domingo, 9 de agosto de 2015

09/08/2015                                                      DESIDENTIFICAÇÃO

Dia dos pais me é quase indiferente. A não ser por ter visto no Facebook a comovente fotografia de um pai com óculos enormes. Tão grandes quanto a dor da saudade de quem postou a fotografia. A não ser por ter visto no Facebook um pequeno texto poético sobre um pai que à noite, enquanto dirigia, costumava deixar a luz interna do carro acesa. A gente é indiferente, é uma data comercial, mas talvez por sermos seres de linguagem, imersos no simbólico, alguma coisa nos fisga e cutuca a memória com vara curta. Então lembro que meu pai que morreu aos 45 anos, era defensor da ideologia comunista e que isso deixou em mim marcas identificatórias pelas quais sou grata. Doutor Joaquim, era esse o nome dele, era avesso a celebrações inventadas pela sociedade de consumo. Neste dia, aceitava de bom grado um presente que fosse um desenho, uma redação, um poema, uma pintura, um trabalho com as artes. Nem pensar mercadoria comprada em loja, invenção perversa do capitalismo.

Me ponho a pensar sobre as marcas identificatórias pelas quais sou grata, imaginando o que estaria Doutor Joaquim a dizer sobre o grave momento político que vivemos. Se eu acreditasse que existe céu e se por lá ele estivesse, teria ficado muito feliz ao ver há poucos meses atrás, os socialmente desprivilegiados como ele fazia questão de ser (assumindo suas origens na negritude e, sectário, recusando-se a ter consultório particular ao qual só tem acesso a elite ), podendo circular livremente nos aeroportos desfrutando das viagens de avião. Meu pai ficaria muito feliz com o sistema de cotas nas universidades, com o povão tendo acesso a moradia, a bens e serviços como qualquer cidadão tem direito a ter. Outra vez, sectário, torceria um pouco o nariz para o governo do PT por achá-lo reformista e populista, fazendo alianças amplas demais com setores progressistas da sociedade que defendem as liberdades democráticas mas não se interessam em empreender a revolução socialista. Provavelmente diria que o momento crítico em que está mergulhado o governo seria o resultado desse equívoco do PT.

Penso que as marcas identificatórias produziram em mim vieses que comprometeram ou pelo menos retardaram que eu chegasse à compreensão que tenho hoje do momento político que atravessamos. Na adolescência, fui militante de uma radical organização clandestina de esquerda. Na juventude, preferi não estar à frente do movimento político e não assumi cargos de direção. Participava do movimento estudantil na luta contra a ditadura, simpatizando com as posições do PCdoB. Na maturidade, ("ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais") talvez por as marcas identificatórias terem se tornado mais incisivas e também por falta de informações fundamentadas e consequentes,  por um longo tempo, torci o nariz para o PT a partir do momento em que assumiu o poder.

Achava que o presidente Lula não estava tão à esquerda quanto eu gostaria. Algumas vezes preferi votar nulo do que votar num partido que na minha opinião fazia alianças muito amplas, defendendo propostas reformistas e populistas que não lidavam com as raízes das contradições da classe trabalhadora, contentando-se com lhe oferecer melhores condições de vida, retardando a marcha para a revolução comunista. Pelo que eu via, o governo do PT não lutava radicalmente contra os interesses das elites privilegiadas. Na verdade, eu estava repetindo o discurso que supunha que meu pai teria, se aqui estivesse. Um discurso anacrônico. Isso eu não percebia.

Foi o meu contato com setores das classes dominantes que me fez mudar de opinião. Desde que o PT assumiu a presidência da república, eu fui vendo um tamanho rancor pelo governo por parte da classe dominante e de setores da classe média alta que só aspiram ascender socialmente, que pouco a pouco foi caindo a ficha. As contradições entre a classe dominante e os oprimidos são tão agudas, que o mero fato de os desprivilegiados terem tido acesso a melhores condições de vida, enfurece os poderosos gerando neles e naqueles que neles se espelham uma ira descomunal. Ouvi de uma psicanalista respeitável, a quem muito considero, que depois do bolsa família "esse povo" não quer mais saber de trabalhar. São uns desocupados. Nas palavras dela.

 Escutei no consultório alguém dizer que agora já não dá nem gosto viajar de avião. Qualquer hora na sua poltrona ao lado tem um preto.De outra psicanalista que confunde igualdade de direitos defendida por Marx com a natural diversidade subjetiva defendida por Freud e Lacan e que eu defendo também, escutei que não cabe defender igualdade de direitos porque os sujeitos são diferentes por estrutura. Em outras palavras, quem nasceu pobre tem que se conformar em ser pobre e que não se atreva a reivindicar direitos. Ouvi muitas coisas como essas até compreender que numa sociedade em que a luta de classes é tão acirrada, não dá para se pensar em de uma hora para outra se fazer a revolução. Mesmo porque os tempos agora são outros e é preciso se pensar qual transformação na estrutura da sociedade é necessária e cabível fazer. Finalmente compreendi que alcançar melhorias significativas na educação, na saúde, na moradia, nas condições de trabalho aliadas à preservação das liberdades democráticas, num país como o nosso já é um avanço enorme.

O divisor de águas entre a Marcia revolucionária incendiária  e a Marcia progressista que apoia o projeto do governo de preservar as liberdades democráticas promovendo melhores condições de vida para os desprivilegiados, foi a Copa do Mundo. Entendi que o governo ainda que a passos lentos, estava mexendo nas contradições sociais, ao ver que a elite conservadora chegou ao cúmulo de abrir mão de seu gosto apaixonado pelo futebol para sabotar o trabalho da presidente da república e de seus aliados. De lá para cá não me tornei petista, (por enquanto me reservo o direito de me manter à parte de filiação partidária) mas apoio o projeto de governo da presidente Dilma assim como apoiarei Lula se vier a se candidatar.Um Brasil livre com pleno respeito aos direitos humanos e com garantia de igualdade sócio- econômica-cultural vai sendo aos poucos construído. Se a direita rancorosa vocifera enfurecida contra o pouco que já foi conquistado, imaginem o que não seria se quiséssemos dar um passo para além do que as condições propiciam.

Assisti ontem na casa de uma amiga (muito generosa e excelente anfitriã) uma palestra do historiador Leandro Karnal sobre Hamlet no Café Filosófico. Com um jeito de sábio cínico um tanto niilista, entre muitas coisas interessantes que disse, quando falava sobre o que diria Hamlet na contemporaneidade, Karnal falou com um certo escárnio que só os que querem se sentir felizes podem sustentar o engano de que a corrupção está circunscrita a apenas um partido. Esses mesmos que se querem felizes propagam que é preciso exterminar um partido para exterminar a corrupção. Segundo ele, a corrupção começa quando o seu carro anda no acostamento, quando numa aula de ética alguém assina a lista de presença pelo colega faltoso. Começa muito antes de qualquer partido ser acusado de corrupto.

Acho lamentável que haja pessoas do PT envolvidas em processos de corrupção e acho que tendo primeiro assegurado o seu direito de defesa, os considerados culpados devem ser punidos. Diga-se de passagem, considerados culpados por um judiciário imune a pressões ideológicas da mídia vendida aos interesses dos poderosos. Não quero ser ingênua e me deixar contaminar pela campanha caluniosa e sensacionalista da rede Globo e outros órgãos de propaganda  contra o governo, cujo visível propósito é desestabilizar o estado democrático com vistas a tornar viável um golpe de direita. O PSDB nada tem a oferecer de bom ao nosso país. Não estamos numa conjuntura política semelhante a 1964. Os tempos são outros. A ditadura foi derrubada e não voltará, graças ao preço pago por inúmeros brasileiros patriotas. Brasileiros patriotas como eu, como você, cujas memórias estão prontas a testemunhar o horror que foi a ditadura militar. As manifestações propostas pelas forças reacionárias para acontecerem no próximo dia 16, não contarão com a minha participação nem a de milhões de brasileiros que querem contribuir para um Brasil livre e democrático.
                                                                                                                                Marcia Gomes. 

domingo, 2 de agosto de 2015

02/08/2015                                                             ESCREVER                                  

Agosto é chamado de "mês do cachorro louco". Acho que é em São Paulo, nas suas idiossincrasias climáticas, que o vento uiva, vocifera como um cachorro acometido de hidrofobia, no mês de agosto. Agosto, mês que anuncia, inclemente, que mais da metade do ano já se passou e que estamos mais velhos, sem que necessariamente nossos projetos estejam se cumprindo. Meu projeto de publicar algumas crônicas domingueiras. Bem poucas. Aquelas que repercutiram melhor no cotidiano dos leitores. Aquelas sobre as quais mais leitores me escreveram comentando, ou disseram que me ler fez alguma pequena diferença nas suas vidas. É muito gratificante saber que alguns mais generosos me leem. Alguns mais sensíveis, talvez, adivinhos de que em mim uma subjetividade clama por se fazer presente numa interlocução com o outro, mesmo sabendo que interlocução não há e que o outro é mera suposição.

Acho que àqueles que apraz escrever, mesmo que como eu, não tenham exatamente talento literário, não sejam escritores, há o gosto por inventar uma interlocução possível com um outro suposto, que se deixa entrever por detrás do traçado percorrido pela pena. Cada vez que se toma a pena, sem saber a quem se dirige, sem saber a quem vai tocar, quem escreve sabe que constrói um interlocutor sem substância palpável, que serve para mitigar a dor de existir. A não ser aqueles autores de obras comerciais como a literatura de auto-ajuda, quem escreve não sabe para quem escreve. Não sabe a quem vai agradar, não pode escolher a quem endereçar o seu texto, oscila na corda bamba sem qualquer garantia. Escrever talvez seja o ato que melhor represente a angústia de ser montado, tomado pela linguagem, açoitado por ela, mergulhado no buraco negro de se arriscar sem eira nem beira, tendo como alento, como anteparo para a angústia, somente um leitor criado pela invencionice do faz de conta. Quem escreve o faz para um leitor que não tem rosto, um leitor criado para dar conta da solidão que é não saber nunca o que o outro quer.

Quem poderia dar conta de responder por quê numa tarde de sábado, ao invés de ir ao cinema, ir ao shopping, ir encontrar com amigos ou mesmo estudar, preparar um trabalho, arrumar a casa, eu escolho, por um certo tempo, escrever e enviar o meu texto para um número razoável de leitores que são meus amigos e/ou meus colegas, nos quais não penso quando componho meu escrito? Não penso em ninguém em particular no sentido de ser destinatário do meu texto, enquanto escrevo. No entanto, depois de enviado, o escrito passa a pertencer a quem o recebe, cuja leitura me importa muito. Gosto de saber que a leitura do meu texto tocou alguém, fez alguém ter alguma experiência estética, aprender sobre a vida, repensar algumas questões, concordar, discordar, ou que alguém simplesmente ficou sabendo de mim.

 Gosto de contar sobre mim por escrito. Por que? Para que? Não tenho resposta. É mistério. Só sei que desde que me entendo por gente gosto de escrever e levo isso a sério. Estou me lembrando agora que na quarta-feira passada, encontrei uma colega que raramente vejo, no Centro Médico Itamaraty. Ela me disse que lê minha crônica domingueira e falou : "você anda lendo Valter Hugo Mãe, não é?" Fui tomada de um contentamento muito singular ao ouvir aquela pergunta. A pergunta dava conta que a colega me leu. Fui tomada também por uma vergonha, um pudor, quase uma culpa, porque entabulamos uma conversação muito tímida sobre Valter Hugo Mãe, já que no momento da conversa eu sentia forte dor no corpo, não podendo ficar muito tempo de pé, razão pela qual tive que abreviar o nosso promissor bate papo. Mas registrei que ela me disse que aquele autor escreveu um livro intitulado "A desumanização".

Na quinta-feira encontrei no shopping com outra colega que havia me escrito no domingo dizendo ter ficado tocada por meu texto. Ao me encontrar, ela teve o cuidado de perguntar se eu estava melhor da dor, e voltou a me dizer que mesmo escrito com dor, meu texto era bonito. Fiquei muito contente. Um poeta que considero ter o estatuto de um Carlos Drummmond escreveu e dedicou um poema a mim, a propósito do meu texto de domingo passado. Isso me deu um contentamento enorme. Gosto de responder a todos que me escrevem comentando meu texto. Sinto alegria de saber que meu escrito foi lido e tocou alguém de algum modo. Evidentemente deve haver muitas pessoas que não gostam de me ler e por isso, não me escrevem dando qualquer retorno. Assim como há as que leem, mesmo que não me escrevam.

Nesses tempos em que estou muito maltratada pelo problema na coluna de difícil solução ( não quero me submeter a uma cirurgia e minha dor é refratária a medicações e tratamentos alternativos), escrever tem sido fundamental. Em geral, por causa da dor, fico indisposta para conversas muito longas. Enquanto que posso ficar mais livre quanto à hora que escolho escrever, e fazer pausas para descansar da dor. Talvez escrever seja um estratagema para burlar a morte que nos espreita. Escrever tem algo a ver com estar na vida, ainda que a falta de garantia soe um pouco a um salto mortal. Quem sabe um salto mortal circense com rede de proteção? Quem sabe a rede de proteção não é esse outro que inventamos como interlocutor? E por que, no ato da escrita, a um outro encarnado com rosto e corpo, preferimos o outro inventado? Não será este outro inventado mais alentador, por sabermos que na confrontação com a morte estamos absolutamente sós?

Por coincidência, depois da conversa com minha colega sobre Valter Hugo Mãe, pude compartilhar no Facebook uma entrevista desse escritor tão interessante, falando justamente do seu livro "A desumanização". Na entrevista (WWW.FRONTEIRAS.COM)  ele cita um escritor tcheco que vive em Portugal chamado Jorge Listopad que disse : "quem não morreu está a morrer". Pude ler esta frase como estamos todos fadados à morte. Se alguém não morreu ainda, está a morrer pela inexorável passagem do tempo. Mas, de certa forma, o ato de escrever não suspende a passagem do tempo? Escrever é eternizante?
                                                                                                                       Marcia Gomes.