sábado, 21 de fevereiro de 2015

22/02/2015                          O  LEGADO  PORTUGUÊS  DO  CARNAVAL.

Aninha, uma amiga querida e amante das Letras, me escreveu ontem dizendo que enviou a minha crônica de domingo passado intitulada "A Cena e os Bastidores", para alguns familiares e amigos. Embora convicta de que o envio não foi pelas qualidades literárias do texto  (quem pode escrever alguma coisa razoável em meio ao barulho ensurdecedor dos trios elétricos e ao mau humor que isto nos causa?), fiquei contente ao saber da notícia. Aninha está morando em Portugal e enquanto seu marido faz lá um pós-doutorado, ela deve estar explorando as riquezas literárias da terrinha. Aninha tem pós em Letras e escreve muito bem. Tenho recebido  alguns bonitos relatos da aventura portuguesa do casal. 

Fiquei contente de pensar que ela pode ter mostrado a alguns amigos portugueses o meu depoimento sobre o carnaval, expressando minha compaixão por aqueles que vivem os bastidores da festa. Assim, se os estrangeiros que aqui estiveram por ocasião da festa, só tiveram oportunidade de ver o lado da cena montada por A.C.M. Neto, pelo menos por lá por Portugal fica-se sabendo um pouco que nem tudo são flores como a imprensa divulga.  Não que eu goste que se fale mal da minha pátria. Não se trata disso. O que não gosto é que prolifere a propaganda enganosa e que políticos oportunistas tirem proveito disso.

 E tem mais. A propósito de notícias alvissareiras de Portugal, mais ou menos uma semana antes dos festejos de Momo, almocei com um amigo querido que também está indo por agora fazer o pós-doutorado na terra de Camões, Fernando Pessoa e Saramago. Esse amigo, muito gente boa, ofereceu a sua nova residência européia para eu me hospedar caso eu deseje passar uns dias por lá. Eu serei mesmo boba se não fizer bom uso dessa oferta fraternal tão generosa. Só pela companhia já valeria muito a pena. E que ele também aproveite da estada lá para falar dos bastidores do carnaval no Brasil.

Também no pós carnaval, a propósito do que escrevi na minha crônica, uma amiga me escreve da Espanha comentando que adorou "a máquina de fazer espanhóis". Se ela adorou, que digo eu?  O livro finalmente me chegou às mãos na quarta-feira de cinzas. Há mais ou menos um ano ele me foi recomendado. Sabem vocês dessas coisas que a gente tem anotadas para comprar e nunca compra? Assim foi. Finalmente, bem antes do carnaval fui à livraria. Mas quem disse que encontrei? Só para quando finalizassem as festas. O livro de valter hugo mãe ( nome artístico com letra minúscula bem a propósito) estava fadado a ser o legado português do carnaval.

 Escrito por Valter Hugo Lemos, que mesmo que perguntemos a Freud jamais ficaremos a saber a razão da troca do sobrenome Lemos por mãe, é um romance tocante, bem escrito, irônico, mas sobretudo de uma sensibilidade genial para um jovem escritor angolano de quarenta e poucos anos que parece saber sobre as dores, as casmurrices e a sabedoria dos velhos, até mesmo mais do que eles próprios. Um arguto conhecedor dos idosos no seu modo de estar no mundo. Conhecedor de pessoas idosas e da idosa Portugal da ditadura salazarista.

 O livro é a história de um barbeiro português de 84 anos que tendo ficado viúvo depois de um casamento feliz, é levado pelos seus filhos para viver num asilo para velhos. Numa narrativa surpreendente vemos esse personagem encarnar uma reflexão sobre o próprio passado entremeada por uma reflexão sobre o papel de Portugal no mundo. Tudo se passa enquanto o idoso vai explorando novas formas de encaminhar sua vida, quando se vê confrontado com a insólita situação na qual os filhos (impiedosos?) lhe colocaram. Tudo escrito com irreverentes tiradas linguísticas "saramagóides" e uma rara originalidade de imagens e metáforas.

O autor além de romancista é poeta, artista plástico e cantor. Ganhador do prêmio literário José Saramago, foi muito elogiado por este escritor e publicou na Quasi Edições obras de Caetano Veloso, Manoel de Barros e Ferreira Gullar. Parece gostar de bons escritores contemporâneos brasileiros. 

Pois é, amigos!! O carnaval com suas sandices quase me tira do sério. Me deixou uma crise de coluna que mal posso escrever. Mas o que seria de nós não fossem os legados? No pós carnaval, muito mais que dor na coluna que passa, ganhei coisas que não passam  com "a máquina de fazer espanhóis". 
                                                                                                  Marcia Gomes. 

domingo, 15 de fevereiro de 2015

15/02/2015           A  CENA  E  OS  BASTIDORES.                            

E o carnaval chegou. Se não me engano, o primeiro que passo em Salvador depois daquele passado aqui em 1992, quando fazia uns seis meses que retornei da minha longa permanência em São Paulo que durou cerca de 10 anos. Passei o carnaval de 92 aqui nesta cidade que naquela ocasião era experienciada como um exílio. Voltei de São Paulo para cá por contingências de minha vida pessoal e, de certa forma, contra minha vontade. Voltei com um lado meu querendo ter permanecido em São Paulo, cidade que adotei como terra mãe. Antes que estivesse refeita desse doloroso luto, eis que chega o carnaval.

Naqueles dias de muita dor de amor, entre outras coisas, me sustentava escrevendo num diário que ainda hoje tenho comigo. Lá posso ler o que escrevi no dia 13 de fevereiro de 1992. Hoje também é 13 de fevereiro. Coincidência? Coisas do inconsciente? Quem vai saber? Só sei que tenho comigo esta página aberta: "...a tarde está caindo. A televisão repete o desfilar compulsivo dos adeptos da folia. Toca uma música bonita que pra variar fala da baianidade e suas múltiplas feições. Creio que todo esse clima de baianidade me impede o fugir do fato concreto que é estar aqui.

 Tenho duas crianças (sobrinhos) para cuidar até a quarta-feira de cinzas. Vou levá-las para ver o carnaval, morrendo de medo de que se percam na multidão. Vamos ao carnaval na companhia de um casal de amigos. ...A multidão se comprimia em torno dos trios elétricos, indiferente às minhas dores, também às suas próprias. De repente vejo-me também assim, concedendo uma trégua às questões existenciais.

 Predominam os ritmos afros. A famosa banda do Olodum e seus seguidores, muitos, entoa uma canção dolente com uma temática épica. Na mesma letra misturam-se feitos de Lampião e Maria Bonita, de faraós do Egito e caboclos índios. É muito engraçado. O povo todo sabe de cor a letra e parece jamais ter se intrigado com seu significado. É como se aquelas palavras se esvaziassem de todo significado e fossem recebidas apenas como meros efeitos sonoros.

 Cada um é coreógrafo de si mesmo e com tamanha criatividade, que raramente um gesto se repete. Às vezes o ritmo é frenético e os dançarinos sobem e descem numa sincronia que me faz suspeitar de que sejam, como marionetes, manipulados por uma força invisível que lhes rouba as almas. Eu também danço, pulo atrás do trio elétrico e sinto-me desalmada. Sou um corpo vibrátil que se expande, se dilata e que faz desenhos no ar como se buscasse o correspondente visual da experiência sonora. Não cabem pensamentos. Somos uma caixa de ressonância de ritmos que os devolve em gestos.

 Às vezes paro para observar, e sou tomada por uma ternura infinita por esse povo sábio que sabiamente desafia o passado e o futuro, e vive esse prazer do agora. Em cada cara um gozo. Os casais se esfregam como cobras enroscadas. Um cheiro persistente de suor se mistura à maresia e às vezes há o exalar de perfume barato. À exceção dos componentes dos blocos, raramente vê-se alguém fantasiado. Vestidos mal, como podem, dançam tudo que sabem. E sabem muito. Esse carnaval que assisto aqui na Barra, não é nem de longe o que come solto no centro da cidade. Devido à imensa concentração de gente, a prefeitura resolveu estendê-lo aos bairros".

Depois de ter escrito esse texto com 39 anos incompletos, passei todos os carnavais fora de Salvador. Com exceção de um curto período em que morei no bairro da Federação, depois que voltei de São Paulo, sempre vivi no bairro da Barra e proximidades. Então para não ver coisas que doessem à minha visão e para não escutar coisas que doessem aos meus ouvidos, sempre viajei para ficar bem longe da folia.

 Agora, em 2015, desejei muito ir a Maceió visitar minha mãe, mas não foi possível. Recebi o convite generoso de uma amiga para passar o carnaval no seu sítio. Mas não foi possível. Também desejei ir a uma praia deserta ou à Europa visitar a casa-museu de Freud. Mas não foi possível. Confrontada com as impossibilidades (?) me restou ficar no Morro do Gato, dentro da folia. E aqui estou no dia 13 de fevereiro, além de tudo, uma sexta-feira. Não sou supersticiosa. Nem um pouco. Gosto de atentar para as coincidências.

Dentro do meu apartamento, munida de livros e de filmes, me preparei para o confinamento. Comprei para ler "A Máquina de Fazer Espanhóis". Mas não chegou a tempo na Saraiva. Parece que por alguma razão, me coloquei no lugar de viver um carnaval onde o enredo da minha escola de samba se chama "Impossível". Lembro da subversão à lógica aristotélica feita por Lacan. Penso nas fórmulas da sexuação. Penso no "Real" e na Física Quântica. Lembro de uma conversa recente muito interessante que tive com um amigo. Confrontada com o "Impossível", essa coisa sobre a qual não há palavras para dizer, me resta viver o carnaval que me resta.

Desde ontem, quinta-feira, não escapou à minha observação o cenário dos bastidores quando olhava da minha janela a rua Sabino Silva. O que se vê nos bastidores do carnaval é muito triste. Um monte de vendedores ambulantes comprimidos para dormir dentro de barracas improvisadas. Daqui de cima posso acompanhar como é para eles o amanhecer, depois de uma noite com batuques ensurdecedores na Avenida Oceânica. Vejo agora, deitados em papelões de caixotes, com o sol inclemente lhes batendo no rosto, oito adultos, um adolescente e uma criança enfileirados dormindo no chão. Devem ser todos da mesma família. Mas quem disse que têm direito ao sono? Logo chega um caminhão de limpeza que com todo o barulho lança jatos d'água sobre a rua mal cheirosa, indiferente  à necessidade dos ambulantes a esse pedacinho de sono matinal.

Despertos a contragosto, alguns vão fazer suas necessidades nos banheiros químicos, outros gritam, xingam, protestam inutilmente contra os jatos d'água e o barulho do caminhão. Um deles amarra um saco enorme cheio de lixo onde predominam latas de cerveja. Nas outras barracas, parecendo não terem tirado sequer um cochilo, homens e mulheres carregam caixas de bebidas, ovos e ingredientes para preparar as guloseimas que vão vender mais tarde. É um vai e vem de arrumações e preparos, entre botijões de gás, fogões e grandes panelas. Não se divertem. Trabalham duro para ganhar uns tostões a mais e estão tensos sob as condições adversas em que se abrigam (não tomam banho? por quantos dias?). Discutem entre si agressivos, falando alto. 


A moça que colabora comigo prestando serviços domésticos não pode vir para o trabalho. O tal "Grampinho", ACM Neto, preparou com capricho um carnaval para inglês ver. Pessoas de baixa renda que precisam trabalhar na Barra e imediações não têm como se locomover. O percurso dos ônibus foi desviado de tal maneira, que além de terem que passar horas no ponto, elas precisam descer no Vale do Canela e caminhar até aqui. Essa é a situação pela qual passam minha empregada doméstica e os funcionários que trabalham como porteiros e vigias de prédios.

Entediada com as fadigas do repouso e precisando sair para comprar mantimentos, telefonei a uma companhia de táxi pedindo que viessem me pegar aqui. Responderam que não estão trabalhando nos trechos do circuito do carnaval. Então desci a minha rua em busca de um táxi. O policial me informa que os táxis não podem transitar na região. Digo que sou moradora, mostro meu adesivo de identificação e nenhuma argumentação adianta. Fico sem poder tomar um táxi. Então os moradores das imediações do carnaval que não têm carro, se tiverem uma emergência e precisarem sair, morrem? Gostaria de fazer esta pergunta a ACM Neto. 

Penso na cena que descrevi do meio do carnaval em 1992. Comparo com o que assisto hoje dos bastidores. Amanhã, no sábado, se eu tiver paciência, irei assistir à folia em um camarote. Provavelmente, não será diferente 23 anos depois. Provavelmente prevalecerá o clima de baianidade arquitetada para inglês ver. Afinal são 30 anos do Axé Music. Provavelmente vai ter Ivete, Margarete, Chiclete. Não é difícil rimar em meio a muita festa, muita alegria, tudo muito bem arrumado. Afinal é uma cena. Uma encenação. Mas os bastidores não mentem.

Hoje já é domingo. A experiência com o camarote foi exatamente como eu previa. Uma beleza!! Globeleza!!  O meu acompanhante foi um perfeito cavalheiro. Decidimos que o melhor era sair daqui de casa a pé a caminho da folia. Na ida, como era começo de fim de tarde a multidão era ainda amena. Na volta, quando retornávamos para casa, estava tocando o trio da Timbalada e aqueles que pulavam na pipoca subiam e desciam numa animação frenética. Meu acompanhante então pediu a uns policiais disciplinadamente enfileirados para nos escoltarem até a entrada de minha rua. Um deles nos atendeu com toda gentileza. Carnaval para inglês ver. De dentro do camarote quando o trio de Ivete Sangalo apontou na avenida, ela, toda malhada com uma fantasia muito bonita, homens e mulheres, mais jovens do que velhos, todos bem vestidos com um copo de cerveja na mão, em delírio gritavam, cantavam, dançavam, tiravam fotos com seus celulares de última geração. Não levei um empurrão sequer. Deliravam, mas educados. Carnaval para inglês ver.

Hoje, assim que acordei olhei da janela a rua Sabino Silva. Choveu durante a madrugada e os vendedores ambulantes não puderam dormir. Suas camas, papelões de caixotes, estavam sobre a grama encharcados e as barracas de trabalho tiveram que ser desmontadas. Estão agora tentando reerguê-las, desta vez, silenciosos. Os bastidores não mentem.
                                                          Marcia Gomes. 
                                                                                          

sábado, 7 de fevereiro de 2015

08/02/2015                              AURORA

Cinco horas da manhã de uma quinta-feira. Espio a Sabino Silva da minha varanda. A rua está quase por inteiro entregue aos sinais do amanhecer, ainda abandonada pelo ruído dos carros que se ausentam. Os toldos armados para o carnaval, ainda destituídos da sua função, parecem construções fantasmagóricas (fantasmáticas?) que querem somente enfeiar a paisagem. O céu é de um negror se abrindo aos poucos para nesgas de cinza, que, com mais velocidade, ganham tons róseos, enquanto o negro vai também com velocidade se azulando.

 Há nos prédios um silêncio sepulcral enquanto que o fundo azul-rosa do céu parece ser anunciado pelo canto de um galo solitário. Os passarinhos logo passam a acompanhá-lo numa orquestra discreta de gorjeios, que começa com um acorde aqui, outro ali, para logo em seguida, num crescendo, se fazer numa sinfonia célere, enquanto que ao fundo, o canto do galo vai esmaecendo. Então o céu já se transformou num clarão de amarelo de fundo azul, enquanto a orquestra perde um pouco em harmonia com o ruído eventual de carros passando.

 A passagem da noite para o dia é uma mudança gradual (fading in e fading out ) em que rápido se intercala o que é figura, e o que é fundo. Às vezes o ruído de um carro passando, dá a ilusão de uma onda do mar que furiosa se arrebenta para em seguida silenciar, se dissolvendo na areia da praia. Pura ilusão. Daqui do meu prédio não vejo o mar. De repente, o silêncio se faz e o galo se pronuncia de novo, em seguidos cacarejos. Entretanto seu canto é logo de novo sufocado pelo ruído dos carros que vai se fazendo mais frequente.

 O sol, indeciso ainda quanto a com que pujança quer se manifestar, se faz presente como um clarão impressionístico de contornos disformes por trás de um prédio, e sua força já diz sem titubeios que a transição já se fez. Então posso apagar a lâmpada. Definitivamente já é dia. Já é possível ver enfileirados um carro atrás do outro na rua. Quando de vez em quando o ruído de carros se faz fundo, os passarinhos comparecem não sei se com gorjeios, não sei se com gemidos, em protesto contra a invasão sonora da vida urbana que vai se impondo. O sol, agora um tanto mais decidido, brilha intenso e já me ofusca a visão, embora haja no céu um fundo nublado de tom plúmbeo, deixando pairar em mim a dúvida quanto ao que vai prevalecer. É luz? É sombra?

Rapidamente o clarão impressionístico ganha contornos cada vez mais ofuscantes de raios. O sol se decidiu. E a luz prevalece sobre a sombra. Agora que está decidido que teremos um dia de sol, vejo pessoas com a aparência de serem de baixo poder aquisitivo caminhando na rua. Provavelmente são trabalhadores dirigindo-se aos locais onde prestam serviço. Penso nestas pessoas que daqui do meu prédio não dá para ver se são jovens ou idosas. Me pergunto, para aquelas que podem ser idosas beirando a aposentadoria, como serão as vicissitudes do amor e da sexualidade. Agora que indiscutivelmente me chegam os claros sinais do envelhecimento, me vejo tomada por esse tema. Como é exercer o amor e a sexualidade num tempo de madurez. Que peculiaridade pode ter isto em pessoas desprivilegiadas sob o aspecto sócio-econômico?

 Escutei esta semana de uma manicure sexagenária de classe média baixa que tem um parceiro dez anos mais velho, que numa mudança gradual e natural como da noite para o dia, sua relação com o marido foi se tornando cada vez mais terna, cada vez menos sexual. Avalia que se amam mais, se acariciam mais, se beijam mais e sobretudo se aceitam mais, agora que está decidido pelas contingências, que não terão mais sexo no sentido estrito. Segundo ela diz, não planejaram isso, não discutiram a relação num papo complicado avaliando o que fazer com isso. Simplesmente aconteceu. Foi acontecendo talvez como um intercalar de figura e fundo, de fading in e fading out, como a substituição da orquestra de passarinhos pelo barulho urbano dos carros, como a substituição do clarão vacilante pelos raios brilhantes e decididos do sol.

Talvez pela primeira vez, escutei aquela mulher sem ideias preconcebidas. Estávamos num salão de beleza onde eu fui dar um trato nas unhas. Escutei genuinamente querendo aprender com ela. Escutei sem me perguntar por que o seu parceiro não lança mão de medicação para impotência. Vai ver tem risco de problema cardíaco. Escutei sem me perguntar por que ela não muda de parceiro para obter também uma satisfação sexual. Escutei admirando a sua coragem de se expor e a sua generosidade em partilhar comigo, também sexagenária, a sua experiência como sendo um modo de estar no mundo, entre outros, nem melhores, nem piores.

 Escutei acolhendo que para ela a escolha que fez é para sua subjetividade a melhor saída, não importa o que sobre isso esteja dito nos compêndios. Quando a gente alcança a madurez, muitas vezes, escutar ao vivo a experiência vale muito mais do que o que está escrito nos compêndios. Escutei, sobretudo, compreendendo e respeitando que a sexualidade vivida assim, pode ser uma alternativa de preservação de uma relação de amor. Escutei, sobretudo, não querendo atribuir a situação em que vivem, a uma inabilidade do parceiro. Vi que é uma situação dos dois, que não pesa mais sobre um do que sobre o outro.

Escutei suportando a "ferida narcísica" de começar a me dar conta de que também para nós mulheres, às vezes até primeiro do que para nossos parceiros, pode haver, sim, com o início do envelhecimento, um arrefecimento da libido. Escutei refletindo sobre mim mesma e consegui admitir que hoje em dia, mesmo quando estou na companhia de um homem muito interessante, já não recorro aos expedientes de sedução que usava no passado, às vezes quase numa atuação histérica. E não recorro, porque de certa forma prevalece um certo pudor aliado à maior vontade da troca, da partilha, do companheirismo, ainda que o desejo sexual continue ativo.

 Demorei para chegar a essa constatação. Dizem os ginecologistas que as cheiinhas de corpo como eu têm a vantagem de só muito tardiamente precisarem de reposição hormonal. Eu nunca fiz a tal reposição, nem vou fazer. Penso que ter sintomas de menopausa ou não ter, passa muito pelo lugar como mulher que se ocupa na cultura, independente de se ser cheiinha ou não. Sabemos que a reposição hormonal aumenta o risco do câncer de mama, tanto quanto o uso da "azulzinha" nos homens aumenta o risco de problemas cardio-vasculares. Sabemos também em contrapartida que o amor, a ternura, o afeto e o cuidado fazem muito bem ao coração.

 Penso agora que a sexualidade no idoso precisa ser vivida com as saídas singulares de acordo com a subjetividade de cada um, sem receitas prontas. Ainda outro dia, eu e um amigo, comentávamos com uma certa ironia sobre um conhecido comum muito sedutor no mau sentido, que está muito para além dos 60, e que se veste como um "garotão". Talvez esse arremedo de Don Juan se beneficiasse de uma conversa com a mulher que eu encontrei no salão de beleza. A conversa me fez tão bem e não é à toa que comecei esse texto tentando descrever a transição da noite para o dia e tentando fazer uma analogia com as mudanças graduais que acontecem na sexualidade dos que começam a envelhecer. Só me dei conta quando comecei a escrever, mas à saída do salão perguntei o nome da minha companheira de conversa. Ela me disse que se chama Aurora.
                                                    Marcia Gomes.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

01/02/2015                       A  INFELICIDADE  DA  OSTRA

Noite de quinta feira. Missão cumprida, arrumo minhas tralhas para saindo do trabalho pegar o táxi que me conduzirá até em casa. Mas entre eu e o táxi, há a espera. E enquanto espero, haverá o papo amoroso. Um homem mais jovem do que eu, pelo menos uns 20 anos, que eu chamo de "Seu" nem sei mesmo por que. Acho que pra demonstrar o respeito, a quase reverência, que lhe tenho. Sim, o papo será amoroso.

 Em relação a homens jovens, quando se tem 62 anos que passaram rápido, a palavra "amor" também passou rápido e veio atropelando sentidos. Passou por aquela coisa erótica de fazer tremer o joelho, atravessou cordilheiras das representações variantes dadas pelas ebulições dos hormônios, e veio cair sossegada numa linear e uniforme planície sem arroubos, de puro respeito e quase reverência. Então posso dizer sem medo que sinto amor por "Seu" J., sem causar atentado ao pudor de senhor ninguém.

 Se ele fosse um sessentão como eu sou uma sessentona, aí não. Não me arriscaria a dizer, pelo menos em público. Deixaria para dizer no reduto indevassável da alcova. É. Para os sessentões, nos redutos indevassáveis das alcovas, a palavra "amor" pode sair do sossego da planície e como um alpinista se arriscar de novo a escarpar cordilheiras. O amor, nos tempos da madurez, não tem porque perder de vez em quando seus arroubos de erotismo. Só nos resta ter cuidado para não traumatizar ainda mais a coluna (risos). Quanto ao coração, este, de tantos traumas pelos quais provavelmente passou, deve estar já um tanto imunizado. 

J. é aquele rapaz mesmo. O mesmo rapaz que de dia estuda filosofia e à noite trabalha como vigia do prédio onde tenho consultório. Aquele que monta enormes quebra-cabeças e conversou bonito comigo sobre Manoel de Barros e Ariano Suassuna. Aquele a quem já dediquei uma crônica domingueira.

 Antes de descer o elevador, enquanto arrumava as tralhas, pensei que provavelmente naquela noite encontraria com ele. Então senti-me constrangida com os efeitos colaterais das medicações para refluxo esofágico que nesses últimos tempos vêm me dificultando articular normalmente a fala. Pensei com um certo desconforto que essa dificuldade poderia me impedir de deixar o papo fluir livremente.

 Pensei que seria uma pena se os arroubos do erotismo reservados para um  sessentão, viessem a ceder a esses acidentes gástricos. Como posso me aproximar de um sessentão interessante com esses acidentes gástricos me dificultando falar? Então resolvo por enquanto não pensar na perspectiva de nenhum sessentão para não rebaixar minha auto- estima. Penso em levar emprestados a J. mais alguns volumes de Manoel de Barros e imagino o que ele me contará sobre em que pé está sua leitura da biografia de Nietzsche.


Quando o encontrei, veio logo sorrindo em minha direção e se ofereceu para chamar um táxi pelo telefone. Digo que já chamei, que vai demorar um pouco, por isso teremos algum tempo para conversar. Digo que na próxima vez trago os novos volumes de Manoel de Barros. Como sempre me chamando de doutora, diz que não tem pressa, que eu traga quando me lembrar.


Em seguida ele logo me perguntou sobre o meu novo aparelho de DVD. Pergunta o que vou fazer no carnaval. Quando lhe digo que vou passar sozinha em casa e que moro dentro da festa que não gosto, promete que vai gravar vários filmes bons para me divertir. Agradeço comovida com o gesto. Já me presenteou com alguns filmes e sei que temos o mesmo gosto cinematográfico. Costumamos preferir diretores europeus, embora também apreciemos um bom americano.

 Então entabulamos um papo sobre música clássica. Me disse que gosta de Chopin, mas prefere Bach por ser mais angustiado. Comentei com ele que assisti no canal "Arte 1" um documentário sobre as cartas de Van Gogh a seu irmão Théo. Diz que assistiu também e ficou impressionado com a densidade dramática do pintor. Aí ele compara Van Gogh a Nietzsche e a Dostoievsky. Todos muito bons, todos muito angustiados. Noto que "Seu" J. está tentando me falar sobre o que passei o dia inteiro escutando: a angústia.

 Mas confissões sobre sua vida privada sei que não fará. Temos de certa forma uma relação profissional, por trabalharmos no mesmo prédio e ele sabe ser discreto. O máximo que já me falou de pessoal é que mora sozinho, faz sua própria comida e tem uma namorada que lhe deu um quebra-cabeça de presente. Então me tranquilizo constatando que meu dia de trabalho de fato se encerrou. Com certeza o que J. me dirá será algo da ordem da sensibilidade poética.  Aguardo, deixando com ele a iniciativa de falar, tomada pelos efeitos constrangedores do meu refluxo esofágico.

Então J. fala longamente da angústia como a força que engendra a produção artística. Seu discurso é belo e bem articulado. Fala com entusiasmo, gesticula com ênfase e tem um olhar melancólico. Penso recorrentemente no que faz desse homem um vigia noturno ao invés de um professor, um artista, um profissional liberal. Sinto uma ternura desmedida por ele e quase um ódio das condições que produzem e reproduzem a desigualdade social. Condições complexas, multifacetadas que interpenetram fatores subjetivos e sócio-econômicos, numa rede intrincada que é preciso erradicar a partir da raiz. Ele continua falando e menciona Rubem Alves como um pensador, um educador, um poeta de ideias inovadoras movidas por uma implacável angústia existencial.

Menciona que Rubem Alves costumava dizer que ostras felizes não produzem pérolas. Explica que a metáfora se apoia no fato verdadeiro de que a ostra só produz a pérola para se defender de uma doença mortífera que a acomete. E então se refere ao artista que produz o belo como uma ostra infeliz. Lamentavelmente meu táxi chega. A caminho de casa, num rompante narcísico de encantamento com a riqueza daquele homem pobre, beiro quase bendizer sua infelicidade de ostra. Chego à conclusão de que sim, um sessentão talvez seja bem vindo à minha vida. E por que não até um setentão? Mas sem uma alegria frívola que o faça prescindir da pérola. E eu sem o desaviso inconsequente de jogá-la aos porcos. Então entro na minha casa solitária.
                                                                                     Marcia Gomes.