de minha mãe que muito dele se orgulha. Lula é meio fechado, muito voltado para sua família nuclear e pouco partilha com suas irmãs as decisões que toma em relação a Dona Myriam Urpia, nossa mãe. Praticamente não nos telefona, mesmo depois que minha mãe ficou mais dependente e tendo muitos lapsos de memória. Se queríamos ter notícias suas, tínhamos que buscá-las com ela própria.

 Em relação a nós, as irmãs mulheres, Lula tem uma situação financeira privilegiada. É engenheiro da Petrobrás aposentado e felizmente pode proporcionar a ela uma moradia muito confortável com um jardim muito bonito. Este ano me reaproximei muito do meu irmão mas creio que preferia ser mais solicitada a participar do que diz respeito à nossa mãe. Às vezes sinto como se minhas opiniões não importassem, nada tivessem a contribuir. Não importa. Sou imensamente grata a ele e à minha cunhada que parece ser mais comunicativa e cuida com desvelo de Dona Myriam.

Hoje, quinta-feira, dia em que não trabalho, fico nesse longo lapso de dor. Tinha um grupo de estudos de Lacan, mas na última hora a colega desmarcou. A amiga, muito amiga mas que morre de medo de assuntos de doença, me liga num telefonema meio desajeitado e sequer se dá conta que havia me prometido sair comigo hoje à noite. Simplesmente se despede ao telefone e sequer menciona o que havia combinado.Eu, compreensiva, respeito o lapso.

 Ontem fui ao seminário da Letra Freudiana e me senti bem. Consegui acompanhar a discussão e opinar sobre o tema de trabalho do próximo ano. Infelizmente tive que interromper meu curso de psicanálise e literatura. Tenho que conter gastos ao máximo. Não sei o que me reservam os dias futuros, não sei por quanto tempo poderei precisar me ausentar do consultório para assistir minha mãe. Também me faz bem atender aos pacientes. A gente relativiza o próprio umbigo. O compromisso com o rigor quebra, dá um corte na tendência ao sentimentalismo. 

Na minha estante passo de relance o olhar no dorso do livro "O Lado Fatal". Depoimento corajoso de Lia Luft quando perdeu Hélio Pellegrino. Se não me engano, Lia Luft deixou um casamento e mudou de cidade para viver sua paixão por Hélio Pellegrino e o perdeu 2 anos depois. Como a compreendo!! Precisou escrever e escrever para elaborar seu luto. O que mais me dói e me deixa tão vulnerável é ter ganhado uma nova mãe com pânico de não ter tempo para usufruí-la. Pelo menos na minha leitura, a mãe que eu tive até mais ou menos 10 anos atrás, era controladora, autoritária, de difícil manejo. Nos atritávamos muito. Com o passar do tempo eu fui ficando mais terna e tolerante. Com o passar do tempo a fui sentindo mais vulnerável e doce. Fiz um longo trabalho de análise para ressignificar minha relação com minha mãe. Trabalho penoso como deixar um casamento e mudar de cidade como fez Lia Luft.  

 Quando minha mãe mudou-se de Aracaju, onde mandava e desmandava na sua própria casa, e passou a viver sob os cuidados muito amorosos de meu irmão e minha cunhada, perdeu muito da sua autonomia, afastou-se da paróquia onde tinha uma rede de amigos, passou a ter uma vida social mais restrita. Sua saúde com os problemas respiratórios foi se debilitando a ponto de não poder mais ir à igreja assistir missa. Como meu irmão e minha cunhada são espíritas, minha mãe ficou em casa sem uma interlocução para seus interesses religiosos.

 Como eu queria ter ainda hoje aquela mãe com quem eu me atritava! Não teria esse rasgo cavado fundo de ternura me devassando as vísceras. Será? Me sinto sem chão, sem eira nem beira, ouvindo a sua vozinha frágil como um passarinho desamparado. Será que esse passarinho desamparado sempre esteve ali e eu é que não via? Quanto tempo perdemos sem nos reconhecermos! E agora que posso protegê-la como a um passarinho desamparado, agora que posso lhe dar meu colo, meu amparo, meu esteio, me deparo com essa distância geográfica. Será que justo agora, ela resolve partir me deixando sentir como um abraço inutilizado, como um afago que chegou fora de hora? Não é justo!!!

 Os psicanalistas que me leem, se não são afeitos à ternura e à comoção, e se não são bons psicanalistas, devem estar lendo este texto pensando em "Luto e Melancolia" e fazendo interpretosas à vontade.Pois que façam.Eu, nesse momento, dispenso interpretosas. Tenho a minha analista e já recorri a ela que, rigorosa, ética, foge dos clichês livrescos como o diabo foge da cruz.

Quero mais é acolher o carinho dos meus irmãos, dos meus  familiares, leitores e amigos. Quero me fortalecer para me sentir um abraço útil e um afago que ainda está na hora. Quero não perder a esperança de que a minha mãe sobreviva a esta cirurgia e que possa sorrir esse seu atual sorriso de docilidade quando disser que Quitéria, a sua empregada, é a cara de Marina, a ex-candidata a presidenta. Ela não gosta de Marina porque ouviu dizer que é evangélica. Perguntei a ela hoje se Marina derrotada no primeiro turno resolveu assumir o papel de cozinheira. Ela, ainda que timidamente, sorri da minha brincadeira.

 Numa tarde solitária de quinta-feira, escrevo a meus leitores um depoimento mal escrito. Como escrever bem em meio a tanta angústia? Não consigo escrever bem e o texto parece piegas. E ao fazê-lo me desmancho em lágrimas. A necessária catarse. Choro também de gratidão à vida, por estar sempre a nos surpreender com o inesperado.De tentar acreditar que desta experiência sairei uma pessoa melhor. De tentar acreditar que estou aprendendo e crescendo. De tentar acreditar que vou suportar.

 Numa tarde de quinta-feira solitária, sem ter santo a quem apelar, quero fantasiar que a minha mãe acorda da cirurgia revigorada e me dá um carão bem autoritário por eu não ter senso prático e não saber fazer cálculos. Mas eu toco a sua testa com suavidade e lhe digo: "Mama, minha mama querida!" e aí ela vira a mãe com ar de passarinho desamparado e invertendo os papéis a alimento como faz a mãe a seu filhote. Aí eu integro as duas mães e fico com ambas para a eternidade.

Hoje já é sábado de manhã. Escutar meus pacientes ontem me fez um bem enorme. Durante o café me inteirei com a minha auxiliar doméstica do andamento das pesquisas sobre o segundo turno das eleições. Fiquei preocupada com a de não todo afastada perspectiva da direita representada por Aécio ocupar o poder. Mas na verdade meu investimento de energia para esse tipo de assunto é muito pequeno agora. Acordo e fico aguardando que dê a hora de ligar para minha mãe. Enquanto aguardava, liguei para Lily, minha irmã caçula, para saber como ela está depois da notícia que lhe dei. Infelizmente não consigo falar. 

A conversa com minha mãe me deixa extremamente triste. Tenho o cuidado de disfarçar para lhe dar forças e isso me machuca. Tenho um lampejo de ânimo quando a escuto dizer que assistiu ontem na televisão um programa sobre a Chapada Diamantina. Manifesto interesse, faço perguntas. Ela pede para interromper o telefonema porque está muito cansada. Passou a noite inteira com falta de ar. Me disse que não telefona a ninguém porque não tem boas notícias para dar. Queiram ou não minha mãe parece saber o que se passa com ela. Está cansada. Sua voz está por um fio. Consternada, lembro que o livro "As Palmeiras Bravas" de Falkner termina com a seguinte frase: "Prefiro a dor, ao nada". Consternada, lembro do livro de Simone de Bauvoir intitulado "A Cerimônia do Adeus". O sal da lágrima marca a pele do meu rosto. Resolvo deixar meus leitores descansar. Minha mãe pede descanso. Comigo o sal da lágrima.
                                                                        Marcia Gomes. 

domingo, 5 de outubro de 2014

05/10/14                                              MAMA.

Não sei com que fôlego, escrevo. Numa tarde de sábado que levou para bem longe meus anseios de primavera, ouvindo no meu predileto canal Arte 1 uma sonata muito triste ao piano. Definitivamente hoje não há primavera em Salvador e chove. E venta impiedosamente no Morro do Gato. O fôlego vem do fato de ela ter tido fôlego de me telefonar de lá de Maceió, onde mora. Quantos e quantos quilômetros nos separam neste momento de dor? Não vejo a hora de ouvir ao vivo a sua vozinha sem fôlego. A asma a maltrata. Seu aparelho respiratório oscila como uma folha outonal ao vento. E sem qualquer razão, ao vento se desfaz em pequenos pedaços.

Me telefonou com sua vozinha de nada e até esboçou um sorriso. Disse que sua amiga de igreja de Aracaju lhe recomendou uma pomada milagrosa que aliviou a forte dor no braço. Dor no braço do lado em que foi feita a biópsia. Palavra sardônica. Palavra cruel. Palavra que não poupa quem está perto e poupa menos ainda quem está longe. Quem está longe e a quem nada mais resta senão se identificar sentindo uma forte dor no braço. Uma forte dor no braço que recusa interpretações. Hoje não quero saber de Freud ou Lacan. Dor de amor e forte no braço. Com sua vozinha de nada também conseguiu me dizer que está contente porque Rafael, meu filho adotivo, chega amanhã.

Contendo o choro e encenando uma boa inflexão de voz digo à Mama que colocarei Rafael ao telefone amanhã para falar com ela. Mama agradece. Mama é o modo carinhoso com que trato minha mãe, desde que a descobri diversa da mãe que eu pensava ter. Faz tempo isso. Faz, felizmente, muito tempo que a descobri diversa. Faz muito tempo que a redescobri. A mãe da minha adolescência e juventude que eu me permitia ter, jamais se queixaria de uma dor no braço. Talvez porque eu só pudesse enxergar a minha própria dor. Talvez porque ela estava tão ocupada em nos fazer sobreviver em meio a um deserto prenhe só de ausências, que ficavam confundidos amar e cuidar. Amar e prover. Era uma mãe de estranhamentos e um certo temor de minha parte.

De repente me vi uma mulher na maturidade e sem protestos juvenis ou julgamentos intelectualóides, me vi uma mulher com coragem de admirar e se enternecer com a sua forte religiosidade. Foi esse o caminho que escolheu para responder às indagações do por quê passou tantas privações na vida, teve um casamento infeliz, trabalhou duro na vida vendendo livro de porta em porta antes de se tornar uma escrivã competente e reconhecida, ficou viúva aos 40 anos, padeceu de sérios problemas respiratórios e na velhice ainda teve que ajudar financeiramente aos filhos. Admiro e tenho orgulho dos seus 40 cadernos manuscritos e muito bem redigidos com reflexões bíblicas. Admiro como na igreja se dedicou a causas sociais e fez uma imensidão de amigos que a respeitam tomando-a como referência. Há alguns anos atrás, fui assistir à sua ordenação como noviça carmelita e me senti pacificada com seu júbilo à moda de Santa Tereza D'ávila.

Quando a visitei em junho deste ano por ocasião de nossos aniversários, me disponibilizei a assistir à missa com ela diariamente na televisão. Desde o ano passado ela já não tinha condições de sair. Então assistíamos na televisão, religiosamente. Não há modo melhor de dizer que a amo. Há poucos anos atrás me confidenciou que seu maior pecado foi não ter nos dado a devida educação religiosa e nos ter deixado à mercê do ateísmo de nosso pai. Quando de uns tempos para cá a percebi perdendo forças, com a saúde fragilizada e sofrida por precisar ser cuidada, passei com regularidade a ler trechos da Bíblia para conversar com ela.

Foi um privilégio para mim poder fazer as pazes com essa mãe que tenho, e poder dispensar a ela meu amor e meu cuidado do modo que ela necessita, compreende e agradece. Chove torrencialmente lá fora. Tenho a alma úmida e meu braço dói, bem do lado em que ela fez a biópsia. Palavra sardônica. Palavra cruel. Como encontro fôlego para escrever e não deixar os leitores na mão? Urge não deixar os leitores na mão. Não sei o que será no próximo domingo. Não sei, mas talvez precise deixar os leitores na mão. Preciso fazer esforço para não me deixar na mão. Partilho com os amigos a minha dor. Recebo muita solidariedade.

 Me machuca muito constatar que não podemos fugir às contingências e que a vida da gente muda radicalmente de significado a uma frase dita, uma sentença proferida. E essa distância geográfica, como me tortura!! Não vejo a hora de estar ao lado de minha mãe. Amanheço e anoiteço pensando nas horas do dia em que posso falar com ela. Cada minuto, cada segundo conta não sei em que direção. Estou diante do imponderável. Essa semana que entra será decisiva quanto a saber por quanto tempo poderei ouvir a sua vozinha sem fôlego. Está difícil trabalhar. É uma corrida contra o tempo.

 Penso todo o tempo no que posso lhe proporcionar de melhor. E quase nada posso. Penso no que se passa com ela, em como ela está, enquanto escrevo. Penso se devo estar escrevendo assim aos meus leitores. Ficarão sabendo que a saúde da minha mama está por um fio. Isso me constrange. Não  estarei devassando a sua privacidade confessando aos leitores o que não posso confessar a ela própria? E se vierem manifestações de solidariedade, será que quero recebê-las? Os  meus leitores costumam me escrever e eu respondo. Será que vou querer responder desta vez?

Mama. Palavra. Qual a sua extensão? Da sua extensão depende o tempo em que terei minha mãe comigo. Não quero dizer mais nada. Não quero escrever mais nada. Peço licença aos leitores para me retirar. Peço licença para chorar e para pedir ao Deus que ela acredita tanto, que não a deixe sofrer. Ainda que para isso tenha que me deixar só. Só dessa solidão que não tem escrita que dê jeito.
                                                                            Marcia Gomes.