sábado, 29 de novembro de 2014

30/11/14  Cara leitora, caro leitor,

De volta a Salvador, vou dando prosseguimento à série de crônicas domingueiras intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Como vocês todos sabem, Dona Myriam Urpia a mulher guerreira cuja interessante personalidade vocês vêm conhecendo através do "Blá, blá, blá...", conseguiu sair vitoriosa da cirurgia. Atravessa um pós-operatório nem sempre fácil, por ter sido sempre muito independente, dona de seu nariz, enfrentando com garra as adversidades da vida. Então para ela é um pouco sofrido precisar ser cuidada e não ser dona de suas decisões.

A pedido dela, falei ontem ao telefone com seu amigo Doutor Justino que manda dizer que continua rezando por ela e que nas horas de maior aflição ela lembre das palavras de Santa Teresa D'ávila que diz que é preciso paciência e que tudo passa.Com o apoio que vem recebendo das cuidadoras e dos familiares Dona Myriam há de vencer esta batalha. 

Quando eu estava em Aracaju com ela, mais de uma vez  me pediu que não deixasse de escrever o "Blá,blá,blá domingueiro..." que  faz questão de ler. Então peço a Sandra (minha irmã), Alfredo (meu cunhado) ou Daniela (minha sobrinha filha de Sandra) que façam a gentileza de imprimir o escrito para minha mãe ler.

No dia 26 de novembro, quarta-feira passada, depois de ter em prol do bem estar dela, tomado a muito difícil decisão de retornar a Salvador, na nossa despedida minha mãe e eu passamos a manhã toda juntas de mãos dadas e conversando sobre as suas bonitas recordações de Taperoá, cidadezinha onde vivemos e fomos felizes. Então reavivo na memória de minha querida mãezinha a conversa que tivemos, esperando com isso dar a ela um alento para esse momento nem sempre fácil que está vivendo. Tomara que ela se entretenha e se divirta.

                                                     SAUDADES  DE  TAPEROÁ
Taperoá é uma cidade vizinha a Valença e próxima do Morro de São Paulo. Quando mudamos de Salvador para lá, Dona Myriam tinha apenas 24 anos. Era uma moça quase menina, linda. Magrinha e delgada, corpo bem feito, olhos azuis e cabelos cacheados em tom castanho, se não me engano. Já era mãe de três filhos: Sandra, a mais velha com 5 anos, muito faladeira e extrovertida, Marcia, que sou eu, com 4 anos, mais para tímida e reflexiva e Lula, nosso irmão que contava 2 anos e era um menininho rechonchudo muito bonito e engraçado. Dona Myriam ficaria grávida de Lilyana, a caçula, já vivendo em Taperoá. Eu já contei a vocês a viagem que fizemos às pressas de barco para Salvador para minha mãe parir Lily.

Mudamos para Taperoá para meu pai lá se aventurar na carreira de médico. A cidade era muito modesta, de arquitetura predominantemente colonial muito humilde e vivia-se da pesca, da fabricação de azeite de dendê e exploração de cravo da Índia. Nós fomos felizes naquela cidade. O capitalismo ainda não cravara suas garras cruéis naquele lugarejo onde muito da atividade era artesanal e muitas vezes meu pai era remunerado pelo seu trabalho de médico com peixes, frutas e verduras. Parece que todos nós concordamos que o que fazia de Taperoá um lugar especial eram seus tipos humanos.

A classe dominante era representada por alguns fazendeiros entre os quais estava Vítor Meireles, o prefeito, de quem meu pai era inimigo político. A divisão de classes sociais não era rígida, de modo que podíamos transitar com familiaridade entre as camadas populares.

 Nos mangues havia muitos caranguejos que na época de andada entravam sem nenhuma cerimônia nas nossas casas. Meu pai com seus rompantes sanitaristas, não nos permitia comer o inofensivo animal. Mas quando ele viajava Dona Myriam nos matava a vontade preparando uma deliciosa caranguejada com pirão de dendê. Era uma farra!! Nossa mãe sempre foi excelente cozinheira, mesmo sem a ajuda dos eletrodomésticos que já estavam na moda. É que meu pai era comunista e não se permitia consumir as invenções do capitalismo. E o trabalho sobrava para Dona Myriam que cozinhava em fogão à lenha e não podia ter liquidificador.

O padroeiro de Taperoá era São Brás, cuja igreja ficava na praça no alto de uma escadaria. Eu sempre fui uma criança tímida e assustadiça. Numa das festas de São Brás eu estava com minha mãe nas escadarias da igreja quando soltaram um foguete. Eu fiquei tão assustada com o barulho, que rolei escada abaixo e quebrei o nariz. Ainda hoje temos conosco fotografia daquela menina franzina com o nariz todo enfaixado.

Outra festa significativa em Taperoá era a Zameapunga. Ritual folclórico onde o povo mascarado e fazendo muito batuque dançava desfilando nas ruas até a praça onde depositava uma espécie de escultura enorme de caranguejo. Era uma festa popular muito interessante e original. Uma espécie de rito pagão de homenagem ao caranguejo que certamente servia de alimento básico às parcelas menos favorecidas da população da cidade.

O decano dos pescadores, "Seu" Luís de Abrão, usava um enorme chapéu de palha de abas imensas e à noite se reunia com seus colegas para contar "causos". "Causos" de pescador vocês sabem como é. Vence aquele que contar a mentira vantajosa maior. "Seu" Luís de Abrão, pai de Gil, era sogro de Conceição. Concé era uma moça bonita que trabalhava em nossa casa e tatuava na coxa com castanha de caju em brasa o nome do seu amado. Trabalhando lá em casa tinha também Cassiano. Um negro alto, corpulento de músculos rijos que tinha força suficiente para nos colocar de pé na sua palma da mão.

O dia de sábado era o dia da feira. Muita movimentação de cavalos na cidade. E por falar em cavalo, jamais eu e minha mãe na nossa conversa de despedida poderíamos esquecer "Seu" Juca. Um senhor obeso que desfilava pela cidade sempre a cavalo a caminho da casa de sua amante. É o que todos comentavam. Comentavam também que "Seu" Juca comia uma dúzia de ovos com uma dúzia de bananas de uma só vez. 

Na nossa conversa Dona Myriam e eu rimos juntas ao recordarmos de Chico Lecó. Chico Lecó era tido como doido porque passeava pela cidade com flores enfiadas nas narinas. Minha mãe se emocionou ao falar de Anísia e Ivone, de apelido Von. Anísia era a secretária do consultório de meu pai e morava conosco. Também Von morou conosco. Era uma amiga dentista que foi  trabalhar em Taperoá. Pessoa adorável, era muito apegada a meu irmão Lula.

 Na sua trajetória de vida Dona Myriam teve algumas vezes que morar em casas de outras pessoas. Nessas situações era sempre extremamente cooperativa e respeitadora da privacidade de quem nos recebia. Ainda hoje, morando em Maceió com meu irmão e minha cunhada, cuida de manter suas coisas sempre em ordem, não opina sobre a rotina e a administração da casa e ajuda nas tarefas domésticas quando os empregados estão ausentes. Em Taperoá recebeu Anísia e Von na nossa casa com muito carinho e delicadeza. Elas gostavam de morar conosco.

Mas foi o episódio da onça que fez mãe e filha darem muita risada juntas quando se aproximava a hora de se despedirem em Aracaju. Em Taperoá a luz elétrica se interrompia às 22:00 h. A partir dali, só vela e candeeiro para dar conta da escuridão. A rua ficava um breu. Aconteceu que chegou à cidade um treinador que ganhava dinheiro exibindo uma onça numa jaula. E um belo dia o treinador desapareceu. Então circulou o boato de que ele fora devorado pela onça que se soltara da jaula ganhando algum esconderijo na cidade. A partir daí, toda vez que faltava a luz, algum engraçadinho ficava na praça gritando: "Olhe a onça!" Por muito tempo as crianças tiveram medo de dormir e serem engolidas.

Nós sempre gostamos muito de animais e em Taperoá tivemos Trumman e Merza. Dois cachorros. Dona Myriam lembrou que quando moramos numa casa que tinha um primeiro andar espécie de mezanino bem em cima dos aposentos onde Lula dormia com Von, Trumman gostava de lá subir e por uma fresta no piso fazia xixi bem em cima de Lula. O negócio virou um verdadeiro ritual para o cachorro. Nem eu nem Dona Myriam lembramos que solução os adultos da casa encontraram para o caso.

Muito divertido foi o dia em que Lula com apenas dois anos e muito zangado com minha mãe fugiu de casa correndo em direção à loja de "Seu" Pequenito e quase foi abraçado por um tamanduá. Taperoá tinha Dona Adiles e Dona Lélia. Duas irmãs, senhoras adoráveis, donas da farmácia. Tinha "Seu" Amorzinho. Um senhor amolador de tesouras e facas que morava isolado num morro. Tinha Dona Bela que vendia uma inigualável goiabada cascão. Tinha Isabel Grisente (já se viu sobrenome igual?) dona de uma fazenda de cravo da Índia que dava emprego a muita gente que se ocupava de catar os cravos e colocar em esteiras a secar nas portas das casas, perfumando a cidade. Tinha Dona Ziza. Uma senhora muito doce que nos levava a passear na sua fazenda para comer jabuticaba e banana seca ao sol. Lá ocorreu a experiência de vermos, justo no dia previsto para o fim do mundo em que chovia torrencialmente, uma vaca no espelho de um guarda-roupa. Essa história eu já contei a vocês em outro "Blá, blá, blá..." 

Como vocês podem ver, viver em Taperoá nos permitiu ter experiências que beiravam o realismo fantástico de alguns escritores latino-americanos. E Dona Myriam, com apenas vinte e poucos anos, tirava partido disso com a sensibilidade e o humor que nos entretinham tornando ter morado naquela cidade uma oportunidade de enriquecimento da qual até hoje sentimos enorme saudade. Saudade maior é a que sinto agora da minha mãe que está em Aracaju se recuperando de uma cirurgia. Mãezinha querida, você vai sair logo dessa!! Oxalá nos vejamos em breve!!
                                                                                                     Marcia Myriam Gomes.  

30/11/14                           CORAÇÃO  DESTROÇADO.

Cara leitora,  caro leitor,

Tenho o coração destroçado. Meu rosto, todo contraído, parece uma máscara. Esgarçado de dor. Por isso, decido que preciso escrever duas crônicas para esse domingo. Uma, para vocês, meus amigos queridos que vêm me acompanhando com delicadeza e sensibilidade desde o dia 30 de setembro quando recebi a notícia de que minha mãe tinha um câncer. Uma crônica para vocês com quem posso partilhar com liberdade minhas alegrias e dores com todo esse processo difícil.

 Como vocês sabem, a cirurgia de minha mãe foi bem sucedida, ainda que com a intercorrência da saída do dreno do lugar, que implicou em uma segunda cirurgia para recolocá-lo. Mas até a retirada do dreno prevista para a próxima terça-feira e em seguida todo o percurso pós-operatório até que ela fique plenamente restabelecida e possa voltar para a sua casa em Maceió, será um processo oscilante de júbilos e alguns percalços, ainda que seja enorme a minha alegria por Dona Myriam ter resistido a duas cirurgias. Por isso, recorro a vocês como meus interlocutores, com quem posso fazer um certo "desabafo".

Depois de feito o "desabafo", estarei melhor preparada para escrever a segunda crônica destinada a entreter minha mãe, narrando com graça e bom humor algum episódio que vivi com ela. Essa segunda crônica que não sem esforço sairá alegre e divertida, além de para minha mãe, será enviada também para os leitores do "Blá, blá, blá domingueiro..." que não são meus amigos, e para familiares com os quais não me sinto à vontade nem confiante para partilhar meus sentimentos mais verdadeiros. Será também publicada no Facebook, com a esperança de que meu cunhado Alfredo ou minha sobrinha Daniela, imprimam o texto para minha mãe ler. Assim, como vocês podem ver, tenho hoje um coração destroçado e me sinto completamente cindida.

Desde a quarta-feira passada quando retornei a Salvador depois de um período de uma semana em Aracaju acompanhando as duas cirurgias de Dona Myriam e vivendo um momento dramático de uma dinâmica familiar quase caótica, falei pela primeira vez com minha mãe na sexta-feira às 9:35 h da manhã. Parece que ela está por ordem médica proibida de falar ao telefone. Foi isso que lhe foi ordenado pelos familiares que ficaram cuidando dela depois que decidi retornar a Salvador.

 Eu não estava presente quando o médico lhe fez essa proibição e por isso, não a compreendo bem. Compreendo sim que ela deve falar pouco, somente com as pessoas que lhe fazem bem, se poupando do contato com interlocutores que se alonguem indevidamente no telefone. Compreendo que ela não pode manusear o telefone com a mão direita, do lado em que foi feita a mastectomia. Compreendo que ela precisa ser cuidada para se preservar ao máximo possível do risco de contrair uma infecção. Compreendo que ela precisa de cuidados físicos, mas sem que se negligencie a necessidade do cuidado psicológico. Não sabemos quanto tempo de vida ainda lhe resta e ao meu ver, ela não pode ser privada de receber o acolhimento e o amor dos que lhe são próximos. Acolhimento e amor que certamente muito auxiliam na sua recuperação. 

Minha mãe encontra-se muito deprimida. Chora inconsolavelmente por sentir-se dependente e queixa-se do fato de receber as prescrições médicas sob a forma de ordens autoritárias, às vezes sem o cuidado de persuadi-la com carinho e paciência. Encontra-se muito fragilizada emocionalmente e num certo estado confusional com lapsos de memória próprios de momentos pós-traumáticos. Embora extremamente dedicados, alguns dos meus familiares têm um nível de instrução precário, o que dificulta a compreensão mais sutil de como respeitar as ordens médicas  tendo jogo de cintura para orientá-la com carinho e acolhimento.

Quando às 9:35 h da sexta-feira ela me ligou, fiquei muito feliz e emocionada. Interpretei o fato dela ter feito a ligação como um possível sinal de que Dona Myriam havia sido liberada da "ordem médica" de não telefonar aos entes queridos. No telefonema ela estava com a voz boa, perguntou se eu estava bem e me disse que para ficar bem precisava ter certeza de que eu estava bem. Respondi que eu estava muito bem, comentei com contentamento que ela estava com a voz boa e perguntei se ela havia gostado da cuidadora que passara a noite com ela. O telefonema foi breve, mas me encheu de júbilo porque ela estava com a voz boa e porque julguei que a partir dali eu poderia então lhe telefonar.

Na noite de sexta-feira depois da hora em que ela costuma assistir à missa, então eu lhe telefonei. Chamei algumas vezes e ela não respondeu. Uma hora depois a cuidadora me ligou e passou imediatamente o telefone a minha mãe. Dona Myriam estava tristíssima, me disse que estava proibida de falar ao telefone por "ordens médicas", pediu que eu rezasse muito por ela porque está sofrendo muito e não sabe se vai suportar. Pediu muito que eu telefonasse a seu amigo Doutor Justino para agradecer pelo apoio e explicar que ela não pode falar ao telefone.

 Fiquei com o coração destroçado e chorei muito. Não sei quando poderei voltar a falar com ela. A comunicação familiar está muito truncada. Julguei que a minha saída de Aracaju agora nesse momento, contribuiria para deixar minha irmã e meu cunhado mais repousados e que contribuiria para que a dinâmica familiar pudesse ficar mais serena, diminuindo questões de disputas de poder e ciúmes. A saudade e a preocupação com minha mãe são enormes. Uma certa impotência me toma.

Na quarta-feira, 26 de novembro, último dia da minha permanência em Aracaju, passei  o tempo todo ao lado de Dona Myriam. Acompanhei seu café da manhã, levei-a ao banheiro e em seguida ela pediu para andar um pouco mas sentiu-se tonta. Ajudei-a a deitar-se e ela pediu que lesse para ela o livro sobre Dona Ruth. Ficou um pouco agitada tentando encontrar uma posição confortável na cama. Em seguida pediu para eu ligar para Doutor Justino. Liguei mas ele não estava.

 Ela permanecia deitada, eu segurando sua mão, dizendo repetidas vezes que a amo muito. Alfredo, meu cunhado, muito generosamente tirou algumas fotos de nós duas juntas e prometeu enviar para mim pela internet. Quando comuniquei na casa que preferia não almoçar antes da viagem (eu sairia para o aeroporto às 12:30 h) para usufruir ao máximo da companhia da minha mãezinha que só iria almoçar mais tarde, fui severa e duramente repreendida. Mantive minha decisão. Não almocei e fiquei todo o tempo que restava segurando a mão de Dona Myriam.

Acariciando minha mão, ela começou a se recordar de coisas que vivemos em Taperoá, cidade do interior onde vivemos quando eu tinha de quatro a sete anos. Eram lembranças boas. Às vezes ela chorava, às vezes sorria, sempre acariciando a minha mão. Me pediu que não deixasse de escrever e enviar o "Blá,blá,blá domingueiro...". Pediu que eu lembrasse a meus irmãos que quando ela falecer faz questão de ser sepultada aqui em Salvador, junto à sua mãe no Jardim da Saudade. Repetiu esse pedido umas três vezes.

 A minha hora de embarcar ia se aproximando, eu fazendo grande esforço para disfarçar a comoção. Sorrindo, ajudei-a nas boas recordações de Taperoá. Lembramos de Chico Lecó, um doido que andava pela rua com flores enfiadas nas narinas. Lembramos de "Seu" Aurélio dono do barco onde viajamos para Salvador para ela dar à luz Lilyana. Lembramos do episódio da vaca no espelho. Lembramos de Trumman, um cachorro que gostava de fazer xixi em Lula, meu irmão. Lembramos que Lula aos 2 anos escapou de casa correndo pela rua, sendo quase abraçado por um Tamanduá. Lembramos da fazenda de Isabel Grisente, onde tinha muito cravo da Índia. Lembramos, lembramos, lembramos. A hora insuportável chegou. Não sei como tive forças para soltar a mão da minha mãezinha. Entrei e saí do avião com o coração destroçado.
                                                                                                    Marcia Myriam Gomes.  

sábado, 15 de novembro de 2014

16/11/14        Queridas amigas e queridos amigos,

Hoje não vai ter "Blá, blá, blá domingueiro...". Hoje é o último domingo antes da delicada cirurgia a que minha mãe irá se submeter, no próximo dia 21 de novembro. Ela encontra-se em casa de Sandra, minha irmã mais velha em Aracaju onde ocorrerá a cirurgia. Eu estou indo para lá no dia 18, com uma passagem só de ida. Estou indo torcendo muito pelo restabelecimento da saúde de minha mãe, disponível para lá permanecer pelo tempo que for necessário, pelo tempo em que eu possa ser útil. Não vejo a hora de abraçá-la. Não vejo a hora de dizer pessoalmente o quanto a amo.

Escrevo a vocês em separado. Somente a vocês, meus amigos. Creio que a grande maioria de vocês sabe que sou chegada a de vez em quando escrever E-mails onde me exponho muito, dizendo o que sinto e penso. Na alegria e na dor. Também na raiva. Em momentos em que me torno mais intensa por algo que me comove muito, me alegra, me entristece, me causa revolta, indignação ou tudo isso misturado.

Desde 2012 tenho recorrido ao "Blá, blá, blá domingueiro...." para me expressar. Através desse escrito dou mais ou menos conta do quero dizer, contar, exprimir. Mas hoje é diferente. Envio o que costumo chamar de minha crônica domingueira a mais de 150 pessoas, entre amigos, colegas, conhecidos, pessoas que nem conheço e que dizem gostar de receber o meu texto, enfim, a um público variado. Mas hoje é diferente.

 Vocês sabem que há coisa de uns três domingos para cá, transformei a crônica de domingo num escrito para minha mãe ler, prioritariamente. Passei a escrever para diverti-la, entretê-la, levantar seu astral, como uma forma de contribuir para que ela entre na cirurgia à qual vai se submeter, em boas condições emocionais. Também para que vocês a conhecessem e eu melhor me apropriasse da mãe especial que tenho.  Desde que fiquei sabendo do seu diagnóstico e passei a escrever sobre ela, antes mesmo que para ela, precisei restringir o envio da crônica a um número menor de pessoas. Afinal, quem não me conhece não está muito interessado em saber que sinto dor e apreensão em relação à saúde de minha mãe. Nem eu queria e nem cabia me expor tanto assim.

Mas hoje é ainda mais íntimo e restrito. Somente para aqueles que têm compartilhado comigo essa vivência que vem desde o dia 30 de setembro, quando soube meio à queima-roupa que minha mãe tem um câncer e para tentar extirpá-lo passará por uma cirurgia muito delicada. Escrevo agora somente para as pessoas que me querem bem e têm me feito companhia nesses quase dois meses em que oscilo da mais viva esperança à mais tenebrosa apreensão. Acho que escrevo para mim, tomando-os como destinatários. E escrevo principalmente para agradecer.

Ficar sabendo que minha mãe tem um câncer e que posso perdê-la tem sido uma experiência de muita dor, mas de uma riqueza extraordinária. Confesso a vocês que eu não sabia exatamente o quanto a amo, não tinha a dimensão do tanto que significa para mim, do quanto com seu caráter irrepreensível contribuiu para eu ser a pessoa que sou. Quando depois de feita a biópsia, ela muito desamparada se queixava de dor no braço eu, para poupá-la desse sofrimento, passei a desejar que essa dor fosse em mim. Passei a viver meio em função das horas em que falaria com ela ao telefone. Ficava bem se a sentia bem disposta, animada, e chorava muito quando percebia nela qualquer sinal de abatimento ou desânimo. Aprendi a dissimular minha comoção para poder conversar com ela sem dar pistas da minha enorme apreensão. Passei a ler a Bíblia para abordar com ela assuntos que são do seu interesse.

 Muitos de vocês sabem que por longos anos mantive uma relação muito ambivalente com minha mãe. Para mim era difícil tolerar que ela não pudesse separar o que foi meu pai como marido dela, do que ele foi efetivamente como pessoa, pai e profissional. Também era muito difícil para mim aceitar a sua indisfarçável, acintosa preferência por meu irmão, muitas vezes em prejuízo meu e das minhas duas irmãs, suas filhas mulheres.

 Então por certas vezes eu e minha mãe nos atritamos. Ela era muito autoritária, controladora, voluntariosa e eu, bem sei, por outras razões, não sou uma pessoa nem um pouco fácil. Éramos duas pessoas difíceis que não sabíamos muito bem o que fazer com o grande amor que sempre houve entre nós, mesmo que perpassado por rusgas e alguns mal entendidos. Foram necessários muitos anos de análise para eu imprimir à minha relação com ela uma tonalidade onde predominam o amor e a aceitação de que ela é uma mulher extraordinária, independente dos defeitos que tenha. Escrevendo a crônica de domingo para ela, pude mais uma vez fazer contato com a mulher extremamente generosa e bem humorada que Dona Myriam sabe ser. A mulher que não se abate com as adversidades, com quem aprendi muitíssimo.

 Muitos de vocês são meus colegas e sabem quão mais doloroso pode ser esse momento do sofrimento de agora, quando a relação por muito tempo não pode ser um mar de rosas. É uma corrida contra o tempo. É um desejo quase desesperado de ter podido ter feito tudo diferente. E há muito sofrimento. Bate culpa, bate revolta contra a vida que pode estar nos roubando o tempo que nos resta para resgatar, bate um anseio de onipotência querendo fazer o possível e o impossível para mitigar o sofrimento dela. Há muita dor. E foi em meio a essa dor, que pude viver a riqueza extraordinária dessa experiência. Foi em meio a essa dor que pude receber das pessoas que me querem bem a grande dádiva da generosidade.

Se eu fosse citar todos os nomes, encheria mil páginas. Pessoas que só me conhecem através do "Blá, blá, blá domingueiro..." escreveram coisas muito tocantes, bonitas, emocionadas a respeito da personalidade de minha mãe e entraram na torcida pelo restabelecimento de sua saúde. Nesses quase dois meses de sofrimento, fiz novos amigos valiosos, de uma sensibilidade ímpar.

 Acho que só minha analista e as minhas duas amigas mais íntimas sabem, mas agora vou contar pra vocês. Nesses dias não muito fáceis para mim, através de um golpe na internet roubaram todo o pouco dinheiro que havia na minha conta bancária, deixando somente R$14,00. Vou logo adiantando que conto isso para poder agradecer a generosidade de algumas pessoas muito, muito íntimas. Mas por favor, peço que ninguém faça ofertas materiais, o que muito me magoaria, ofenderia mesmo. Mesmo porque o banco provavelmente fará o ressarcimento definitivo da quantia perdida. Estou acostumada a viver com pouco dinheiro. Mas a disponibilidade amorosa das minhas duas amigas mais íntimas nesses dias dos só quatorze reais, foi uma lição de vida de um valor inestimável. Só quem toma chuva e se molha muito, sabe o que significa alguém lhe oferecer um guarda-chuva em plena tempestade.

Pois é. As duas Anas, cada uma a seu modo, têm sido a grande lição do guarda-chuva. Para quem vive geograficamente longe dos familiares mais próximos e ao lado disso, experimenta uma dinâmica familiar onde é normal e aceitável que se privilegie pegar a mulher num curso de futilidades do que buscar o necessariamente urgente resultado de exame médico de um familiar gravemente enfermo, ter amigas como as duas Anas é uma questão de sobrevivência. Para quem experimenta telefonar a alguém para saber do estado de saúde de um familiar gravemente enfermo, de quem se está compulsoriamente longe geograficamente, e obtém como resposta "você está atrapalhando a hora do meu banho", ter amigas como as duas Anas é uma espécie de pára-raio que protege contra a possibilidade de se enlouquecer da dor do desamparo.

Ana Helena, amiga com quem rusgo às vezes por uma coisa fútil como pontualidade ou por um tom de voz que não me soa dos mais cordatos, nesses quase dois meses em que vivo a experiência da enfermidade de minha mãe, me levou para sair com ela incontáveis vezes, com uma escuta muito amorosa, muito continente, respeitando às vezes meu desejo de silenciar. Como a gente é pequeno, como a gente nessa vida globalizada de corre-corre onde as pessoas se tornam menos importantes do que as ocupações, se amesquinha! Brigar com Ana Helena por motivos tão pueris, diante da sua enorme disponibilidade para mim nas horas difíceis, me parece cruel. Ao contrário daqueles para quem cuidar dos cachorros é mais importante do que dizer uma palavra acolhedora a um familiar aflito, essa minha amiga já passou maus bocados na vida e sempre contei com ela em momentos cruciais. Ana Helena, querida, o mínimo que espero é poder retribuir.

Tenho recebido telefonemas de solidariedade de amigos que eu não via há muito tempo. Há quem se disponibilize a estudar Lacan comigo mesmo sabendo que não estou bem, nem preparei a lição. Alguém no saguão do prédio onde trabalho me aborda carinhosamente para dizer uma palavra amiga. Os colegas de turma de Psicologia cujo encontro aconteceu em 1 de novembro, além de compreenderem meu não comparecimento, tiveram o carinho de registrar minha contribuição para a realização do encontro e têm sido de uma amorosidade que cala fundo no coração. Alguns deles me telefonaram, muitos deles escrevem sobre o que conto sobre minha mãe na crônica de domingo. Todos estão na torcida pelo sucesso da cirurgia.

Tive a experiência gratificante de conhecer Doutor Justino. Doutor Justino é um magistrado muito religioso com quem minha mãe trabalhou por uns tempos quando era escrivã da Quinta Vara de Família no Fórum Ruy Barbosa. Naquele tempo, em que minha mãe embora católica não tinha ainda uma fé fervorosa, Doutor Justino deu a ela de presente um azulejo com um escrito de Santa Teresa D'ávila. Ela guardou. No momento em que adoece e sabe que vai fazer uma cirurgia, embora não sabendo seu diagnóstico, minha mãe consulta muitas vezes o escrito e me confessa que gostaria que eu encontrasse Doutor Justino aqui em Salvador, para que soubesse que ela guarda o escrito e que tomou o Hábito de Carmelita. Vou à igreja à procura dele mas não o encontro. Graças ao carinho dedicado de minha amiga irmã Ana Cecília, consigo localizar finalmente o magistrado. Doutor Justino é dessas grandes almas generosas. Uma pessoa muito especial. Tem feito telefonemas muito alentadores a minha mãe e a mim, e vai fazer uma corrente de orações no dia da cirurgia.

Como eu poderei esquecer que meu amigo José Carlos Ribeiro, que não é nem um pouco de religiões, foi à missa no dia em que eu procurava Doutor Justino na igreja especialmente para me dar um abraço de solidariedade? Como eu poderei esquecer o quão presente tem sido minha amiga Letícia? Como eu poderei esquecer que neste momento reavivei laços com primas distantes e que num bonito gesto, duas delas vão visitar sua tia Myriam em Aracaju na véspera da cirurgia? Como eu poderei esquecer os telefonemas solidários da prima Elyana Barbosa, sobrinha super querida por minha mãe? Como eu poderei esquecer que uma pessoa a quem nos últimos tempos eu cumprimentava apenas socialmente, me escreveu um E-mail muito solidário partilhando sentimentos de quem passa pela experiência de ter uma mãe idosa?

Jamais poderei esquecer. Sobre a continência respeitosa solidária e generosa da minha analista e do meu médico, por uma questão de discrição aqui não posso narrar. Mas quero deixar registrado.

Nunca me esquecerei que em meio à correria que é seu trabalho na Universidade Federal do Oeste da Bahia, meu amigo Sérgio Farias me escreveu um E-mail muito sensível falando do adoecimento de minha mãe e de como nós, já senhores sessentões somos forçados a nos preparar para eventualmente perdê-los. E que nunca nos sentimos preparados. Olival Freire Júnior, também muito ocupado com os afazeres da Pró-reitoria na UFBA me telefonou muito solidário e partilhou comigo a experiência de ter perdido sua mãe ainda relativamente jovem.

 Os colegas de seminário da Letra Freudiana mais próximos, tiveram sempre nesse período uma palavra de carinho e apoio. Minha amiga e ex-professora Eglê Pinheiro, muito presente, vai passar amanhã no meu consultório para deixar um livro que pode me entreter durante a minha estada em Aracaju.  Anamélia Carvalho, mesmo estando em recuperação de uma cirurgia, jamais esqueceu de me ligar e com seu estilo muito empático, está na torcida pela recuperação de minha mãe.

De diferentes lugares, de diferentes graus de proximidade, sendo mais ou menos frequentes, parecem todos os meus amigos saberem que estou passando por uma experiência limite. Os que me conhecem há mais tempo, a exemplo de Ana Helena que é minha amiga desde 1966 e de Ana Cecília, desde 1972, têm uma consciência mais aguda do doloroso que é essa experiência, porque são de certa forma testemunhas da complexidade do funcionamento da minha família e da ambivalência que por muitos anos perpassou a minha relação com minha mãe.O que importa é que sinto todos muito próximos. A certeza de que não estou só é imensamente alentadora.

Talvez a maior lição de vida que posso extrair dessa experiência é a impressionante amorosidade da minha irmã Sandra e do meu cunhado Alfredo. Minha mãe não cansa de dizer que o considera mais que um filho. Embora morando com meu irmão em Maceió, numa casa com suítes, piscina, canil e um enorme e muito bonito jardim num condomínio fechado, minha mãe escolheu se operar em Aracaju e está desde o dia 4 lá, na casa de Sandra.

 A casa é muito modesta, tem apenas dois quartos sem banheiro privativo. Um quarto é ocupado por minha irmã e meu cunhado. No outro se hospeda minha mãe. A casa não tem dependências de empregada e na sala funciona o salão de beleza onde minha irmã e meu cunhado trabalham às vezes até 22:00 h. É nesta casa que eu e minha irmã caçula vamos nos hospedar. É nessa casa que minha mãe vai passar seu período pós-operatório, que não sabemos quanto tempo vai durar.

Minha irmã, que não é aposentada, como eu, vive do que tece. É autônoma. Nesses dias em que minha mãe está em casa dela cercada de todo amor e carinho, Sandra não pode se dar ao luxo de parar de trabalhar só para se dedicar a cuidar da minha mãe. E cuida, e faz comida especial para ela e acorda de madrugada quando ela toca (comecei a chorar) a campainha e os chama para rezar com ela porque se sente angustiada.

 De manhã  Sandra e Alfredo têm que abrir o salão para trabalhar. Quando ela soube por meu irmão que minha irmã caçula não vai poder se hospedar na casa da filha dele por causa de um cachorro, Sandra disse que Lily é bem vinda na sua casa  e o que importa é que minha mãe fique bem.  Meus amigos, essa é a irmã mais velha que tenho. Sempre foi assim. E eu, o que faço? O que posso fazer para ajudar? Meus amigos, essa é a família que eu tenho. E eu o que faço? Dou uma divagada e sinto uma saudade quase insuportável do poeta Manoel de Barros que se foi pra não voltar.

Eu estou indo. Minha querida amiga Ana Helena vai me levar ao aeroporto. Não sei quando vou voltar. Vou para Aracaju acompanhar a cirurgia de minha mãe. Ainda agora estava falando com ela. Rindo muito, me disse que havia acabado de ler o "Blá, blá, blá.." onde eu conto a história da mala no veraneio da Ilha de Itaparica e acrescenta: "você exagerou muito. Você, minha filha, quando escreve é muito exagerada! Eu não me lembro que seu namorado cortou o pé. Essa parte você inventou". E dá muita risada. Isso me deixa muitíssimo feliz.

 Depois, generosa e protetora diz que tudo vai dar certo na cirurgia porque o cirurgião tem uma Nossa Senhora Aparecida bordada no jaleco e que ela simpatizou muito com o anestesista. Dona Myriam, uma mulher corajosa e de fibra de quem eu preciso e quero cuidar. Tem Dona Myriam, a mulher que sempre soube dar a volta por cima, nunca deixou cair a peteca. Agora chegou sua vez de receber colo e quero lhe dar colo. E tem vocês, meus amigos, que podem avaliar quão importantes são para mim. Obrigada de coração, pela lição de vida! Torçam por minha mãe! Quando a vejo assim tão bem humorada,  eu tenho a enorme  esperança de que  vai sair dessa e sobre ela e suas peripécias, ainda tenho muita história pra contar.
                                                                           Marcia Myriam Gomes. 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

10/11/14                                           MULHER  PREVENIDA

Cara leitora, caro leitor,

Por conta de uma indisposição gástrica, não pude enviar ontem a crônica domingueira. Então dou seguimento hoje à série narrativa intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe" com o propósito de fazê-los conhecedores das idiossincrasias de Dona Myriam Urpia, essa mulher maravilhosa, às vezes surpreendente, às vezes desconcertante com seus expedientes de pobre de grana e rica de espírito, nunca medir esforços para proporcionar alegrias a seus filhos, aos amigos de seus filhos e a quem mais chegasse. Eram todos muito bem vindos.

 Dona Myriam é às vezes brava, principalmente quando rimos das suas peripécias. Mas depois da braveza ela ri junto. Ri de si mesma. Assim tem sido nesses últimos dias em que estando em Aracaju na casa de minha irmã mais velha aguardando o dia da cirurgia, entre uma reza e outra ela se ocupa despachada e mandona de arrumar e rearrumar sua bagagem, dispensando a moça que minha irmã contratou para ajudá-la, "porque faz tudo de qualquer jeito". Por conta disso ela e minha irmã brigam e depois acaba tudo numa risada.

A propósito de mãe, quero lembrar a todos que no sábado passado, dia 8 de novembro foi aniversário de 80 anos de uma senhora não sem razão, chamada Linda, mãe de Denise, uma leitora do "Blá, blá,blá..." que tem se revelado uma joia de amiga com seus retornos sensíveis ao que escrevo, particularmente ao que escrevo nesses tempos recentes sobre Dona Myriam.

Também quero parabenizar a todos que compareceram ontem, dia 9 à inesquecível feijoada do Instituto Viva Infância, regada ao som de bandas maravilhosas. Se você foi, com certeza comeu do bom e do melhor, encontrou um pessoal muito bacana e, principalmente, contribuiu para o sério e consequente trabalho do Viva Infância, cuja causa é a criança.

Agora sendo bem cafona para disfarçar a comoção, digo que meu coração se abre como uma bonita caixa artesanal para acolher com enorme gratidão todas as manifestações, na verdade inúmeras, de leitores, amigos e colegas que estão na boa torcida pelo sucesso da cirurgia de Dona Myriam, minha mãe. Cada pessoa que torce, é uma centelha de esperança e alegria no seio de toda a nossa família. E, crédula ou não, será lembrada nas orações de Dona Myriam, que é católica fervorosa e se prepara com serenidade para a cirurgia, segundo ela mesma diz, confiante na vontade de Deus. Mas vamos à história  esperando que minha mãe ao lê-la, dê boas risadas e só pra fazer uma gozação, possa dizer: "Quem conta um conto, aumenta um ponto". Ela adora ditos populares.

                                                                    MULHER  PREVENIDA

Estávamos no início da década de 70. Itaparica era uma bucólica cidadezinha cheia de casas de pacatos veranistas, protegidas pela sombra de mangueiras seculares. O mar, indo e vindo meio preguiçoso, batia na amurada erguida ao redor da cidade enquanto pessoas acorriam ao ancoradouro para receber os visitantes que chegavam no navio. Chegava-se a Itaparica de navio. Nem pensar em Ferry Boat. Passavam o veraneio na cidade de Itaparica famílias mais ou menos abastadas. Não era o caso de Dona Myriam e seus filhos. Mas felizmente, além do nome da cidadezinha, Itaparica era também o nome da Ilha com praias encantadoras, por desbravar, ainda desertas. Assim tomamos conhecimento de Ponta de Areia.

Àquela época, Dona Myriam já era escrivã de uma Vara de Família no Fórum, com muito esforço comprara um minúsculo apartamento de conjunto habitacional, e até sobrava uma graninha para proporcionar férias a seus filhos. Então alugou uma modestíssima casinha de veraneio em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica. Ponta de Areia pelo menos em passados anos recentes, tornou-se lugar muito aprazível, cheio de restaurantes de boa qualidade, iates de grande porte transportando turistas de posses, luxuosas casas de veraneio e um ir e vir de carros de passeios que chegam até a ilha pelo Ferry Boat. Mas não era essa Ponta de Areia que frequentávamos no início da década de 70.

A nossa Ponta de Areia era praticamente ainda uma aldeia de pescadores, com uma ou outra casa de veranista mais abastado. A casa que alugamos era muito rudimentar. Para vocês terem uma ideia, o banheiro não tinha água encanada. Para abastecê-lo precisávamos pegar água na cisterna. Naquela época os pescadores cediam suas casas aos veranistas, para terem uma renda complementar no verão. Então era tudo de uma simplicidade só. Tínhamos três quartos. Dona Myriam, festeira e generosa, gostava de levar para o veraneio os amigos, namorados das filhas e namorada do filho. Então era um festival de colchonetes com muito improviso para acomodar todo mundo. Mas nos divertíamos e como!!!

Naquele primeiro ano que fomos a Ponta de Areia, a diversão começou bem cedo, nos preparativos da viagem.O meu namorado, que adorava uma farra e era muito brincalhão, logo que começaram os preparativos, começou a atiçar a sogra com gozação, dizendo que queria ver o que ela ia aprontar daquela vez. E ela respondia sorrindo: "Rapaz, você não brinque comigo e me aguarde. Você, guloso do jeito que é vai ser o grande beneficiado. Mas prepare os músculos!"

 O lugarejo ficava quase vizinho à cidade de Itaparica e para lá chegarmos tomávamos o navio. Os saveiros iam pegar os passageiros no meio do mar. Obviamente, o navio não iria sair de sua rota para Itaparica, para deixar passageiros em lugarejos humildes como Ponta de Areia e Amoreira. Então descíamos do navio até os saveiros que nos aguardavam no meio do mar, para nos levarem até nosso destino. Descer do navio ao saveiro era um malabarismo somente possível graças ao cavalheirismo de braços fortes dos pescadores. Naquele tempo na ilha não tinha supermercado. Em lugares maiores podiam se encontrar alguns rudimentos de mercearias. Mas em Ponta de Areia tinha no máximo botequins.

 Dona Myriam cujos filhos estavam em férias escolares, tinha que ficar em Salvador durante a semana porque estava trabalhando. Iria a Ponta de Areia somente às sextas-feiras passar os fins de semana. Então precisava providenciar provisões que durassem pelo menos um mês. Transportar alimentos no navio sem braços vigorosos que pudessem aguentar a carga, era quase inviável. Mas para isso lá estava meu namorado assessorando sua sogra. Além de guloso, ele era o mais forte de toda a turma. À exceção do peixe que era comprado fresco na Ilha, tudo o mais tinha de vir de Salvador. Mas como embarcar no navio tantas provisões? Seriam volumes e volumes de frutas, legumes, verduras, cereais, conservas, ingredientes para sobremesa, material de limpeza, etc, etc. Se vocês se lembram do episódio da feijoada, já devem saber que Dona Myriam gosta de mesa farta. Ainda mais em veraneio. Não haveria sacolas que coubessem. Sem contar que com o tranco da viagem se rasgariam se perdendo o conteúdo.

No dia do embarque de navio que seria à tarde,  Dona Myriam diligente chamou a nós quatro e mais meu namorado e se mandou para o supermercado. Foi de táxi. E o táxi teve que ser um carro grande para transportar algo daquele tamanho. Era uma mala de couro enorme, num estilo bem nordestino. Quando vimos aquilo caímos na gargalhada. Dona Myriam, indiferente à gozação, fez as compras e acondicionou tudo lá. Na mala tinha muitos e muitos quilos. Dentro do supermercado aquilo já causou muito riso do pessoal que fazia compras. Onde já se viu? E Dona Myriam indiferente, na sua missão de fiel escudeira dos mantimentos do veraneio.

 Mala pronta, reforçada com barbantes e arames, Dona Myriam convocou meu irmão, meu namorado e mais alguns ajudantes do supermercado e lá se foram quilos e mais quilos de deliciosa comida para dentro do táxi.Dentro do táxi ela advertiu meu namorado que por ser o mais guloso e mais forte, era considerado o principal responsável pelo transporte da gerigonça. Ele, guloso e safado, aceitou com muito deboche o desafio. Principal responsável, mas quem disse que aguentava sozinho? Pediu auxílio à toda turma que embarcava conosco mas sem em momento algum abrir mão da empreitada. Comandava a operação e quando o cansaço ameaçava alguém, ele logo lembrava, lambendo os beiços, das delícias que nos aguardavam. Cozinhar, para nós não seria problema. Problema era o peso da gerigonça.

Com firme determinação a mala entrou no navio, dentro dele atravessou o oceano, desceu do navio para o saveiro, saiu do saveiro e a pé foi levada pra casa de veraneio em Ponta de Areia . Na descida do navio para o saveiro foram precisos muitos braços másculos. Na viagem a mala foi alvo de muita curiosidade. Todo mundo queria saber o que tinha dentro. Muitos não acreditavam quando se dizia que dentro havia mantimentos.

 Pois é. Quando a comitiva chefiada por meu namorado mala em punho adentrava a varanda da casa, houve um repentino titubeio, a mala se desequilibrou e o genro de Dona Myriam abandonou a comitiva e caiu no chão da varanda com o pé sangrando muito. Depois da heróica viagem, foi machucar o pé num caco de vidro logo na chegada. Seus companheiros aguentando o tranco conseguiram deixar a mala no chão e correram para segurá-lo. Ficaram meio preocupados.

 Felizmente o corte não era fundo, mas inspirava cuidados. E agora, o que fazer? Conhecedor da sogra que tinha, meu namorado logo sugeriu que abrissem a mala e a revirassem por todos os lados. Assim foi feito. Era muito mantimento se espalhando pela sala. Quando a comitiva já quase desanimava, alguém localizou lá bem no fundinho da mala um estojo de pronto-socorro. Sorriram aliviados. O genro, mesmo sentindo dor, comentou: "Dona Myriam jamais me faria voltar de navio a Salvador sem comer tudinho que trouxe naquela mala. O estojo foi a primeira coisa que comprou, bem na hora que vocês riam às gargalhadas". Dona Myriam, na hora que ler este escrito vai logo dizer algo assim: "Vocês até hoje riem da minha mania de carregar muita tralha. Não aprenderam que uma mulher prevenida sabe o que levar numa mala."
                                                                                       Marcia Myriam Gomes 

sábado, 1 de novembro de 2014

02/11/14                                    ADOÇÃO  PROVISÓRIA

Cara leitora, caro leitor,

Dando seguimento à série de crônicas dominicais intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", escrevo hoje sobre uma experiência de infância que vivi quando contava em torno de dez anos. Experiência que dá testemunho de quão generosa e solidária é Dona Myriam Urpia, minha mãe. No caso particular dessa história, generosa e solidária com aqueles socialmente desfavorecidos. Experiência que me ensinou que se os abastados se gratificam se doam pouco, muito pouco, do muito que possuem, às vezes alardeando aos quatro ventos e sem modéstia o seu feito, há os desabonados que em silêncio, com toda discrição, repartem com seus semelhantes o pouco que têm e que dão aos seus filhos, encarando isso como um mero dever de cidadão.


 Nesses últimos dias insisto em dizer a minha mãe que nós, seus filhos, cuidarmos dela com todo carinho e desvelo inclusive, para quem tem possibilidade, com disponibilidade financeira, nesse momento em que ela vai se submeter a uma cirurgia, é uma parte infinitesimalmente mínima, insignificante, diante de tudo que ela nos deu e nos ensinou. E fico surpresa, talvez um pouco triste, quando ela me responde que por nós não fez quase nada, não fez mais do que sua obrigação.

 Surpresa e um pouco triste, porque em meio às adversidades e quando os ventos também sopravam a favor, por nós ela fez muitíssimo. Fez de nós cidadãos atentos ao que nos demanda o outro e ao que podemos oferecer com generosidade. Particularmente as suas filhas, eu e minhas duas irmãs, mulheres que tiveram sua dose de sofrimento e que não foram nem poupadas nem mimadas pelas circunstâncias da vida, fazemos, cada uma do seu ofício,  um exercício de cuidar do outro de alguma forma. Creio que assim cuidamos de nós mesmas. Nosso irmão por sua vez é muito cuidadoso com sua família nuclear. Esposa, filhos e netos são tratados com muito carinho. E a nossa mãe mora com ele. Para que cuidado maior? Somos cidadãos de bem e minha mãe não se apropria devidamente desse enorme feito. Não avalia o quanto há de si no que somos hoje. E o que somos hoje, muito graças a ela, é o melhor que podemos ser. 

Então escrevo e publico para ela ler. Para que todos saibam com que prazer relembro e conto as histórias que vivi com ela. Escrevo para oferecer a uma mãe como Dona Myriam, um texto depoimento de como vejo o que ela é para nós. Como ela é para o mundo. Escrevo para dizer como faz diferença para o mundo inteiro minha mãe existir. Quem sabe se eu fosse escritora, faria com a beleza de um  texto bem escrito, a proeza de a alegrar com tantas coisas bonitas que tem feito pela vida. Mas sou só uma "escrevinhadora". Contudo, ainda que apenas "escrevinhando", espero lhe dar um pouquinho só de júbilo de se ver em público nos seus feitos. Como uma simples "escrevinhadora", espero dar ao leitor a oportunidade de conhecer Dona Myriam e, conhecendo-a, se enternecer com histórias construídas por ela, como essa "Adoção Provisória". Então vamos à história!!!
        
                                                             ADOÇÃO  PROVISÓRIA
Wilson era um garoto pobre, muito pobre e tinha apenas três anos quando saiu cedo do seu casebre com sua mãe Terezinha para catar restos de alimentos na Feira de São Joaquim, em Salvador. Estávamos na década de 60. Naquela época, talvez mais do que hoje, a Feira de São Joaquim, onde se vendiam desde objetos de caxixi vindos do Recôncavo Baiano, passando pelo fumo de rolo até as mais variadas espécies de legumes, frutas e verduras era um imenso e importante centro de abastecimento de toda a cidade. Então o que dela sobrava como resto, alimentava inúmeras famílias desfavorecidas que não tinham o que comer.

Provavelmente, muito provavelmente, Wilson não tinha um só brinquedo. E acompanhar sua mãe na cata do que sobrava da feira tinha algo lúdico. Ou não? Será que Wilson sabia já aos três anos, estar naquela atividade a importância do seu ganha pão? Será que ele ajudava a mãe na coleta das sobras ou só se entretinha assistindo-a na ingrata tarefa? Ninguém para responder. Será que ele tinha mesmo três anos? Ninguém para responder. Naquela manhã em que saiu cedo com sua mãe, Wilson foi aparecer sozinho e desamparado no Juizado de Menores e não veria nunca mais Terezinha. Não retornaria jamais a seu casebre. Conforme relato do guarda que o trouxe ao Juizado, Wilson, sozinho, em meio aos restos da feira, assistiu a sua mãe morrer. Terezinha faleceu (de fome?) de um mal súbito no meio da feira. Ninguém para socorrer e Wilson sozinho.

Chegou no Juizado trazido pelo guarda com algo de aterrador no seu rostinho. Depois de ouvir a sua  traumática história, uma auxiliar de cartório ajoelhou-se no chão e dele se aproximou. O garoto amuado com um pânico indescritível na fisionomia, recuou. Não chorava. Não dizia uma palavra. A auxiliar de cartório o tocou nos cabelos. Ele recuou. Ela percebeu no rosto do menininho um ar de quem procura. Então perguntou se ele queria água. Ele respondeu: "Telezinha caiu". Ela novamente se aproximou e o tomou no colo. Ele aceitou. Ela perguntou quem era "Telezinha". Ele respondeu de novo: "Telezinha caiu". A auxiliar de cartório providenciou algo para alimentar a criança e se informou com o guarda sobre mais detalhes da sua história. Tomou o menino nos braços e afirmou: "Telezinha é sua mãe, não é?" A criança balançou a cabeça afirmativamente e começou a chorar. Ela o acalentou sem saber ao certo o que lhe dizer. Àquela altura medidas judiciais estavam sendo tomadas para recolher a criança numa casa de menores.

A auxiliar de cartório foi até o juiz que era um sujeito muito humano e expressou seu desejo de levar o menino consigo para casa até que ele pudesse ser encaminhado para adoção. O procedimento não era muito regular, mas o juiz, compreendendo o drama daquela criança e quão danoso poderia ser para ela ser recolhida numa casa de menores, concordou com a auxiliar de cartório. Ela, infelizmente, não poderia adotá-lo. Tinha quatro filhos para manter com seu ínfimo salário e morava de favor num subsolo improvisado na casa de seus pais. A auxiliar de cartório ficou no Juizado cuidando do menino até que chegasse o fim do expediente e assim pudesse levá-lo para casa. Nesse intervalo conseguiu ouvir dele que se chamava "Uísso". Daí supôs que seu nome deveria ser Wilson e assim passou a chamá-lo.

Wilson foi muito bem recebido na casa da auxiliar de cartório. Seus quatro filhos adoraram ganhar um irmãozinho, ainda que soubessem que uma boca a mais na dificuldade em que viviam, significava comida de menos para cada qual. Não importava. Souberam pela mãe da dramática história da criança e o que mais queriam era acalentá-lo, proporcionar a Wilson todas as alegrias que supunham pudessem mitigar a dor da perda que sofrera. Logo improvisaram brinquedos para o garoto. Wilson ficou encantado com banho de chuveiro que não conhecia. Os quatro irmãos disputavam quem ia ter o privilégio de lhe dar banho. Era uma festa!! O garotinho se encantava com a espuma do sabonete que não queria parar de usar. Apaixonou-se por manteiga que chamava de "bantega". Wilson sorria, brincava. Mas quando vivia alguma pequena frustração precisava dizer: "Telezinha caiu."

Os filhos da auxiliar de cartório já compreendiam que quando aquela frase surgia, algo havia trazido a Wilson a recordação da sua grande dor. Então era hora de acarinhá-lo, acalentá-lo. Assim Wilson ia fazendo parte da família, adorou andar de ônibus e ficou deslumbrado com a praia onde interagia com outras crianças mais próximas em idade. Algum tempo passou e embora esperassem por isso, a auxiliar de cartório e seus quatro filhos ficaram muito tristes quando tiveram que se despedir de Wilson. Por iniciativa dela foi encontrado um casal sem filhos que encaminhou o processo de adoção da criança. Wilson passou a ser filho de advogados. Foi matriculado numa excelente escola particular. Sua primeira família adotiva estava triste, mas todos sabiam que o melhor estava sendo feito pelo garotinho. Na primeira noite em casa sem Wilson, quando se serviram de "bantega", os cinco choraram copiosamente.

Resolveram respeitar a decisão dos pais adotivos do garoto que preferiram que ele pelo menos por algum tempo fosse afastado do que pudesse lhe lembrar o passado. E tiveram que amargar a saudade de Wilson. Muito tempo se passou. A auxiliar de cartório tornou-se escrivã, comprou casa própria, alguns de seus filhos já frequentavam a universidade, quando um cartão postal dos Estados Unidos chegou para ela e família: "A tia Myriam, Sandra, Marcia, Lula e Lily, para lhes dizer da minha enorme gratidão e que continuo adorando manteiga".Wilson era um adolescente amado por seus pais bem sucedidos, estava fazendo uma viagem ao exterior e já não precisava esquecer seu passado.

Vocês já mais que adivinharam que aquela auxiliar de cartório era Dona Myriam Urpia, minha mãe. Pois é, leitores, minha mãe é esta. Minha mãe é assim.
                                                                                 Marcia Myriam Gomes.