domingo, 15 de fevereiro de 2015

15/02/2015           A  CENA  E  OS  BASTIDORES.                            

E o carnaval chegou. Se não me engano, o primeiro que passo em Salvador depois daquele passado aqui em 1992, quando fazia uns seis meses que retornei da minha longa permanência em São Paulo que durou cerca de 10 anos. Passei o carnaval de 92 aqui nesta cidade que naquela ocasião era experienciada como um exílio. Voltei de São Paulo para cá por contingências de minha vida pessoal e, de certa forma, contra minha vontade. Voltei com um lado meu querendo ter permanecido em São Paulo, cidade que adotei como terra mãe. Antes que estivesse refeita desse doloroso luto, eis que chega o carnaval.

Naqueles dias de muita dor de amor, entre outras coisas, me sustentava escrevendo num diário que ainda hoje tenho comigo. Lá posso ler o que escrevi no dia 13 de fevereiro de 1992. Hoje também é 13 de fevereiro. Coincidência? Coisas do inconsciente? Quem vai saber? Só sei que tenho comigo esta página aberta: "...a tarde está caindo. A televisão repete o desfilar compulsivo dos adeptos da folia. Toca uma música bonita que pra variar fala da baianidade e suas múltiplas feições. Creio que todo esse clima de baianidade me impede o fugir do fato concreto que é estar aqui.

 Tenho duas crianças (sobrinhos) para cuidar até a quarta-feira de cinzas. Vou levá-las para ver o carnaval, morrendo de medo de que se percam na multidão. Vamos ao carnaval na companhia de um casal de amigos. ...A multidão se comprimia em torno dos trios elétricos, indiferente às minhas dores, também às suas próprias. De repente vejo-me também assim, concedendo uma trégua às questões existenciais.

 Predominam os ritmos afros. A famosa banda do Olodum e seus seguidores, muitos, entoa uma canção dolente com uma temática épica. Na mesma letra misturam-se feitos de Lampião e Maria Bonita, de faraós do Egito e caboclos índios. É muito engraçado. O povo todo sabe de cor a letra e parece jamais ter se intrigado com seu significado. É como se aquelas palavras se esvaziassem de todo significado e fossem recebidas apenas como meros efeitos sonoros.

 Cada um é coreógrafo de si mesmo e com tamanha criatividade, que raramente um gesto se repete. Às vezes o ritmo é frenético e os dançarinos sobem e descem numa sincronia que me faz suspeitar de que sejam, como marionetes, manipulados por uma força invisível que lhes rouba as almas. Eu também danço, pulo atrás do trio elétrico e sinto-me desalmada. Sou um corpo vibrátil que se expande, se dilata e que faz desenhos no ar como se buscasse o correspondente visual da experiência sonora. Não cabem pensamentos. Somos uma caixa de ressonância de ritmos que os devolve em gestos.

 Às vezes paro para observar, e sou tomada por uma ternura infinita por esse povo sábio que sabiamente desafia o passado e o futuro, e vive esse prazer do agora. Em cada cara um gozo. Os casais se esfregam como cobras enroscadas. Um cheiro persistente de suor se mistura à maresia e às vezes há o exalar de perfume barato. À exceção dos componentes dos blocos, raramente vê-se alguém fantasiado. Vestidos mal, como podem, dançam tudo que sabem. E sabem muito. Esse carnaval que assisto aqui na Barra, não é nem de longe o que come solto no centro da cidade. Devido à imensa concentração de gente, a prefeitura resolveu estendê-lo aos bairros".

Depois de ter escrito esse texto com 39 anos incompletos, passei todos os carnavais fora de Salvador. Com exceção de um curto período em que morei no bairro da Federação, depois que voltei de São Paulo, sempre vivi no bairro da Barra e proximidades. Então para não ver coisas que doessem à minha visão e para não escutar coisas que doessem aos meus ouvidos, sempre viajei para ficar bem longe da folia.

 Agora, em 2015, desejei muito ir a Maceió visitar minha mãe, mas não foi possível. Recebi o convite generoso de uma amiga para passar o carnaval no seu sítio. Mas não foi possível. Também desejei ir a uma praia deserta ou à Europa visitar a casa-museu de Freud. Mas não foi possível. Confrontada com as impossibilidades (?) me restou ficar no Morro do Gato, dentro da folia. E aqui estou no dia 13 de fevereiro, além de tudo, uma sexta-feira. Não sou supersticiosa. Nem um pouco. Gosto de atentar para as coincidências.

Dentro do meu apartamento, munida de livros e de filmes, me preparei para o confinamento. Comprei para ler "A Máquina de Fazer Espanhóis". Mas não chegou a tempo na Saraiva. Parece que por alguma razão, me coloquei no lugar de viver um carnaval onde o enredo da minha escola de samba se chama "Impossível". Lembro da subversão à lógica aristotélica feita por Lacan. Penso nas fórmulas da sexuação. Penso no "Real" e na Física Quântica. Lembro de uma conversa recente muito interessante que tive com um amigo. Confrontada com o "Impossível", essa coisa sobre a qual não há palavras para dizer, me resta viver o carnaval que me resta.

Desde ontem, quinta-feira, não escapou à minha observação o cenário dos bastidores quando olhava da minha janela a rua Sabino Silva. O que se vê nos bastidores do carnaval é muito triste. Um monte de vendedores ambulantes comprimidos para dormir dentro de barracas improvisadas. Daqui de cima posso acompanhar como é para eles o amanhecer, depois de uma noite com batuques ensurdecedores na Avenida Oceânica. Vejo agora, deitados em papelões de caixotes, com o sol inclemente lhes batendo no rosto, oito adultos, um adolescente e uma criança enfileirados dormindo no chão. Devem ser todos da mesma família. Mas quem disse que têm direito ao sono? Logo chega um caminhão de limpeza que com todo o barulho lança jatos d'água sobre a rua mal cheirosa, indiferente  à necessidade dos ambulantes a esse pedacinho de sono matinal.

Despertos a contragosto, alguns vão fazer suas necessidades nos banheiros químicos, outros gritam, xingam, protestam inutilmente contra os jatos d'água e o barulho do caminhão. Um deles amarra um saco enorme cheio de lixo onde predominam latas de cerveja. Nas outras barracas, parecendo não terem tirado sequer um cochilo, homens e mulheres carregam caixas de bebidas, ovos e ingredientes para preparar as guloseimas que vão vender mais tarde. É um vai e vem de arrumações e preparos, entre botijões de gás, fogões e grandes panelas. Não se divertem. Trabalham duro para ganhar uns tostões a mais e estão tensos sob as condições adversas em que se abrigam (não tomam banho? por quantos dias?). Discutem entre si agressivos, falando alto. 


A moça que colabora comigo prestando serviços domésticos não pode vir para o trabalho. O tal "Grampinho", ACM Neto, preparou com capricho um carnaval para inglês ver. Pessoas de baixa renda que precisam trabalhar na Barra e imediações não têm como se locomover. O percurso dos ônibus foi desviado de tal maneira, que além de terem que passar horas no ponto, elas precisam descer no Vale do Canela e caminhar até aqui. Essa é a situação pela qual passam minha empregada doméstica e os funcionários que trabalham como porteiros e vigias de prédios.

Entediada com as fadigas do repouso e precisando sair para comprar mantimentos, telefonei a uma companhia de táxi pedindo que viessem me pegar aqui. Responderam que não estão trabalhando nos trechos do circuito do carnaval. Então desci a minha rua em busca de um táxi. O policial me informa que os táxis não podem transitar na região. Digo que sou moradora, mostro meu adesivo de identificação e nenhuma argumentação adianta. Fico sem poder tomar um táxi. Então os moradores das imediações do carnaval que não têm carro, se tiverem uma emergência e precisarem sair, morrem? Gostaria de fazer esta pergunta a ACM Neto. 

Penso na cena que descrevi do meio do carnaval em 1992. Comparo com o que assisto hoje dos bastidores. Amanhã, no sábado, se eu tiver paciência, irei assistir à folia em um camarote. Provavelmente, não será diferente 23 anos depois. Provavelmente prevalecerá o clima de baianidade arquitetada para inglês ver. Afinal são 30 anos do Axé Music. Provavelmente vai ter Ivete, Margarete, Chiclete. Não é difícil rimar em meio a muita festa, muita alegria, tudo muito bem arrumado. Afinal é uma cena. Uma encenação. Mas os bastidores não mentem.

Hoje já é domingo. A experiência com o camarote foi exatamente como eu previa. Uma beleza!! Globeleza!!  O meu acompanhante foi um perfeito cavalheiro. Decidimos que o melhor era sair daqui de casa a pé a caminho da folia. Na ida, como era começo de fim de tarde a multidão era ainda amena. Na volta, quando retornávamos para casa, estava tocando o trio da Timbalada e aqueles que pulavam na pipoca subiam e desciam numa animação frenética. Meu acompanhante então pediu a uns policiais disciplinadamente enfileirados para nos escoltarem até a entrada de minha rua. Um deles nos atendeu com toda gentileza. Carnaval para inglês ver. De dentro do camarote quando o trio de Ivete Sangalo apontou na avenida, ela, toda malhada com uma fantasia muito bonita, homens e mulheres, mais jovens do que velhos, todos bem vestidos com um copo de cerveja na mão, em delírio gritavam, cantavam, dançavam, tiravam fotos com seus celulares de última geração. Não levei um empurrão sequer. Deliravam, mas educados. Carnaval para inglês ver.

Hoje, assim que acordei olhei da janela a rua Sabino Silva. Choveu durante a madrugada e os vendedores ambulantes não puderam dormir. Suas camas, papelões de caixotes, estavam sobre a grama encharcados e as barracas de trabalho tiveram que ser desmontadas. Estão agora tentando reerguê-las, desta vez, silenciosos. Os bastidores não mentem.
                                                          Marcia Gomes. 
                                                                                          

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