domingo, 24 de abril de 2016

03/04/2016                                                         AMOR À "COLOMBAIANA"

Olá, leitores da crônica domingueira,
Quem de vocês quiser saber melhor quem é Rafael e como ele entrou e participa da minha vida, leia a crônica intitulada MATERNAGEM datada em 04/05/14 e que pode ser encontrada no meu blog cujo endereço é blablablazista. blogspot.com.br  Aqui estou eu novamente escrevendo textos autobiográficos.

DEDICATÓRIA: Esse texto, é dedicado à querida Denise Coutinho e a Naomar Almeida Filho, porque o amor a um filho goza da propriedade transitiva.

"O Porto segura esse mar de amargura e devolve a doçura". Escrevi eu em 1993 no que viria a ser uma espécie de livro contendo diálogos que retratam uma dolorosa experiência amorosa que vivi, razão pela qual precisei retornar de São Paulo para viver definitivamente em Salvador, em 1991. Dois anos depois do meu retorno, escrevi parte da espécie de livro em Porto Seguro, para onde viajei em férias. Escrita, para tentar finalizar meu luto daquela relação tão conturbada, devastadora mesmo, que teve o seu traumático THE END com uma suposta viagem do outro a Porto Seguro, ou, melhor dizendo, para ser mais precisa, ao Arraial D'ajuda. Nossa, como podem as palavras ser tão irônicas? Irônicos somos nós no seu manejo. N'ajuda, estacionou para nunca mais o personagem bíblico invejosamente assassinado pelo irmão.Pelo menos nesta história aqui, ninguém foi assassinado. Só gosto de brincar com nomes.  

Quanto mais escuto meus pacientes, quanto mais sou escutada, mais me encanto com a Psicanálise desenredando sem de todo poder desenredar, a armadilha tecida, espécie de cama de gato dos nossos lapsos e esquecimentos bandeirosos. Acabei de ir e voltar de Porto Seguro passando também pelo Arraial D'ajuda numa viagem maravilhosa da qual voltei chorando muito, e só me dei conta que esses lugares têm relação com aquela terrível experiência amorosa e seu final, agora, neste momento em que sentei ao computador para escrever. Parece que finalmente estou curada. Sim ou não? Por que então,chorei aos prantos na despedida no aeroporto lá, e por mais algumas horas seguidas? Sim, estou curada. Já não era sem tempo, não é? É que o tempo é sem tempo e do desamor só indo à procura do amor. Procura. Pró cura. Rafa, Marina, Memo (Guilhermo) e Jéssica me devolvendo a doçura. Rafa, Marina, Memo (Guilhermo) e Jéssica, meu porto, segurando toda a amargura. Estou segura tanto quanto o porto, que todo aquele choro foi mesmo de saudade da experiência tão amorosa que vivi naqueles encantadores dias da Semana Santa, junto a Rafael, meu filho adotivo temporão e colombiano, melhor seria dizer"colombaiano", Marina, sua mãe, Memo (Guilhermo), seu pai, ambos colombianos, e Jéssica, a linda parceira amorosa de Rafa, baiana de Itororó vivendo no Arraial. 

Gosto de pensar que bem viver é deixar correr o barco da surpresa. Quem quer a tudo controlar, acaba controlado por tudo. Não é que em pleno palco da descoberta, descobri que mal conheço meu filho? Conheço. Mas seu afeto por mim e sua generosidade comigo e seus entes queridos, vão muito além do que eu pudesse ter imaginado. Foi uma bonita novidade saber que nos anos em que convivemos juntos na minha casa e nos períodos que ele vem para estadas mais curtas, não comenta certas coisas por discrição. Mas é muito atento e observador e muito sabe sobre mim. Na sua companhia sempre me senti muito à vontade, por sermos íntimos sem invasões de intimidade. Mas confesso que não imaginava que ele conhece muitas pequenas coisas sobre sua mãe brasileira.E deixa para usar esse bem saber na hora certa, para bem recebê-la como um cavalheiro respeitoso de uma senhora mais velha. Rafa e seus pais me deram essa viagem de presente. E lá estavam todos no aeroporto me esperando com sorrisos estampados nos rostos. Ser recebida no aeroporto por gente querida, particularmente quando se vem de momentos pessoais um tanto doídos, é para mim de uma beleza muito comovente. Não tem preço.

Já os conhecia a todos. Marina e Memo já estiveram em Salvador há anos atrás e Jéssica esteve mais recentemente. Além disso, Marina e eu nos comunicamos, mesmo estando distantes. O abraço caloroso de Marina desfaz qualquer esboço de cerimônia. Na verdade eu não sabia a quem primeiro abraçar. E foi uma profusão de abraços. Como era de se esperar, algumas lágrimas marejaram meu rosto. Rafa diligentemente logo pegou minha bagagem e nos dirigimos para seu carro que eu estava conhecendo naquele momento. Então veio a primeira tocante e um tanto desconcertante surpresa. Eles haviam decidido juntos  (famílias unidas e harmoniosas tomam decisões todos juntos) que durante a minha estada na casa de Rafa em Porto Seguro, eu ocuparia o lugar da frente do carro como um cuidado com a minha coluna. Não adiantou eu protestar. Afinal Marina tem minha idade e Memo é um pouco mais velho. Além disso, tinha Jéssica, com direito a assento junto do seu amado. Não adiantou eu protestar. Além disso, toda vez que eu entrava ou saía do carro, um deles vinha me auxiliar na acomodação do corpo. Muito comovida, comecei a perceber que o fato de eu ser a mãe brasileira de Rafa, me colocava numa posição de especialidade para aquelas pessoas simples, boas, sensíveis e gratas.

Marina, ao invés de ser competitiva e ter ciúmes da minha relação com Rafa, é generosamente grata. Me disse que grande parte da personalidade brasileira de  seu filho e de suas conquistas aqui, eles devem a mim. Imaginem vocês, que imensamente desprendida inversão de papéis. Sou eu quem agradece à vida ter colocado para morar comigo esse filho tão afetuoso, inteligente, sociável, de excelente caráter, aplicado a seus estudos e  profissional brilhante. Eu nada fiz por ele, a não ser recebê-lo com carinho. O  resto ele trouxe, por ser como ele é, tendo uma família tão harmoniosa. Fiquei muitíssimo bem impressionada
com o orgulho que esses pais expressam, valorizando muito a competência e as conquistas profissionais de seu filho. Todos nós sabemos o quanto isso é importante e o quanto dói, quando falta. Aliás, Marina não tem mesmo porque ter ciúmes de mim. Ela e Rafa têm uma relação estabelecida por laços amorosos muito estáveis e muito valiosos. Então conseguem bem administrar a entrada de uma mãe brasileira no meio de campo. Ela disse muitas vezes da imensa alegria que sente em "compartir" esse filho comigo. Memo, mais reservado, menos falante e extremamente observador, com impressionante orientação espacial, tem o mesmo discurso. Ele é uma pessoa adorável.

Quando chegamos do aeroporto na linda casinha de Rafa, outra surpresa pra lá de desconcertante e comovente. A casa de meu filho é bem a cara dele. Por ficar numa espécie de village e ser térrea, parece ser ao mesmo tempo um apartamento e uma casa. Local extremamente silencioso, rodeado de jardim bem cuidado, é um quarto e sala com suíte, cozinha e mais outro banheiro social. Mobiliado com bom gosto, num estilo mais artesanal. Por sermos cinco pessoas em um quarto e sala, eu fui, muito tranquila para Porto Seguro disposta a dormir num colchão na sala, de modo a deixá-los acomodados para dormir do modo que pudesse ser mais confortável, principalmente para Marina e Memo. Aí veio a surpresa muito desconcertante, uma dádiva de amor talvez jamais recebida onde quer que eu tenha me hospedado. Eles haviam decidido juntos (famílias unidas e harmoniosas tomam decisões todos juntos) que eu me instalaria no quarto de casal com banheiro de Rafa e Jéssica, Marina e Memo no sofá da sala e Rafa e Jéssica iriam dormir no Arraial. Fiquei pasma com a inesgotável reserva de amor daquelas pessoas. Por isso meu filho é tão especial. Protestei veementemente mas não teve jeito. Estava decidido, não sei o por que,que estava reservada para mim uma estada em Porto Seguro como se eu fosse uma rainha.

E assim foi. Rafa havia contado a eles sobre todas as manifestações de carinho que eu havia feito a ele, desde quando nos conhecemos, até agora. Disse o que eu gosto de comer no café da manhã, das minhas restrições alimentares e o que eu gosto de vestir quando estou em casa. Tipo de roupa que eles me presentearam, além de outros presentes. Recebi também um presente de Nelly. Adorável amiga da família que se hospedou em minha casa quando minha mãe estava para se submeter a uma mastectomia. Na ocasião Nelly, junto com Rafa, ao invés de passearem em Salvador, resolveram cuidar de mim. E um dia em que eu estava abatida e triste com a doença de minha mãe e a arrasadora dinâmica da minha família, Nelly me acompanhou ao consultório e ficou na sala de espera velando por mim enquanto eu atendia os pacientes. Estou chorando. Os "colombaianos" têm qualquer coisa que ninguém mais tem que aciona o nosso lacrimódromo e nos faz até fantasiar que pode ser que algo como Deus até exista. Fazem sobretudo eu acreditar que eu sou uma pessoa boa que tem muito valor.

A propósito de Deus, Marina e eu tivemos um divertido mal entendido linguístico. Havia alguns momentos em que Rafa não estava presente para traduzir. Eu não falo Espanhol e ela não fala Português. Mas nos entendíamos. Parece que quando há amor e paciência para falar devagar, todos se entendem seja qual for a língua, mesmo cometendo alguns escorregos  no "Portunhol". Sabendo eu que a mãe de Rafa é muito religiosa e vai à missa todo dia e que Rafa não está ligando pra isso, no sábado de Aleluia me ofereci a Marina para acompanhá-la à missa no domingo de Páscoa. Eu entendi que ela aceitou, e de fato foi mais ou menos assim. Só que ela entendeu que ao invés de eu estar me oferecendo para obsequiá-la, eu estava pedindo para ir à missa e que isso era muito importante pra mim. Na manhã do domingo eu acordei depois das oito e combinamos de tomar um táxi que nos levasse a uma igreja nas imediações onde houvesse missa. O taxista foi logo informando que as missas são mais cedo e que àquela hora não havia mais. Mas se ofereceu para nos levar á Igreja de São Sebastião para fazermos orações. Fomos. Quando voltávamos para casa, ela disse :"Marcia, que pena que nós planejamos mas você não conseguiu assistir à sua missa. Eu assisto a minha todos os dias na televisão às 6:30 h da manhã. Por isso não me importei de não encontrarmos na igreja". Eu sorri comigo mesma e não quis desapontá-la quanto a seu entendimento do Portunhol. Sorrindo, eu contei o episódio a Rafa que também sorrindo virou-se para ela e disse: "Mas minha mãe, você queria levar Marcia, logo à missa?" Foi aí que ela não entendeu nada.

Rafa e eu nos entendemos muito bem quanto às nossas afinidades gastronômicas. Consideramos um ao outro com ótimo faro para descobrir comida de boa qualidade, seja num restaurante francês ou num boteco. Não é pra menos. Marina cozinha maravilhosamente bem e eu pude experimentar. Ainda hoje sinto saudades das maravilhosas arepas com queijo no café da manhã. Os almoços em casa foram ótimos e eles me convidaram a ir a restaurantes maravilhosos. Pude comer um genuíno Pastel de Belém, feito mesmo à moda portuguesa. Toda a família sentia prazer em me proporcionar alegrias. Meu coração se enchia de júbilo cada vez que Rafa encontrava um conhecido na rua e me apresentava como sua mãe brasileira.

Porto Seguro é uma cidade linda com praias maravilhosas e felizmente, mudou muito pouco de 1993 para cá. Passeamos muito e tomamos gostosos banhos de mar. Uma outra coisa divertida, aqui no caso mais para mim e Jéssica, era quando eu tirava a saída e ficava de maiô exibindo com vergonha a minha pelancaria. Ríamos muito. É que com mais de 60 anos perdi 15 quilos em 3 meses sem fazer atividade física. Haja pelanca! Em Trancoso, aquele monumento de beleza, eu abaixei sem querer para escolher um presente e tornei a torcer a coluna traumatizando o nervo. Aí então eles se desdobraram em cuidados comigo. Quando estávamos em casa me colocavam na cadeira de estudos de Rafa e não me deixavam levantar para fazer nada. Quando saíamos, Marina me apoiava num braço e Memo me apoiava no outro para eu não perder o passeio.

Memo e Marina são pessoas muito inteligentes. Têm curiosidade pelas coisas, muito comportamento exploratório, sentem prazer em aprender. Respeitam e se orgulham do status intelectual do filho mas não se furtam a fazer uma interlocução com ele. Eles trocam. Nossa, isso é tão bom! Uma noite quando Rafa já havia saído com Jéssica, Memo, Marina e eu, quase que por acaso começamos a assistir na televisão o filme "A Menina que roubava livros". Fiquei impressionada com a facilidade com que com poucas pistas eles eram capazes de antecipar o que iria acontecer no enredo. A partir de uma certa altura estavam decodificando as legendas em Português.

Jéssica é uma moça muito especial. É linda, sem fazer ostentação por isso. Parece uma modelo. Admiro muito nela o respeito que tem por seu parceiro. Eles não disputam, sem que por isso ela seja submissa. Ela é na dela. Não é de falar muito, sabe escutar.Tem uma sábia simplicidade e é muito atenciosa comigo.Cada vez que eu entrava no mar ela me acompanhava para ajudar na caminhada na areia. Estava sempre atenta ao que eu podia estar necessitando.Foi muito respeitosa da relação de Rafa com seus pais. É uma mulher batalhadora que trabalha de dia e estuda na universidade à noite. Estou muito contente com essa escolha amorosa de meu filho. Fico muito à vontade com ela e tenho prazer em recebê-la em minha casa.

A Semana Santa acabou. Saí de Porto Seguro muito feliz por ver meu filho tão bem encontrado, profissionalmente também (ver dedicatória). Ele sabe se fazer amar onde chega. E dá sorte, o danado!! De encontrar pessoas bonitas em seu caminho. (ver dedicatória) Não é só sorte. É que sabe escolher. Saí de Porto Seguro abastecida de amor, me sentindo uma pessoa boa que faz bem ao outro. Nossa, como estava precisando disso agora. Acho que preciso aprender com meu filho a buscar o amor daqueles que têm amor pra dar. Por mais que doa não ter o leite, não se tira leite de pedra. E há pessoas pétreas........

Enfim, chegamos ao aeroporto de Porto Seguro. Hora de voltar pra casa, hora de não poder conter o lacrimódromo. Rafa não podia esperar até a hora de meu embarque. Jéssica estava no trabalho. Marina (63 anos), uma mãe colombiana que não fala Português, Memo (68 anos), um pai colombiano que não fala Português, ambos numa cidade estranha, num país estranho, já haviam decidido em casa que permaneceriam comigo no aeroporto até o avião sair. Depois pegariam um táxi para voltar para casa. Ela me compra a última coca-cola fora da dieta e coloca um pedaço de torta de frango em minha bolsa. Penso na minha mãezinha. Muita saudade da minha mãe. Como me dói a saudade da minha mãe!! Memo toma uma cerveja e faz elogios à simplicidade de Jéssica. Eu chorando como se a minha mãezinha fosse um frágil filhote de passarinho precocemente expulso do ninho. Eu chorando da mais pura gratidão. Seguro a mão de Marina, seguro a mão de Memo, nos beijamos no rosto. Entre muitas lágrimas, só consigo dizer "Muchas gracias!" e bem baixinho: "Pelo amor à Colombaiana"!
                                                                             Marcia Myriam Gomes.

 

sábado, 2 de abril de 2016

20/03/16                                             O  POVO  NÃO  É  BOBO

Os meus escritos têm se ausentado no sótão de uma alma melancólica que se aflige com a indagação conflitiva quanto a se cabe ou não me expor em relatos que muitas vezes ganham uma talvez indiscreta tonalidade autobiográfica. Cabe ou não cabe me expor contando casos que passeiam por fatos que aconteceram em minha vida, mesmo que revestidos de acréscimos ficcionais que conseguem camuflar a questão da veracidade, burlando as possíveis investidas de curiosos a cutucar o que se passa ou não se passa comigo?

 Também me pergunto: "Que importância tem isso, diante do recente veloz carrocel de acontecimentos tão relevantes socialmente como a grave crise política que atravessa nosso país? Que importância tenho eu, a minha pessoa, se me revelo para você, o outro leitor?" Não sou nenhuma personalidade. Sou uma, entre muitos outros e o que me acontece pouco repercute no que acontece no mundo. De mais a mais concordo com aqueles que defendem que qualquer escrito acaba por ser autobiográfico. De mais a mais não sou positivista para me interessar por saber se relatos são ou não fidedignos. Do ponto de vista de quem escreve, tudo é ficção. Do ponto de vista de quem lê, tudo não passa mesmo de somente leitura.

 Então por que ausentar os escritos no sótão? Somente porque trabalho exercendo uma função onde aquele que recebe o meu ofício o mínimo deve saber de mim, ainda que tudo que saiba de mim seja sempre ficção. Outro dia, uma colega psicanalista perguntou que pseudônimo uso. Por que não pensei nisto antes? Agora é tarde. Todo mundo já sabe que o "Blá,blá,blá...." é de minha autoria.Mas medito filosoficamente sobre isso.

Os meus escritos têm também e principalmente se ausentado nos confins de um corpo molestado por dores lancinantes de vísceras espasmódicas e silentes. É um gemido recusado de vísceras espasmódicas. Nos últimos vários meses contei tanto a meus leitores sobre este corpo adoecido, até não poder mais escrever e então parei de contar. Deliberadamente passei a evitar falar deste assunto até com meus amigos. Não quero entediá-los e quero menos ainda que alguns desses amigos me perguntem sobre esta questão que até hoje, quando escrevo este texto, vinha partilhando somente com os mais íntimos.Mesmo alguns desses mais íntimos, passam a nos evitar se dizemos que estamos com a saúde abalada. Às vezes até sorriem de ironia, talvez esquecidos que já são ou serão sessentões e que nenhum de nós, por melhor que se cuide, está livre de padecer sofrimento físico e/ou psíquico, quando o implacável passar do tempo começa por fazer os músculos irem se despedindo dos ossos, fazendo surgir  a "pelancaria". Para quem perde muito peso então, nem se fala....

Além do mais, reza a etiqueta, essa coisa cujas regras  muitas vezes têm origem elitizada, algumas das quais assim mesmo prezo,  quando prescrevem convivência mais respeitosa e civilizada, que lugar para se falar de doença é a sala do analista. Felizmente há ainda amigos íntimos e mesmo nem tanto, que mesmo sendo muito educados e gentis no trato social, exercem com generosidade o papel de nos perguntar pessoalmente, por e-mail ou por telefone, como estamos de saúde e até a oferecer ajuda. Há um monte deles. Mas há também aqueles que desaparecem sem dar explicação, de alguma atividade que fazíamos juntos. Vai ver que essa coisa de falar de doença ou mesmo partilhar assuntos pessoais com alguém que se supõe amigo, na opinião de alguns não passa do inoportuno cacoete de pobre. Às vezes parece, nesse capitalismo selvagem e globalizado, ser cada vez menos de bom tom se mencionar dor e sofrimento. Quem quiser que procure os recintos fechados de seus analistas. Se é que tem coragem de contar que sofre a um analista. Quem sabe não acha uma despesa supérflua?

 Ainda esta semana estive duas vezes na emergência hospitalar, sozinha. Faço questão de ir sozinha. Não quero testemunhas. Espero até que essa dor possa falar. Por certo o ouvinte será muito bem escolhido. Pois parece estarmos num tempo em que mal se tolera falar de mazelas do corpo e da alma. Nesses tempos tenho pensado muito respeitosamente numa amiga que sofre protestos do corpo e, muito contida, poupadora do outro, sobre os quais pouco fala. Tenho tentado aprender com ela. Sobre tal impedimento da escrita, não posso exercer controle.  Se acumulam os impedimentos. Só não os permito quanto ao meu principal trabalho. De resto, são textos por ler e escrever, coisas por arrumar, providências a tomar, a casa por administrar, supermercado por fazer, remédios a comprar, e-mails a responder. Procrastinar, procrastinar, procrastinar. Como se como Hamlet, eu fosse um cúmplice edipiano de um tio assassino. E o constante receio de não poder usufruir da minha próxima viagem na Semana Santa, que me foi generosamente presenteada por meu filho adotivo.

Mesmo assim, com todo esse queixume e as vísceras queimando como se estivéramos no Inferno de Dante, mesmo sem que me dessem trégua, abri exceção para as dores para comparecer há dias atrás à manifestação de homenagem a Marcus Vinícius, meu colega psicólogo militante em defesa de minorias oprimidas, cruel e covardemente assassinado provavelmente numa emboscada. A homenagem foi linda. Sem a preocupação moralista de dissimular a pessoa de difícil trato que era esse meu companheiro de Facebook no Movimento Luta Antimanicomial, vários setores progressistas da sociedade, inclusive os pacientes por ele defendidos e que frequentam serviços de saúde mental sem os grilhões aprisionadores dos manicômios, se manifestaram criativamente com performances dançantes, peça de teatro de seu ex-alunos estagiários na Ufba, vídeos, murais com falas e poemas de Marcus, etc. João Carlos, o esclarecido, sensível e brilhante filósofo reitor da ufba, fazendo muito bem em quebrar o protocolo, leu um poema em homenagem a um poema de Neruda que calou fundo em todos aqueles que lá estavam por reconhecerem o valor de Marcus Vinícius e expressarem indignação por seu selvagem assassinato.O auditório da reitoria estava lotado. Muitas pessoas comovidas que como eu choravam.

Mal sabia eu naquele dia que outro movimento social de muito maior envergadura mas de certa forma de espírito semelhante, como que por milagre, pelo menos por algumas entusiasmantes horas, me faria em nome da causa, recalcar por completo as minhas insuportáveis dores. Estou falando da manifestação aqui em Salvador ocorrida no inesquecível dia 18 passado, em defesa da preservação dos direitos democráticos conquistados nas urnas pelo povo brasileiro e, portanto, contra o golpe que vem sendo ensaiado por setores da classe dominante, inconformada e raivosa com as conquistas das camadas populares nos últimos governos.

A título de esclarecimento vou logo adiantando que não sou filiada ao PT. Tenho um passado de militância de esquerda contra a ditadura estabelecida com o golpe de 64, fui líder estudantil secundarista, quando me desencantei de filiações a organizações e partidos, sem contudo  nunca deixar de ser de esquerda, fiel à minha humilde origem de classe e homenageando a memória de meu pai, simpatizante dos comunistas. Na universidade participei do movimento estudantil sem ocupar cargos, auxiliando na luta dos companheiros que estavam mais à frente. Mais tarde, vivendo em São Paulo, tenho orgulho de dizer que acompanhei de perto a impressionante trajetória política do brilhante ( inteligência muito pouco tem a ver com carreira acadêmica) Lula, de líder sindical até presidente da república. Participei da histórica manifestação "Pelas Diretas Já".

Acompanho com tensa atenção o desenrolar dos dramáticos acontecimentos na conjuntura política nacional, através de artigos de cientistas políticos, juristas, jornalistas, etc, esclarecidos e progressistas que recebo de amigos também progressistas, alguns simpatizantes de Dilma, Lula e o PT. Repasso muitos desses artigos a colegas psicanalistas e amigos abertos a receber informação honesta, competente e bem fundamentada. A não ser com pessoas do povo como alguns motoristas de táxi, empregadas domésticas, porteiros de edifícios, etc, que infelizmente só têm acesso à informação da mídia vendida aos poderosos, não me disponho a discutir política com pessoas a favor do golpe e contra a preservação das liberdades democráticas duramente conquistadas nas urnas pelo povo brasileiro.

 Sentindo-me um tanto macaca velha em assuntos dessa ordem, me reservo o direito um tanto pessimista de acreditar que pessoas que se posicionam à direita, assim o fazem, não por ingênua falta de esclarecimento político que uma boa discussão resolveria, mas por estarem claramente na defesa dos interesses da classe dominante à qual pertencem ou almejam pertencer. Prefiro me calar, não gastar meu verbo com essas pessoas, algumas das quais respeito como amigas, colegas profissionalmente competentes, a cuja opinião têm direito, sendo a mesma de ordem ideológica. Considero que posso ter boas relações com algumas dessas pessoas em vários aspectos da vida implicados no laço social, menos a política. Diante delas prefiro silenciar a esse respeito e repudio veementemente aquelas que se comprazem numa alegria sádica com o que vem acontecendo no nosso país, torcendo pelo "Quanto pior, melhor".

Não quero aqui, como faz a Rede Globo, numa vergonhosa campanha fofoqueira de leva informação de grampo privilegiadamente recebida, de disse que disse,  não escapando aos comuns dos espectadores a observação de estar com o propósito sem ética de enredar a opinião pública numa trama perversa de interesses tendenciosamente a favor do golpe, cair na equivocada posição de dizer "esse não tem razão", "não, não é esse, é aquele que tem", "esse é corrupto porque teve dinheiro para comprar isso e aquilo" e asneiras como tais.  Não quero sequer dizer "Dilma ou Lula têm ou não razão". Como já disse, não sou filiada ao PT e, com certeza, a seus filiados não falta senso crítico para admitir que os seus governantes, além de acertos, cometeram também equívocos. O que mais importa agora a todos nós,  brasileiros, é que um valor mais alto se levanta. A democracia. Por isso, como alguém que teve uma longa trajetória de luta contra a ditadura e fez questão, de, mesmo seriamente doente, comparecer com toda a garra à manifestação do dia 18, quero contar a vocês, meus leitores, que não sei agora que posições políticas assumem, o que eu vi lá.

Eu vi, em uma das poucas vezes na minha vida, uma numerosa (no mínimo 100.000 pessoas), expressiva manifestação política alegre. Alegria. Essa é a cara de uma manifestação política, mesmo em tempos tensos, que ocorre sob a égide de um Estado Democrático. Era majoritariamente o povão que estava lá. Tinha gente com todos os matizes de cor de pele. Felizmente, muita gente negra. Alguns, desdentados. Senti-me em casa. Sou uma psicanalista de classe média-média, quase pobre. Como muitos de vocês sabem, deixei de ser uma terapeuta abastada para me iniciar na psicanálise com todas as perdas que isso às vezes implica. Sou recém-chegada no mercado, arcando com despesas a pagar nem tão barato assim, pela minha formação e minha análise. Também, faço questão de que tenham também acesso ao meu consultório pessoas economicamente menos favorecidas. Então, sem tristeza, arco com a perda de alguns dentes que não pude ainda repor. Melhor sem dente do que elitista, sem ética e competência.

Embora majoritário, não estava lá só o povão. Muita gente da classe média progressista. Encontrei colegas psicanalistas, psicólogas minhas ex-alunas da Ufba, profissionais liberais das mais variadas áreas, professores, funcionários públicos, muitos sindicalistas, gente de todo tipo cheia de esperança e entusiasmo, gritando palavras de ordem como "Não vai ter golpe, vai ter luta!" "Lula, guerreiro do povo brasileiro!" . Havia muita batucada, música, bandeiras, adesivos, camisas vermelhas, cartazes com dizeres às vezes divertidos, todos numa comovente convivência pacífica, nem o mínimo sinal de violência. Todos eram gentis uns com os outros e embora fosse uma gigantesca multidão, ninguém atropelava ninguém. Todos muito cuidadosos ao dar passagem, contrastando escandalosamente com o que vi no carnaval onde os cordeiros dos blocos, recebendo R$ 30,00 por dia empurravam violentamente o povão para separá-lo dos foliões de elite.

 Pouco a pouco fui sendo tomada por uma intensa comoção e vieram as lágrimas. Chorei copiosamente vendo Waldir Pires velhinho lá em cima de um carro chefe e a Praça Castro Alves que é e sempre será do povo, apinhada de gente. Chorei sobretudo lamentando a falta de sensibilidade dos poderosos, da classe dominante que em nome da propriedade privada e defesa do capital, não se acanha de querer retroceder a um tempo onde  não era possível haver manifestações políticas alegres. Saíamos para as passeatas sem sabermos se voltávamos pra casa. Quantos de nós não foram violentamente empurrados para dentro dos camburões da polícia fascista e não apareceram nunca mais? Lembrei da minha primeira e muito traumática experiência com a morte. O assassinato pela ditadura de minha companheira política contando apenas 16 anos. Como um filme, uma sequencia de imagens me foi tomando a cabeça.

 Pensei, muito preocupada, que não é por falta de memória que os poderosos acobertados por falsos legalistas querem decretar o impedimento de uma presidente legitimamente eleita pelo povo, como álibi para voltarmos aos negros tempos de 64. Pensei que o que os tais falsos legalistas simplesmente insistem em denominar "Operação Lava Jato", mesmo que crimes de corrupção tenham ocorrido e precisem ser averiguados e punidos, nada mais é do que a luta de classes da qual falava o sábio velho Marx. Muitos outros pensamentos me foram tomando a cabeça. Avisei ao amigo carinhoso que cuidava de mim:
"Sinto muita dor e contrações no abdomem e  preciso voltar para casa".Pedi a ele para me dar o seu braço. Consegui ainda caminhar da Praça Castro Alves até o Campo Grande. Eu saía da manifestação, mas atrás de nós, como pano de fundo, a entusiasmada esperançosa e alegre palavra de ordem : "O POVO NÃO É BOBO. ABAIXO A REDE GLOBO!!!!!!"
                                                                              Marcia Myriam Gomes.