sábado, 2 de abril de 2016

20/03/16                                             O  POVO  NÃO  É  BOBO

Os meus escritos têm se ausentado no sótão de uma alma melancólica que se aflige com a indagação conflitiva quanto a se cabe ou não me expor em relatos que muitas vezes ganham uma talvez indiscreta tonalidade autobiográfica. Cabe ou não cabe me expor contando casos que passeiam por fatos que aconteceram em minha vida, mesmo que revestidos de acréscimos ficcionais que conseguem camuflar a questão da veracidade, burlando as possíveis investidas de curiosos a cutucar o que se passa ou não se passa comigo?

 Também me pergunto: "Que importância tem isso, diante do recente veloz carrocel de acontecimentos tão relevantes socialmente como a grave crise política que atravessa nosso país? Que importância tenho eu, a minha pessoa, se me revelo para você, o outro leitor?" Não sou nenhuma personalidade. Sou uma, entre muitos outros e o que me acontece pouco repercute no que acontece no mundo. De mais a mais concordo com aqueles que defendem que qualquer escrito acaba por ser autobiográfico. De mais a mais não sou positivista para me interessar por saber se relatos são ou não fidedignos. Do ponto de vista de quem escreve, tudo é ficção. Do ponto de vista de quem lê, tudo não passa mesmo de somente leitura.

 Então por que ausentar os escritos no sótão? Somente porque trabalho exercendo uma função onde aquele que recebe o meu ofício o mínimo deve saber de mim, ainda que tudo que saiba de mim seja sempre ficção. Outro dia, uma colega psicanalista perguntou que pseudônimo uso. Por que não pensei nisto antes? Agora é tarde. Todo mundo já sabe que o "Blá,blá,blá...." é de minha autoria.Mas medito filosoficamente sobre isso.

Os meus escritos têm também e principalmente se ausentado nos confins de um corpo molestado por dores lancinantes de vísceras espasmódicas e silentes. É um gemido recusado de vísceras espasmódicas. Nos últimos vários meses contei tanto a meus leitores sobre este corpo adoecido, até não poder mais escrever e então parei de contar. Deliberadamente passei a evitar falar deste assunto até com meus amigos. Não quero entediá-los e quero menos ainda que alguns desses amigos me perguntem sobre esta questão que até hoje, quando escrevo este texto, vinha partilhando somente com os mais íntimos.Mesmo alguns desses mais íntimos, passam a nos evitar se dizemos que estamos com a saúde abalada. Às vezes até sorriem de ironia, talvez esquecidos que já são ou serão sessentões e que nenhum de nós, por melhor que se cuide, está livre de padecer sofrimento físico e/ou psíquico, quando o implacável passar do tempo começa por fazer os músculos irem se despedindo dos ossos, fazendo surgir  a "pelancaria". Para quem perde muito peso então, nem se fala....

Além do mais, reza a etiqueta, essa coisa cujas regras  muitas vezes têm origem elitizada, algumas das quais assim mesmo prezo,  quando prescrevem convivência mais respeitosa e civilizada, que lugar para se falar de doença é a sala do analista. Felizmente há ainda amigos íntimos e mesmo nem tanto, que mesmo sendo muito educados e gentis no trato social, exercem com generosidade o papel de nos perguntar pessoalmente, por e-mail ou por telefone, como estamos de saúde e até a oferecer ajuda. Há um monte deles. Mas há também aqueles que desaparecem sem dar explicação, de alguma atividade que fazíamos juntos. Vai ver que essa coisa de falar de doença ou mesmo partilhar assuntos pessoais com alguém que se supõe amigo, na opinião de alguns não passa do inoportuno cacoete de pobre. Às vezes parece, nesse capitalismo selvagem e globalizado, ser cada vez menos de bom tom se mencionar dor e sofrimento. Quem quiser que procure os recintos fechados de seus analistas. Se é que tem coragem de contar que sofre a um analista. Quem sabe não acha uma despesa supérflua?

 Ainda esta semana estive duas vezes na emergência hospitalar, sozinha. Faço questão de ir sozinha. Não quero testemunhas. Espero até que essa dor possa falar. Por certo o ouvinte será muito bem escolhido. Pois parece estarmos num tempo em que mal se tolera falar de mazelas do corpo e da alma. Nesses tempos tenho pensado muito respeitosamente numa amiga que sofre protestos do corpo e, muito contida, poupadora do outro, sobre os quais pouco fala. Tenho tentado aprender com ela. Sobre tal impedimento da escrita, não posso exercer controle.  Se acumulam os impedimentos. Só não os permito quanto ao meu principal trabalho. De resto, são textos por ler e escrever, coisas por arrumar, providências a tomar, a casa por administrar, supermercado por fazer, remédios a comprar, e-mails a responder. Procrastinar, procrastinar, procrastinar. Como se como Hamlet, eu fosse um cúmplice edipiano de um tio assassino. E o constante receio de não poder usufruir da minha próxima viagem na Semana Santa, que me foi generosamente presenteada por meu filho adotivo.

Mesmo assim, com todo esse queixume e as vísceras queimando como se estivéramos no Inferno de Dante, mesmo sem que me dessem trégua, abri exceção para as dores para comparecer há dias atrás à manifestação de homenagem a Marcus Vinícius, meu colega psicólogo militante em defesa de minorias oprimidas, cruel e covardemente assassinado provavelmente numa emboscada. A homenagem foi linda. Sem a preocupação moralista de dissimular a pessoa de difícil trato que era esse meu companheiro de Facebook no Movimento Luta Antimanicomial, vários setores progressistas da sociedade, inclusive os pacientes por ele defendidos e que frequentam serviços de saúde mental sem os grilhões aprisionadores dos manicômios, se manifestaram criativamente com performances dançantes, peça de teatro de seu ex-alunos estagiários na Ufba, vídeos, murais com falas e poemas de Marcus, etc. João Carlos, o esclarecido, sensível e brilhante filósofo reitor da ufba, fazendo muito bem em quebrar o protocolo, leu um poema em homenagem a um poema de Neruda que calou fundo em todos aqueles que lá estavam por reconhecerem o valor de Marcus Vinícius e expressarem indignação por seu selvagem assassinato.O auditório da reitoria estava lotado. Muitas pessoas comovidas que como eu choravam.

Mal sabia eu naquele dia que outro movimento social de muito maior envergadura mas de certa forma de espírito semelhante, como que por milagre, pelo menos por algumas entusiasmantes horas, me faria em nome da causa, recalcar por completo as minhas insuportáveis dores. Estou falando da manifestação aqui em Salvador ocorrida no inesquecível dia 18 passado, em defesa da preservação dos direitos democráticos conquistados nas urnas pelo povo brasileiro e, portanto, contra o golpe que vem sendo ensaiado por setores da classe dominante, inconformada e raivosa com as conquistas das camadas populares nos últimos governos.

A título de esclarecimento vou logo adiantando que não sou filiada ao PT. Tenho um passado de militância de esquerda contra a ditadura estabelecida com o golpe de 64, fui líder estudantil secundarista, quando me desencantei de filiações a organizações e partidos, sem contudo  nunca deixar de ser de esquerda, fiel à minha humilde origem de classe e homenageando a memória de meu pai, simpatizante dos comunistas. Na universidade participei do movimento estudantil sem ocupar cargos, auxiliando na luta dos companheiros que estavam mais à frente. Mais tarde, vivendo em São Paulo, tenho orgulho de dizer que acompanhei de perto a impressionante trajetória política do brilhante ( inteligência muito pouco tem a ver com carreira acadêmica) Lula, de líder sindical até presidente da república. Participei da histórica manifestação "Pelas Diretas Já".

Acompanho com tensa atenção o desenrolar dos dramáticos acontecimentos na conjuntura política nacional, através de artigos de cientistas políticos, juristas, jornalistas, etc, esclarecidos e progressistas que recebo de amigos também progressistas, alguns simpatizantes de Dilma, Lula e o PT. Repasso muitos desses artigos a colegas psicanalistas e amigos abertos a receber informação honesta, competente e bem fundamentada. A não ser com pessoas do povo como alguns motoristas de táxi, empregadas domésticas, porteiros de edifícios, etc, que infelizmente só têm acesso à informação da mídia vendida aos poderosos, não me disponho a discutir política com pessoas a favor do golpe e contra a preservação das liberdades democráticas duramente conquistadas nas urnas pelo povo brasileiro.

 Sentindo-me um tanto macaca velha em assuntos dessa ordem, me reservo o direito um tanto pessimista de acreditar que pessoas que se posicionam à direita, assim o fazem, não por ingênua falta de esclarecimento político que uma boa discussão resolveria, mas por estarem claramente na defesa dos interesses da classe dominante à qual pertencem ou almejam pertencer. Prefiro me calar, não gastar meu verbo com essas pessoas, algumas das quais respeito como amigas, colegas profissionalmente competentes, a cuja opinião têm direito, sendo a mesma de ordem ideológica. Considero que posso ter boas relações com algumas dessas pessoas em vários aspectos da vida implicados no laço social, menos a política. Diante delas prefiro silenciar a esse respeito e repudio veementemente aquelas que se comprazem numa alegria sádica com o que vem acontecendo no nosso país, torcendo pelo "Quanto pior, melhor".

Não quero aqui, como faz a Rede Globo, numa vergonhosa campanha fofoqueira de leva informação de grampo privilegiadamente recebida, de disse que disse,  não escapando aos comuns dos espectadores a observação de estar com o propósito sem ética de enredar a opinião pública numa trama perversa de interesses tendenciosamente a favor do golpe, cair na equivocada posição de dizer "esse não tem razão", "não, não é esse, é aquele que tem", "esse é corrupto porque teve dinheiro para comprar isso e aquilo" e asneiras como tais.  Não quero sequer dizer "Dilma ou Lula têm ou não razão". Como já disse, não sou filiada ao PT e, com certeza, a seus filiados não falta senso crítico para admitir que os seus governantes, além de acertos, cometeram também equívocos. O que mais importa agora a todos nós,  brasileiros, é que um valor mais alto se levanta. A democracia. Por isso, como alguém que teve uma longa trajetória de luta contra a ditadura e fez questão, de, mesmo seriamente doente, comparecer com toda a garra à manifestação do dia 18, quero contar a vocês, meus leitores, que não sei agora que posições políticas assumem, o que eu vi lá.

Eu vi, em uma das poucas vezes na minha vida, uma numerosa (no mínimo 100.000 pessoas), expressiva manifestação política alegre. Alegria. Essa é a cara de uma manifestação política, mesmo em tempos tensos, que ocorre sob a égide de um Estado Democrático. Era majoritariamente o povão que estava lá. Tinha gente com todos os matizes de cor de pele. Felizmente, muita gente negra. Alguns, desdentados. Senti-me em casa. Sou uma psicanalista de classe média-média, quase pobre. Como muitos de vocês sabem, deixei de ser uma terapeuta abastada para me iniciar na psicanálise com todas as perdas que isso às vezes implica. Sou recém-chegada no mercado, arcando com despesas a pagar nem tão barato assim, pela minha formação e minha análise. Também, faço questão de que tenham também acesso ao meu consultório pessoas economicamente menos favorecidas. Então, sem tristeza, arco com a perda de alguns dentes que não pude ainda repor. Melhor sem dente do que elitista, sem ética e competência.

Embora majoritário, não estava lá só o povão. Muita gente da classe média progressista. Encontrei colegas psicanalistas, psicólogas minhas ex-alunas da Ufba, profissionais liberais das mais variadas áreas, professores, funcionários públicos, muitos sindicalistas, gente de todo tipo cheia de esperança e entusiasmo, gritando palavras de ordem como "Não vai ter golpe, vai ter luta!" "Lula, guerreiro do povo brasileiro!" . Havia muita batucada, música, bandeiras, adesivos, camisas vermelhas, cartazes com dizeres às vezes divertidos, todos numa comovente convivência pacífica, nem o mínimo sinal de violência. Todos eram gentis uns com os outros e embora fosse uma gigantesca multidão, ninguém atropelava ninguém. Todos muito cuidadosos ao dar passagem, contrastando escandalosamente com o que vi no carnaval onde os cordeiros dos blocos, recebendo R$ 30,00 por dia empurravam violentamente o povão para separá-lo dos foliões de elite.

 Pouco a pouco fui sendo tomada por uma intensa comoção e vieram as lágrimas. Chorei copiosamente vendo Waldir Pires velhinho lá em cima de um carro chefe e a Praça Castro Alves que é e sempre será do povo, apinhada de gente. Chorei sobretudo lamentando a falta de sensibilidade dos poderosos, da classe dominante que em nome da propriedade privada e defesa do capital, não se acanha de querer retroceder a um tempo onde  não era possível haver manifestações políticas alegres. Saíamos para as passeatas sem sabermos se voltávamos pra casa. Quantos de nós não foram violentamente empurrados para dentro dos camburões da polícia fascista e não apareceram nunca mais? Lembrei da minha primeira e muito traumática experiência com a morte. O assassinato pela ditadura de minha companheira política contando apenas 16 anos. Como um filme, uma sequencia de imagens me foi tomando a cabeça.

 Pensei, muito preocupada, que não é por falta de memória que os poderosos acobertados por falsos legalistas querem decretar o impedimento de uma presidente legitimamente eleita pelo povo, como álibi para voltarmos aos negros tempos de 64. Pensei que o que os tais falsos legalistas simplesmente insistem em denominar "Operação Lava Jato", mesmo que crimes de corrupção tenham ocorrido e precisem ser averiguados e punidos, nada mais é do que a luta de classes da qual falava o sábio velho Marx. Muitos outros pensamentos me foram tomando a cabeça. Avisei ao amigo carinhoso que cuidava de mim:
"Sinto muita dor e contrações no abdomem e  preciso voltar para casa".Pedi a ele para me dar o seu braço. Consegui ainda caminhar da Praça Castro Alves até o Campo Grande. Eu saía da manifestação, mas atrás de nós, como pano de fundo, a entusiasmada esperançosa e alegre palavra de ordem : "O POVO NÃO É BOBO. ABAIXO A REDE GLOBO!!!!!!"
                                                                              Marcia Myriam Gomes.

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