quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro...."e...."Ernesto, meu rapaz!"

27/10/13

Caro(a)  leitor (a),

Creio que todos vocês ficaram sabendo que recentemente um pretenso assaltante, quebrou ao meio a armação dos meus óculos. Por isso, fui ainda esta semana à ótica providenciar óculos novos, e me recordei deste texto escrito em 2002 em CONVERSA  MARCIANA. O texto é uma homenagem póstuma a Joaquim Leal Gomes, meu pai.

Vocês devem saber que a frase "Ernesto, meu rapaz!" circulou muito na mídia há anos atrás na propaganda da Ótica Ernesto, senão a mais antiga, uma das mais antigas óticas de Salvador. Comecei a usar óculos com 5 anos de idade e naquela época, década de 50 ainda, Sr. Ernesto estava instalado na Avenida Sete, na altura da Praça da Piedade.

Longe de mim querer fazer propaganda de óticas, ainda mais nos meus escritos. Mas sempre vou lá por tradição. Para matar as saudades de meu tão querido pai. A diferença, é que quando fui lá por esses dias, fui tranquilamente sozinha e não precisei de ninguém para dizer que a armação ficou bonita. Eu me achei bonita com ela no rosto. Mesmo de 2002 para cá, felizmente, a gente cresce e com muita saudade, prescinde do pai. Espero que vocês apreciem o texto abaixo.

                                       ERNESTO,  MEU  RAPAZ!  (a meu pai, in memoriam)

Não gosto de comerciais. Acho a propaganda, em geral, muito perversa, alienante. Gosto do amor. Mesmo passional. Amor àquele que brincava com aeromodelos, com palavras e animais. Àquele que nos botava apelidos excêntricos, tomava banho de mar de sapatos e adorava contar "causos" de pescador. Àquele de mente brilhante que fazia versos; tão incompetente pra ganhar dinheiro que vivia a repetir: "sou pobre mas sou honesto". Àquele que era médico, ateu, mas acendeu uma vela quando eu, pequenininha, beirava a morte.

Amor ao insensato. Me apresentou a Freud quando eu contava apenas 10 anos. Ao asséptico. Não nos deixava sentar no chão porque tinha micróbios. Ao passional. Quando apaixonado, ficou irreconhecível. Aparentemente, em razão disso, nos machucamos a todos. Amor àquele que nos deixou tão cedo. Aos 45 anos. E foi conversar com as estrelas, ficando eu numa orfandade de temer estar no mundo sem a sua mão enorme, mulata, segurando a minha.

A sua mão enorme, mulata, segurando a minha a caminho da Ótica Ernesto. Era um passeio de lamber os beiços de tanto prazer. Já devo ter dito : nasci quase cega. Primeiro eu pensava que o mundo era assim, impressionístico. Mas quando veio a curiosidade pelas letras, eu precisava dos contornos e enfiava o texto no nariz. Assim comecei a usar óculos aos 5 anos de idade.

Taperoá não tinha ótica, muito menos oftalmologista. Como fazer então? Viajar pra Salvador com direito a baldeação em Santo Antônio de Jesus. Eu e meu pai. Dr. Joaquim, se lhe querem saber o nome. Creio que chegávamos à noite, pois lembro do encantamento com as luzes de neon. Na mala vinha um vestido único para a ocasião de passear em Salvador. Acho que era de organdi.

Vejo a minha mão tomada por aquela outra, enorme. Me ajuda a subir no ônibus (ou será que era ainda bonde?), rumo ao Doutor Papaléo. Ele sempre me deixou sentir compenetrada pelo jeito de falar. Se não fosse imaginação de criança de 5 anos, eu poderia dizer que a conversa de pai e filha era conversa de igual para igual. Observávamos a rua e também tipos humanos, gosto comum aos dois. Mas se a mão era enorme, é certo que o tom da conversa não devia ser menor. Digamos que nos acomodávamos à diferença de tamanhos e vinha muita risada. Essa sim, nos igualava. Risada não tem tamanho.

Onde era Papaléo perdido ficou na memória. Mas lembro do consultório. Austero, como convém a um doutor com ares de europeu. Na verdade um velhinho bondoso de deixar criança quieta com a cara enfiada naquelas aparelhagens. Mesmo assim, de vez em quando eu desviava o olhar. Não podia resistir a examinar, curiosa, como numa escrivaninha cabia tanta tranqueira. Nada que me interessasse, senão a desordem. Finalmente o bom velhinho nos entregava a receita sem cobrar um tostão. Naquela época, a ética não permitia colega cobrar de colega. Era um tempo de elegância.

E por acaso havia algo mais elegante do que a Loja " Duas Américas" com a sua casa de chá? Hora de lamber os beiços com aquelas iguarias. Se lambuzar não podia porque o pai era rigoroso nas regras de educação.

E satisfeitos partíamos para a Praça da Piedade encontrar outro velhinho. Esse, de fato, europeu? Que tanto velhinho é esse? Há de perguntar o leitor. Nem eu sei responder. Deve ser pelo que passa em cabeça de criança. Passou dos 40 , é vovô. Pois o velhinho nos atendia com presteza e paciência. Era seu Ernesto. O dono da ótica. Aqui a paciência é dado fundamental. Pois eu punha a armação no rosto, punha uma, punha outra com direito de escolher. Mas meu rosto no espelho era pouco mais que um borrão. Apesar do livre arbítrio, pedia socorro a meu pai para dizer qual ficou mais bonita. E ele apontava aquela que em mim ficou exata, parecendo uma professora. Porque progressiva a miopia, todo ano era hora de passear com meu pai.

Muitos anos se passaram, eu fiel ao velho Ernesto, embora já falecido. Mas na hora do espelho, doído enfrentamento. Vira um caso lacrimoso a escolha da armação. Quem, pra dizer se ficou bonita?
                                                                                            Bom domingo a todos,
                                                                                                                  Marcia Gomes.        

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

 "Blá, blá, blá domingueiro...." e....Texto extraído.

Texto de 20/10/2013
 
 
 
ATO  FALHO  (à Myriam Urpia, minha mãe)
             
                                              
Minha mãe, perco-a pela distância (mora em outro Estado), ganho-a pela maturidade. Quanto mais envelheço, mais gosto de minha mãe. Gratidão, perdão, ternura, compaixão. Uma saia tecida de palavras piegas que enxergo aos borrões.

Minha mãe cresceu uma vida controvertida. Primeiro morou num casarão enorme e elegante no bairro da Graça. Depois, enquanto seus pais estiveram separados, dividiu um único prato de caruru com seus seis irmãos. Coisas que aparentemente se repetem ao longo de diferentes gerações. Mas ganham seu tom de novidade mais ou menos trágica, porque muda a cultura, porque cada um é um.

Minha avó materna, na Rua dos Aflitos (ai, as palavras), dava aulas de datilografia para comprar o prato de caruru. Minha mãe, quando se separou de meu pai, vendia livros de literatura de porta em porta. Trabalho em casa, trabalho na rua e a mesma tenacidade dessas mulheres de diferentes épocas, com coragem de sair das relações se não são mais amadas.

Lembro que numa dessas histórias que já contei, falei que aos meus oito anos o mundo parecia ruir sobre nossas cabeças. E, minha mãe, que não era exagerada nem eloquente, pelo contrário, naquele tempo tímida, nos contava "causos" para nos entreter. Se não tinha o dom da palavra como meu pai, tinha a voz linda, musical. Não era só a voz. Era toda linda. Parecia aquelas estrelas de cinema da década de 50. Estrela de cinema triste e mal cuidada.

Seu nome, Myriam, é o da Virgem Maria em hebraico. Seu cheiro ainda é o mesmo, até hoje. Açucena, talvez. Mais pelo nome do que pelo cheiro. Eu não sei ao certo que cheiro açucena tem. Mas é um "açucenar" de maternidade.

Quando as lides domésticas davam trégua, minha mãe sentava no batente do fundo da nossa casa em Ibirataia e contava. Sem amargura, com bom humor ela nos disse que queria ser engenheira. E o que é pior: ficou sabendo que estava destinada a ser pianista. Onde já se viu, naquela época, uma mulher fazer engenharia?  As aulas de piano eram seu terror. Mesmo no tempo da Rua dos Aflitos, continuaram as aulas. Creio que era sua tia Noêmia, professora da Escola de Música quem patrocinava.

De modo que não tendo como escapar, minha mãe teve que dar um concerto. O grande problema eram os sapatos. Eram todos velhos, de segunda mão e um par de sapatos custa bem mais caro que um prato de caruru. Não havia dinheiro. Chegou o dia do concerto. Praticamente em cima da hora o dinheiro apareceu. Provavelmente dádiva de tia Noêmia.

Minha mãe foi mandada às pressas à sapataria e comprou o "par" de sapatos, sem que houvesse tempo de experimentar. Ao sentar-se ao piano, sentiu-se torta dentro deles. De repente deu-se conta que havia comprado dois pés esquerdos. Não sabia se olhava para o teclado ou para os pés. Não teve conserto mas houve concerto.

Minha mãe formou-se em música. Conheceu meu pai no Largo da Piedade, junto ao conservatório. Nada conservadora a minha mãe. Nunca a vi tocar piano. Vejo-a sim a fazer planilhas, orçamentos, cálculos complicados, inclusive os meus.
                                                                                                             Marcia Gomes

P.S. Texto extraído de CONVERSA  MARCIANA (2002). Coletânea de escritos para circulação entre amigos. 
 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro......"e.....Textos extraídos. ("Conversa Marciana" e "Declaração de amor II")
 
 
 
Texto de 13/10/2013 

 
Foto: Debruçar-se.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)
 
 
 CONVERSA  MARCIANA


Um encontro com Ana Cecília. Foi assim que aconteceu : eu dizia que comida mexicana era boa e ela dizia que não gostava daquela comida. Sem muita insistência, venci a contenda. Pedimos um taco cada uma. Ela gostou tanto que repetiu.

Nem sempre a gente repete quando gosta tanto. Às vezes, a gente se repete e não gosta nada. Mas isso é papo que deve escapar a essas linhas que não quero pesadas. Quero-as leves.

E falávamos, eu e Ana, de Drummond. A propósito de seu centenário, a propósito de uma palestra que ela faria sobre ele. Contamos uma à outra como foi o nosso primeiro encontro com Drummond. Sim, porque embora ele fosse parcimonioso em assuntos de encontros, ele nunca se furtou a estar conosco. E, mais ainda, foi ele quem promoveu o primeiro encontro entre nós duas. A primeira vez que fui à casa de Ana foi para conhecer o seu volume da obra completa. Velho como o meu.

Só para dar uma idéia, estávamos em 1972 e meu primeiro encontro com Drummond aconteceu quando eu contava apenas 12 anos. Eu tinha medo da escola pública. Eu tinha mesmo medo de escolas. Pois se só fui frequentar uma aos 10 anos !  Antes era professora particular. Então na escola pública minha mão pingava na sala de aula. Até parecia que eu estava no "Congresso Internacional do Medo". Mas estava apenas numa sala de aula cheia de adolescentes às vezes muito mais velhos que eu, muito mais espertos e maliciosos que eu.

Abrindo um parêntese, olhei agora para um retrato de Freud que tenho no meu mural. Senti um pouco de medo da severidade de seus julgamentos. Mas isso é coisa de adolescente de doze anos. A mesma cujo pai sugeriu que lesse Freud aos dez. Mas sejamos leves. O olhar de Freud no meu mural é compassivo, doce.

Se minha mão pingava na sala de aula, quiçá no recreio. Eu não me aventurava. Ficava na sala rezando que a próxima aula viesse logo. E um dia veio. Ela se chamava Ana Maria. Não deve ser à toa que as minhas mais antigas amigas se chamam Ana. Ana Maria, a professora de Português, era alta, magra, morena e muito mais coisa que a minha memória não alcança mais. Mas a memória nunca perde o alcance do que soa. A voz de Ana Maria era como o olhar de Freud. Doce. E com a doçura de quem sabe estar fazendo uma reverência, ela distribuiu uns papéis.

Era uma crônica. Chamava-se "Conversa de Velho com Criança". E era Drummond. E o que eu fiquei sabendo de Drummond naquele dia? A candura. Ai que palavra dura de tão cândida!  Era Drummond. Uma dureza cândida. Na crônica, a cumplicidade tão sutilmente construída, do velho Ferreira com as estripulias da menina no bonde, foi secando a minha mão e me encharcando por dentro de dor bonita. A dor do belo. Não havia mais nada senão Drummond. O meu Ferreira.

Depois da aula lá estava eu no recreio pela primeira vez. A minha mãe sem que nada soubesse, no mesmo ano me presenteou com a obra completa em papel bíblia. Não tinha dinheiro mas vendia livros de literatura batendo de porta em porta. Não pensem que perdi meu medo de recreios, reuniões sociais e coisas que tais. Se preciso ir, penso na dor bonita de ser "gauche". Penso em Drummond. Vou em frente.


P.S.1 Texto extraído dos escritos intitulados CONVERSA  MARCIANA (Salvador, 2002) para circulação entre amigos.
 
 
 

                                                          DECLARAÇÃO  DE  AMOR  II
 


Para cada um, o sorriso, o enternecimento, a alegria do outro era o bem mais caro. Com o fervor próprio dos apaixonados nos dedicávamos, entregues, a intermináveis jogos de encantamento. Em nossa busca, era como se escavássemos um poço de delícias que não se esgota. Havia sempre uma nova forma de dizer "gosto de você". Estávamos apaixonados.

Naquela época você trabalhava na Avenida Santo Amaro. Meu consultório, no Itaim Bibi. Almoçávamos juntos quase todo dia. Eu lhe pegava no trabalho e aproveitávamos aquela horinha sagrada, nossa, para pormos os corações em dia. Falávamos de tudo. Sua literatura, nossas descobertas profissionais, as nossas alegrias, nossas dores.

Às vezes brigávamos. Brigávamos feio. Eu tenho o péssimo defeito de confundir o outro em momentos do afeto mais delicado. Por medo. O seu defeito, explodir intempestivamente quando se sente ameaçado. Também nos permitíamos fazer silêncio, esse comovido cúmplice da intimidade.

Era véspera do meu aniversário. Você telefonou, todo esbaforido, para fazer duas estranhas perguntas. Queria saber o tipo de açúcar que podem usar os diabéticos. Respondi, e, curiosa, quis saber porque. Segundo me disse, você estava obtendo informações para construção de um personagem. A segunda estranha pergunta era : "que horas são"? Para a qual você pretextou alguma coisa convincente que eu não me lembro mais. A ela não respondi, ou melhor, respondi que não podia respondê-la. Meu relógio havia quebrado e eu não comprara outro ainda. O seu tom de voz ao telefone era de menino peralta que não quer ser pego no pulo. Sou meio lerdazinha. Nesses momentos do afeto mais caro, fico meio retardada. Em seguida você me ligou de novo, convidando para almoçarmos juntos no dia seguinte. Embora o fizéssemos diariamente, aquela data era especial e merecia convite. Topei. Não havia melhor forma de celebrar meu aniversário.

Você entrou no carro portando uma sacola como se fosse uma bomba. Proibida a mais longe intenção de tocá-la. Você fazia malabarismos corporais para carregá-la. Todo o mistério existencial parecia residir ali. Inibindo qualquer manifestação de curiosidade a respeito, você explicou ser o conteúdo da sacola coisa pessoal, indevassável. Portanto, nada de perguntas. Concordei, intrigada. Almoçamos. Teria você esquecido meu aniversário? Não o mencionou, a não ser um beijinho de cumprimento, nenhum afago. E o meu abraço? Eu já ensaiava o momento de reivindicá-lo, chegando perto de ficar magoada. Frustrada com o possível esquecimento, eu já nem me dava conta daquele insólito objeto que se interpunha na nossa relação, ameaçador, porque secreto.

Mencionei a vontade de pedir uma sobremesa, adiando reclamar o meu abraço. Estranho, você quase suplicou que eu não a pedisse. Estranho mesmo. O abraço tornava-se inadiável. Tínhamos horário para voltar ao trabalho. Para chegar ao cúmulo da esquisitice, você me perguntou se eu não queria ir ao toalete. Concordei mais por obediência do que por necessidade. Intuí estar naquela ida ao toalete a chave de todo o mistério. Apressei-me em ir, ansiosa que estava para que fosse posto fim àquela enigmática forma de celebração, desconcertante.

Voltei do toalete mais que depressa. Você não estava na mesa. Escondido, me espionava de algum canto do restaurante. Sobre a mesa, um maravilhoso bolo de aniversário, um cartão e um presente. Era um relógio. Como não percebi? Sou mesmo lerdazinha. "Pra você lembrar o tic-tac de um coração que lhe adora", dizia o cartão.

Você se aproximou sapeca, orgulhoso. Não era pra menos. Era o autor do bolo, dietético. Ficara até a madrugada exercendo seus dotes culinários. Era irrepreensível, o resultado. Repreensível é fazer tanto suspense, quase me matar de susto para me dar um abraço. É que além de lerda, eu gosto às vezes de surpresa.
 


P.S.2 Texto extraído de RECORTES (Salvador, 1991). Escritos para circulação entre amigos.
                                                                               
 
       Marcia Gomes.
                                                        

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro......."e.....Texto extraído. ( CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.)


Texto de 06/10/2013



Foto: Boipeba. Florescer..
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)



 CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.
 
Um dia, indo à feira, apaixonei-me por uma casinha na Vila Madalena. Tinha, na frente, uma área luminosa, a céu aberto. Havia muros brancos onde poderia se esgueirar uma unha-de-gato. Não titubeei. Mudei-me. Com o coração ainda um pouco doído. Doendo uma separação conjugal que ao mesmo tempo me aliviava. A vila, com seus enternecedores paradoxos, prometia, se não dissipar a dor, pelo menos acalentá-la. Mal sabia eu que seria depois de separada, que viria a viver a dor de amor indissipável, inacalentável, "razão" da minha vinda de volta para Salvador. Quando a gente se repete, embora mudem as pessoas, persiste, denunciadora, a viciada escolha de objeto.
 
Pois é. Mudei-me para a Vila Madalena. Afinal, não é em qualquer bairro que um girassol enorme brota, teimoso, em plena calçada ! E lá brotava. Em meio à sacralidade da santa e o desvario da puta, Madalena. Em meio à graça dos nomes de rua :Purpurina, Harmonia, Fidalga. Em meio às rotinas nostálgicas dos velhinhos e à  irreverência transgressora dos artistas.
 
Na minha rua predominavam os velhinhos. Casinhas simples, mantidas a singelos cuidados de aposentados. Nas manhãs de sol, todos eles acorriam aos portões e lá ficavam, contemplando, na sua placidez, a rua, como se fosse a antevisão da eternidade.
 
Mudei-me. Tudo no bairro o fazia parecer imune à maldade. E eu, dormia a sono solto, quando o ladrão levou consigo o banco dianteiro do meu carro. Velho, talvez para fazer face à morte, tem sono leve. Acordaram a tempo de ver o ladrão levando o banco, na sua barulhenta impunidade. Solidários, confabulavam. Logo eram duas facções : os pró e os contra acordar a dona do carro. Liderando os contra, estava o guardião maior do sono da donzela. Segundo ele, uma moça tem direito ao sono, irrevogável, pelo menos até que se anunciem as primeiras cores da aurora. Isso, a despeito do que quer que tenha sido roubado. "Inda mais essa moça que trabalha tanto e se recolhe tarde". Era verdade. Sempre precisei trabalhar à noite, no consultório.
 
E assim foi feito. Sua opinião prevaleceu. A moça, quando acordou, já ia alto o sol da manhã. Era sábado. Saía, desavisada, em direção à feira, motivo de alegria por si só. A feira, na Vila Madalena, é um acontecimento estético-social. Formas, cheiros, cores, sons e tipos humanos invadindo as ruas. Pois então ia a moça à feira, quando vários vizinhos se aproximaram notificando o fato.
 
Mais comovida com o gesto do que assustada com o roubo, procurou saber de quem partiu sensível adivinhação das idiossincrasias de seus hábitos. Detesta ser acordada, seja qual for o motivo. E agradecia.
 
Finalmente foram apresentados. Com a sobriedade que convém aos quase oitenta anos, ele disse : "Eu sou Chakib, às suas ordens". A moça, adivinhando ser a solenidade mera fachada, brincou : "Também esfiha e coalhada?" Ele era de origem árabe, via-se pelo nome. Sorriu e prometeu apresentá-la a seus dotes de cozinheiro.
 
Iniciou-se então aquela bonita amizade. Sr. Chá - assim ele gosta de ser chamado- , no seu ócio de aposentado, estava sempre à porta, intrometido, acompanhando vigilante os destinos dos moradores da rua. Que não me leiam as feministas, considerava-se o guardião da suposta desproteção das mulheres que vivem sozinhas.
 
Tão logo entrava um homem na minha casa, tocava o telefone. Era Sr. Chá colocando-se disponível para me proteger, caso alguém me importunasse. Sinto tê-lo frustrado, sempre. Nunca foi chamado. Não pra isso, é claro. Também, se o chamasse por outro motivo, jamais viria. Não ficava bem. Ele, um homem sozinho, entrar na casa de uma moça também sozinha, explicou-me. De modo que o nosso caso amoroso acontecia da porta pra rua. Exceto quando havia alguma amiga na minha casa. Aí ele vinha e contava "causos" e "causos" dos seus tempos de mascate.
 
Adorava ópera. Chorou emocionado quando lhe dei de presente um toca-discos para escutar Pavarotti. Tanto quanto a ópera, a horta, o jardim, o pomar. As maiores jabuticabas já vistas nesse mundo; couves, cheiro verde, alface, almeirão; rosas, cravos, rendas portuguesas; tudo era generosamente distribuído com a vizinhança. A mim, Deus sabe porque, cabia o melhor quinhão. Através de quibes e acarajés derrubamos fronteiras geográficas, cronológicas, raciais.E era entre nós uma ternura sem conta.
 
Acima e além de tudo, exercia a função poética de guardador de minha luz. Tão logo anoitecia, se punha a postos. Era um holofote que ficava do lado de fora iluminando meu caminho de entrada. Às vezes, algum passante se atrevia a apagá-lo. Ele intervinha, severo. E lá permanecia de plantão até que eu chegasse do trabalho.
 
Quando tudo foi desfeito, aquela lâmpada foi, felizmente, presenteada a ele. Nada mais justo, nada mais certo. Às vezes, eu penso, toda minha luz ficou lá, para sempre. Não faz mal, tá bem guardada. Saudades, Sr. Chá !!!
 
P.S. Texto extraído de  RECORTES (1991). Coletânea de escritos para circulação entre os amigos.

                                                                                Marcia Gomes.  


"Blá, blá, blá domingueiro...."e....Textos extraídos. ("DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I" e "PARANÓIA")


Texto de 29/09/2013



Foto: A Letargia. Sabotagem à Mais-Valia?
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I

Foi há muitos anos.1985.Eu tinha a pele acobreada dos raios de sol generosos de quem volta de férias da Bahia. O coração em alvoroço. Você era um amigo à moda de amante século XIX. E eu nem saberia suspeitar onde termina o amigo, onde começa o amante. Você, tampouco. Talvez menos ainda. Será que tínhamos como álibi dizer que o amor inocenta? Eu, embora infeliz, era compromissada numa relação de casamento que ia chegando ao fim.
 
Você, de São Paulo, me enviou, para inaugurar o Ano Novo, uma foto sua junto com rosas vermelhas.Rosas vermelhas de surpresa foram suficientes para pôr meu coração em alvoroço.
 
Eu, alvoroçada mas tímida, cheguei de surpresa. Se avisasse a data, mal conteria o sobressalto da expectativa.Creio que foi desta vez. Tenho dúvidas. Estava dura de grana.Muito dura. Havia pedido demissão do emprego que me mantinha, a contragosto, de pés amarrados ao passado na Bahia.Foi com dor, mas cortei os laços. Naquele tempo começar de novo não me atemorizava.
 
Desempregada, dura, voltei de ônibus.Havia uma geladeira no ônibus. E na geladeira do ônibus havia sorvete pra você. Que loucura! Trinta e seis horas de calor inclemente e lá estavam: mangaba, cajá, umbu. Sapoti? Sapoti não tenho certeza. Talvez não fosse época. Mas é impossível falar em você sem lembrar sapoti.
 
O coração em alvoroço não se impediu entristecer ante a vida miserável do interior da minha terra. O ônibus, cruel, parecia persegui-la. Era quase proibido sentir-me apaixonada em meio àquela paisagem.
 
Cheguei a São Paulo às cinco horas da manhã. Em São Paulo, às cinco horas da manhã é noite ainda. E pensar na preguiçosa, lenta e sorrateira aurora em São Paulo me lembrou "A Morte do Leiteiro" que você, segundo me contou, recitava na sua adolescência. Leite e sangue se misturam compondo os tons da aurora....mataram o leiteiro. O motorista de táxi me roubou e ficou impune...
 
Assaltada, mas feliz, fui ter com você à tarde.Você me abraçou por trás e o meu corpo pareceu dissolver-se no tamanho do seu abraço. Desfeito o abraço, intimou-me docemente: "Vamos tomar um café?" Fomos sempre cúmplices em café de máquina que só agora chega na Bahia. Contanto que não passasse das 5 da tarde. Senão você perdia o sono. Deus me livre fazer você perder o sono. Aliás, bem que gostaria.
 
Fomos tomar o café. Subimos no ônibus. Descemos do ônibus e toca a caminhar. Era fim de semana e eu usufruía, saudosa, o tom bucólico das ruas do centro de São Paulo. O que me prometia um café tomado assim tão longe?
 
Você me guiava no emaranhado de ruas.Estava perdida. Pra que me achar? Você conhece São Paulo como a palma da sua mão. Linda mão, diga-se de passagem. Caminhando, olhávamos os tipos humanos. Como o café, também é hábito comum. Como nos divertíamos ante o inesperado das cenas dessa gente multifacetada de São Paulo! Os nordestinos, especialmente, que percorrem as vitrines com o olhar comprido.
 
De repente, chegamos. Você tinha um ar maroto. Tímido. E a doçura do olhar. Não tenho esperança de encontrá-la em ninguém mais. E, o que é pior, nem em você agora...Tomamos o café. "Gostoso", "tá forte", "tá quente", "tá fraco".Tá tudo o que pode ser um café.
 
Acabado o café, você toma minha mão, a põe no seu peito, e diz: "Alguma coisa acontece no meu coração".Estávamos na esquina da Ipiranga com a São João.
 

                                                       
PARANÓIA

Hoje estou feliz. Escrevi uma carta entrecortada. Esse motivo de felicidade não vem ao caso. A não ser para dizer que já não sei mais como se escreve um texto feliz, ainda mais com esse nome tão pesado.Como, de volta à Bahia saber escrever um texto feliz? Como, escrever um texto feliz, exilada?
 
Pois eu também estava feliz naquela ocasião. Passamos um ano longe, eu e você. Nunca um longe foi tão saboroso! Eu usufruía gota a gota cada momento da sua estada fora. Era minha a sua alegria. Cada cidade visitada, cada descoberta, cada novo encontro pessoal, cada tudo.....a gente compartilhava.
 
Seu quarto ocupava o primeiro andar da casa. Lá, da sua escrivaninha, na sua máquina de escrever, eu lhe fazia mil cartas. Às vezes a revoada de pássaros no céu, às vezes o pôr do sol, uma música, qualquer coisa do cotidiano era notícia que eu lhe mandava.
 
Você deixara as suas coisas comigo, plantas, pessoas, papéis, inclusive a casa. E eu cuidava. O desvelo se renovava diariamente, como se fosse você chegar amanhã. Um ano era pouco para preparar a sua chegada. Os envelopes de suas cartas eram azuis. Dentro, a poesia revelada. Somadas, dariam um livro, se você quisesse. Se não o mais bonito, o mais fiel  ao seu ofício de com o deslizar da pena deixar pegadas nos caminhos que o coração percorre.
 
O nosso amor, imenso, a nenhuma categoria se aplicava. Era estranho, transgressor, desafiava. O carteiro do Sumaré, todo dia, parecia lambuzado de alegria; o carinho, no envelope, mal cabia. Transbordava. Não era só o carteiro. Uma vez, um eminente portador internacional me entregou delicados doces de marzipã, dietéticos. Você se dava ao trabalho de visitar lojas especializadas.
 
Outra vez, lhe mandei uma colcha de retalhos feita por mim. Causou estranheza. Aqueles diversos pedaços de panos ajuntados, pareceram aos europeus testemunhas da nossa pobreza, brasileira. Estavam redondamente enganados. Testemunhavam, isso sim, a riqueza da nossa relação pacientemente costurada.
 
Nesta história, tão bonita, pra que aparecer percalços? Apareceram. Quem já viu amor sem percalços? De repente, talvez por força do medo de toda aquela intensidade, medo do meu próprio desejo, deixei a sua, voltei pra minha antiga casa. Em razão disso, as suas coisas, embora cuidadas, não o eram mais diariamente. Outra vez, lá estavam os nós. Difícil desatá-los, ainda mais por carta.
 
Num dia cheio de acidentes e obstáculos, você chegou. Dezesseis de abril, não esqueço. Por razões de acidentes e obstáculos, a gente dificilmente se encontrava. Finalmente aconteceu. Nos encontramos numa tarde outonal no Largo do Arouche, para conversarmos. Passeamos, tocados pelo tom bucólico da praça. Sentamos em algum lugar, se não me engano, com cadeiras na calçada. Você me presenteou com um maço de violetas.
 
Culpada, constrangida, pedi-lhe desculpas por, de certo modo, ter abandonado suas coisas, sua casa. Então você disse que me desculpava e que independentemente do modo como cuidei das suas coisas, tinha a fantasia de me levar a um juiz de paz. Não tenho registro da emoção. Deve ter sido pânico. Apavorada, me deu um branco, não entendia o que você falava.Eu não suportava. Então fui agressiva com você.
 
Você explodiu em fúria. Saiu, abandonou-me sozinha na praça. Antes porém, sugeriu que eu fosse consultar o dicionário.Não resolveria. Era no coração que o significado não cabia.
 



P.S.1. Digitando em setembro de 2013, este texto que quando escrevi intitulei "Paranóia", vejo hoje que caberia chamá-lo  "masturbação de uma histérica de compêndio psicanalítico". 
 
P.S.2. Textos extraídos do manuscrito RECORTES (1991). Digitados por Ana Cecília e Virgílio para me presentear no meu aniversário e fazer circular entre amigos.
                                                                        
         Marcia Gomes.

"Blá, blá, blá domingueiro...."e.....Texto extraído. (DESPEDIDA)


Texto de 22/09/2013


Foto: Fonte Grande-Itapoan. Toalete no Camarim Antes de Entrar em Cena.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)

DESPEDIDA

No dia em que você chegou eu estava muito, muito triste. Como teria sido se você chegasse todo alegre, serelepe? Mas não. A languidez dos seus cílios enormes mal escondia tristeza tal e qual a minha.
 
Você era uma figurinha de gente segurando, indefeso, a mão da mãe. Não atendeu ao meu convite pra subir. Pelo contrário, sentado na escada, empacou. Decidi respeitar seu movimento de recusa. Sentei-me a seu lado, na escada. E lhe disse compreender o quanto era difícil estar ali. Sua mãe nos olhava, possivelmente preocupada com o desfecho.Você, cabisbaixo, sentado, subiu rapidamente o primeiro degrau. A cada fala minha refletindo seu sentimento, você galgava mais um degrau, sentado. No topo da escada levantou-se, seguiu-me.
 
Estávamos dentro da sala. Você olhou silencioso para uma folha de papel sobre a mesa. Entreguei-a e, mais que depressa, providenciei hidrocor. Você, concentrado, silencioso, desenhava. Concluído o desenho, balbuciou em tom quase inaudível: "a chuva é colorida mas corre para o esgoto". Sim. A chuva é colorida mas corre para o esgoto. Posso intuir a dor contida na sua metáfora.....
 
Nos encontramos muitas e muitas vezes.Você, a princípio, silencioso, era inteligente o suficiente para propor e comandar a brincadeira.Só com gestos, dramatizando.Eu topei iniciar a relação submissa, servil. Imaginei que era aquele o modelo de relação que tinha para me oferecer.
 
Na brincadeira, você era o dono ou gerente de uma loja. E eu, um carregador de mercadorias pesadas. A cada vez você me ordenava carregar coisas mais pesadas. Você me punha à prova. Eu obedecia. Esse jogo repetiu-se várias vezes. De vez em quando você deixava o gerente e assumia o papel de caixa. Punha então, compenetrado, um lápis atrás da orelha. Eu mal continha o riso nessa hora. Sabia ser a brincadeira muito séria.
 
Um dia, inadvertidamente, você falou comigo. Bravo, me repreendeu severamente como o patrão ao empregado. Você falou comigo! Eu exultei de alegria, mas, consciente do meu papel, disfarcei. Mudamos de jogo, de papéis, várias vezes. Repetíamos cada um, até que pequenas mudanças se anunciavam e era dado o salto.
 
Nos demoramos mais na fase de assassinar o pai. Você compunha inumeráveis cenas de família, a sua história, que culminava com a morte do pai. A cada dia uma nova peça de brinquedo era trazida.Era a arma do assassinato. À essa altura já conversávamos animadamente. Demorou, mas um dia você disse meu nome, sentou no meu colo. E me pediu, bandeiroso: "não fala pra mamãe".
 
Chegou o fim do ano. Uma coisa triste:você foi reprovado na escola. Não foi possível alfabetizar-se. Ainda recusava contato fora do nosso pequeno espaço. "A nossa sala", como dizia você. Fomos crescendo de jogo em jogo.
 
No ano seguinte, comuniquei que eu sairia de férias. Você desmontou por um segundo, se refez e acrescentou:"vou fazer uma carta de amor pra você". A carta foi longa, demorada. Você se afastou de mim e cobria o seu trabalho com a mão para eu não ver. Eu esperava, ansiosa, imaginando estar você garatujando, fazendo rabiscos. A carta era uma lista de palavrões bem pesados, muito bem escritos. O primeiro impacto foi a mágoa. Então era aquilo a carta de amor? Você se adiantou, explicando: "estou muito bravo porque você vai viajar e logo hoje que eu vim pra lhe contar que já sei escrever".
 
Sim, era uma carta de amor, a mais linda que recebi. Você estava mais que alfabetizado e se aventurava a expressar diretamente a sua raiva em relação a nosso afastamento. Aquela carta cheia de xingamentos era a surpresa, a revelação do seu abrupto progresso na escola.
 
Finalmente chegou aquele dia, misto de alegria, tristeza, saudade, esperança. Tanta coisa! Você já não matava o pai nos nossos jogos de família. Ele era incluído na brincadeira. Quando incomodava, você expressava seu desconforto. Às vezes você o excluía por algum tempo, em seguida o trazia de volta. Fazia amigos na escola e participou de um acampamento afastado de casa por vários dias. Nós ríamos muito juntos, você me pregava peças. Era hora de despedir. Nós dois sabíamos e nos preparávamos. Mas naquele dia eu tinha a voz embargada.
 
Você, compenetrado como sempre, me disse outra vez: "vou lhe escrever uma carta de amor". Pegou hidrocor, cartolina, cola e lantejoulas. Começou a trabalhar velozmente. Desta vez, não se afastou de mim, nem cobria com a mão para que eu não visse. Compunha um céu cheio de luzes e brilhos.Terminado, pediu para pendurar na parede. E, embora soubesse, perguntou: "você mora aqui?" Respondi.Retrucou: "então venha aqui um dia de noite e apague a luz. Você vai olhar pra isso daí brilhando e não vai ter medo de escuro nem nada."
 
P.S. Texto extraído do manuscrito " RECORTES "(1991), crônicas digitadas por Ana Cecília Bastos para me dar de presente de aniversário e fazer circular entre amigos. O texto "DESPEDIDA" é um relato literário de um atendimento clínico a uma criança em 1988, em São Paulo. Naquela época, eu, psicoterapeuta, muito longe estava de ocupar o lugar de psicanalista. Não fazia a menor ideia do que era isso.
                                                                                         
        Marcia Gomes.

"Blá, blá, blá domingueiro...." e....A propósito do amor.


Texto 15/09/2013


Foto: O Verão em Itapoan. Fazendo Arte com Gravetos. Contorcer-se de Dor?
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Vilma e Dinho, dois nenúfares. Nenúfar, linda flor aquática. Dois nenúfares nascidos e criados em Novos Alagados. Não sei ao certo quando conheci o nosso querido Dinho, José Eduardo Ferreira  Santos. O meu registro é de quando ele, então orientando de Ana Cecília (junto com Virgílio, sua em breve madrinha de casamento), defendeu sua dissertação de mestrado na Ufba.
 
Registro importante, porque somente ele, na sua especialidade como intelectual e sobretudo na sua especialidade de alguém cuja alma reluz, me faria retornar, séculos depois, à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, após o meu traumático pedido de demissão, como professora do Departamento de Psicologia.
 
Somente Dinho me faria retornar a São Lázaro. Voltei a São Lázaro (meu Deus, quem diria! quando me despeço das coisas com dor, nunca mais.....) especialmente para assistir à defesa de Dinho. Obrigada, Dinho! Só assim pude ressignificar São Lázaro. Omolu. Vestido e dançando de modo a esconder suas chagas, e, como Dinho, cuidador das chagas do outro. Dinho cuida das chagas do outro com arte. Com a arte.
 
Me vejo sentada num auditório em São Lázaro, literalmente aos prantos de comoção com a figura de Dinho, com seu trabalho de acolher com a arte os seus companheiros de origem social, talvez não tão "resilientes", não tão afortunados quanto ele, no enfrentamento das crises do desenvolvimento.
 
Na ocasião escrevi para ele um texto intitulado "Olhos Alagados" me referindo a meu pranto comovido e às suas raízes bem plantadas em Novos Alagados. Dali em diante ficamos amigos. Ana Cecília tem a generosidade de me franquear amigos queridíssimos. Dinho é meu amigo, queridíssimo! Que privilégio, o meu! Como escreve bem o danado! Como sabe afirmar e firmar seus pontos de vista. E que sensibilidade!
 
Conheci Vilma, sua parceira, companheira e em breve esposa, num jantar de celebração da criação de um CD de fotografias feitas por meu pai. Projeto a que Dinho deu a maior força. Se fosse pela vontade dele, as fotos já estariam sendo publicadas em livro. Dinho e Vilma como casal jantando em minha casa. Em Vilma, primeiro me chamou a atenção o belo ébano da sua pele reluzente, seus músculos rijos (que inveja!), seu sorriso tímido e tão generoso.Por tudo isso e, sobretudo, pela altivez do porte, julguei que talvez Iansã tomasse conta da sua cabeça. Entretanto, quando vi Vilma sentada à mesa ao lado de Dinho enquanto eu fazia um discurso lacrimoso (haja lágrimas, Dona Marcia!), me convenci que Oxum dela toma conta. A sua doçura de timidez "traquina", mas, especialmente, a sua postura junto a seu parceiro, me fizeram nisso apostar.
 
Que me perdoem as feministas ou que vão ao Diabo que as carregue (não gosto de feministas), fiquei encantada como Vilma, quase silente, sabia se fazer presente no jantar sem obscurecer o brilho de seu companheiro. Olhava para ele com candura em sinal de reconhecimento e aprovação.
 
Muitos sabem, o meu ofício é ocupar o lugar de psicanalista. Ao que parece, para a psicanálise homem e mulher só podem ser "iguais" em direitos sócio-econômico-políticos. Por isso constatei, com alegria, que ali havia uma parelha: de um lado, posicionada como homem, de outro lado, posicionada como mulher. Homem e mulher. Quem sabe, por sermos falantes, para além da anatomia, seres irremediavelmente diferentes. Irremediavelmente. Tendo a mulher o privilégio de ser causa de desejo do seu homem. Havia uma centelha de desejo, indiscutivelmente, entre Vilma e Dinho. E o desejo, para mim, muito além está de ser somente desejo sexual. Diria que é desejo de desejo. Discretos, sem exibições desnecessárias, Vilma e Dinho formam um casal. Coisa rara!
 
Quando fui à exposição do "Acervo da Laje" (museu de arte popular construído e bancado por Dinho e Vilma, como uma iniciativa de incentivar e resgatar a criação artística de pessoas do povo, quase desconhecidas), pude fazer contato com os dotes de quituteira de Vilma. Preparou, com esmero, comidas deliciosas para o evento.
 
Olha aqui, de novo, o homem e a mulher em parceria: enquanto Dinho apresentava as obras do "Acervo" aos convidados, ao seu lado estava Vilma, complementando alguma informação, sempre sem obscurecer, e, servindo os quitutes. Além de encantada com a exposição, fui fisgada, feliz, pela relação do casal. Pensei:" Meu Deus, que maravilha, que milagrosa maravilha: esses dois se amam! Formam um casal!"
 
A participação de Dinho e Vilma na surpresa de aniversário que os amigos prepararam quando fiz 60 anos, me comove até as lágrimas até hoje (haja lágrimas, Dona Marcia!). Além de tudo, não sei se conscientes da eloquência desse gesto, fizeram seu amor, como se eu fosse uma testemunha bem vinda, se representar definitivamente na minha casa, me presenteando com um casal de bonequinhos negros artesanalmente concebidos.
 
O casalzinho está lá na minha sala para todo mundo ver. Todo mundo precisa ver e ser lembrado que o amor pode ser uma saída. Sem garantias, mas honrosa. Todo mundo precisa ver e ser lembrado que embora irrealizável (não há nenhum outro que nos complete. Somos faltosos por estrutura), a fantasia de formar um, bem entendido, enquanto fantasia, existe. E nutre sonhos e derruba barreiras e constrói poesia e nos faz escrever.
 
Estou escrevendo esse texto agora no caderno artesanalmente adornado que ganhei de presente de Dinho e Vilma. É a primeira vez que uso o caderno. Além de adorar escrever à mão, estou no consultório e aqui não tem computador. Bem a propósito, trouxe para cá o caderno para homenagear o amor desses dois. Amar, admirar o outro. Amar, brigar com o outro e fazer as pazes, amar, ter tesão pelo outro. Ter ciúme também.Amar, consolar o pranto do outro.
 
Na cerimônia tão bonita e serena do funeral de Dona Ruth, mãe de Ana Cecília (ai, que saudade de Dona Ruth! Como ela devia querer estar aqui nesta festa....quem sabe, com palavras bonitas, sábias e delicadas, não estaria dando conselhos eróticos ao casal? O amor entre Dona Ruth e o Professor era uma fogueira abençoada por Deus), Vilma, com sua solidariedade feminina, ficou muito tempo junto de mim. Mas teve uma hora em que ela pediu licença e me explicou: "agora vou cuidar de Dinho.Ele está chorando". Que bonito! Amar, consolar o pranto do outro.
 
Ai, como ao falar de amor a gente pode ficar piegas! Ai, como ao falar de amor a gente pode dizer besteiras! O amor é uma grande besteira. Bem aventurados os que podem ser bestas! Ficar bobo de amor por uma coisa bonita, inimitável, que só o seu amado faz.
 
Os leitores devem estar percebendo que mais escrevo sobre o amor do ponto de vista de Vilma. É, que como Vilma, sou mulher. É, que como Vilma, mesmo sendo eu uma senhora de 60 anos (quem disse que o amor escolhe idade?), só posso enxergar a experiência amorosa com olhos de mulher. A não ser pela poesia e por raros lampejos, não dá para uma mulher saber como um homem ama. Mulher é misteriosa mas o homem também tem seus mistérios.
 
Então, falando do amor de Vilma, tento dar a palavra a cada mulher que se permite com doçura e delicadeza, ter a ousadia de sentir tesão pelo seu parceiro, de se orgulhar de seu parceiro, de cuidar de seu parceiro, de cozinhar para (que se danem as feministas) e/ou com o seu parceiro, de ser causa de desejo de seu parceiro. E assim, com seu brilho, contribuir para seu parceiro brilhar. Ser a musa. Afinal de contas quem já viu amor sem poesia?
 
Hoje estamos aqui reunidos fazendo acontecer o chá de cozinha (em São Paulo chama "chá de panela") de Dinho e Vilma. Quem casa quer casa, né não? Não é assim que diz o ditado? Antes que se pense que estou falando de casa como imóvel, refraseio: quem casa quer ninho. Quem casa quer aninhar o outro lhe fazendo esquecer as crises de desenvolvimento por quê passou.
 
Por isso, Dinho e Vilma, além das toalhas (para tomarem banho juntos, de preferência), estou lhes presenteando com esse texto piegas para ser guardado no ninho de vocês. Na casa. Para quando vierem as memórias das dores da infância, para quando vierem as horas de aperto, quando acontecerem os momentos em que um estranha o outro e por isso, briga com o outro, vocês possam relê-lo e resgatar o reconhecimento mútuo, que para além de todas as fronteiras, para além de todas as interdições, para além da às vezes frustrante, necessária e bonita diferença entre homem e mulher, só o amor, essa grande bobagem, permite preservar.
 
Termino com um pequeno lembrete das lindas palavras do nosso amado Chico: "O que será, que será........"
 

                                                                                                Um beijo maternal,
                                                                                                                     Marcia Gomes. 

"Blá, blá, blá domingueiro....."e.....Textos extraídos. ("MARIA  JOSÉ" e "CHICO,  O  IMPREVISÍVEL")

Texto de 08/09/2013



Foto: "Dom Quixote de La Playa"
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


 MARIA  JOSÉ

O mistério de Maria José era insondável. Para mim que convivi com ela até meus quatro anos, era uma espécie de noite sombria e enluarada que se alternava sem quê nem pra quê. Era muito bonita. Morena, cabelos lisos sempre curtos e um corpo bem feito. Não sei até quando pôde ter estudos. Lembro que tinha uma letra linda pousada em uma fotografia sua dedicada a meu pai.
 
Nos tempos de sombra andava o tempo todo pela casa olhando para o chão e enrolando um dedo no outro. Às vezes sentava enrolando um dedo no outro. Se a gente olhava para ela, esticava os lábios e mostrava os lindos dentes. Mas não era um sorriso. Era um esgarçamento de dor.
 
Na casa, que eu me lembre, ninguém falava do mistério de Maria José. Pelo menos a mim ninguém explicou. Era quase como um objeto animado enrolando um dedo no outro, comendo, bebendo, evacuando e olhando para o chão.
 
Quando a lua ia chegando eu logo sabia. Maria José ficava faladeira e dava muita gargalhada. Me punha no colo e contava repetidas vezes a história de Magda. Uma menina que roubava as maquiagens e as roupas da mãe e se enfeitava toda para sair. Era ela. Era a lua chegando. Meus pais não gostavam que ela me contasse aquela história e, com jeito, me tiravam do seu colo.
 
Quando a lua se tornava maior e luminosa, Maria José começava a costurar. Era incansável. A gente ouvia o barulho da máquina de costura de madrugada. A saia era de cetim azul cheia de luas em lantejoulas e, a blusa, de lamê prateado. Quando a lua atingia seu pico mais alto, Maria José vestia sua fantasia e ganhava o mundo. Ninguém via a hora da transmutação.
 
Passavam-se dias sem o menor sinal da enluarada. Mas voltava. Toda esfarrapada e suja qual uma colombina desfeita em quarta-feira de cinzas. Aí, chegavam uns homens vestidos de branco. Davam-lhe uma injeção e a levavam na ambulância. Eu tinha pavor daquela cena.Pra onde levavam Maria José? Por que não a deixavam sossegada em casa, olhando para o chão e enrolando os dedos? Quem sabe? Ninguém.
 
Passaram-se os anos de noite sombria. Nem a Psicologia me deu resposta para o mistério de Maria José. E a Psicologia tem lá resposta pra nada? Morreu no Juliano. Nunca a visitei. Perdão, minha tia, não costumo ser, mas fui covarde. Vergonhosamente. E covardia, Deus castiga.
 

       CHICO,  O  IMPREVISÍVEL

Essa, se não me engano, foi contada em Ibirataia.Cidade feia onde à noite havia tiroteio dos "playboys" filhos dos fazendeiros de cacau.Fomos pra lá quando eu contava 7 anos. Antes, dos 4 aos 7, vivíamos em Taperoá, cidade linda.Lá tinha zameapunga (festa folclórica), tinha a festa de São Brás, o padroeiro de um povo cordato que vivia predominantemente de pesca e de catar cravo da Índia. Botavam os cravos a secar em esteiras nas portas das casas.Cidade perfumada. À exceção dos sábados. Sábado era cheiro de estrume dos cavalos, por causa da feira.
 
Por que então, mudamos pra Ibirataia? Porque um homem feio, carrancudo chamado Lourival Dias Lima (que nome...) foi convidar meu pai. Vocês acreditam que esse homem nunca havia visto um aeromodelo? Meu pai fazia aeromodelismo e pendurava os aviões na parede da sala. Enquanto o homem de nome esquisito esperava meu pai para negociar a mudança, pegou um avião e nos perguntou:"o que é isso, pra que serve?" Sutil como um elefante, enfiou o dedo na asa e danificou o avião. Eu, devo ter pensado com meus botões: "essa mudança não vai dar certo"......
 
Por que não adverti o meu pai? Ele era ateu, comunista e não acreditava em premonição. Ainda mais de criança....Mudamos. Aquele cheiro de cacau (dinheiro?) me enjoava. O mesmo da cidade baixa aqui em Salvador nos anos passados. Pra compensar o cheiro de cacau, tinha os "causos" de meu pai. Ele era um contador de "causos". Como eu. Só que eu conto pro caderno. Sim, é um caderno. Herdei a aversão à tecnologia e até hoje não tenho um computador.
 
Ele, não.Contava aos amigos, nas rodas sociais.E era exagerado.Dizem que é mania de pescador.E ele o era, diletante, na casa de Itapoã.Muito pobre, mas tinha uma casa de veraneio, presente de um padrinho rico.Nesta casa trabalhava Chico.Não pode fugir ao relato a informação de que Chico já era um senhor, lá pelos 50 anos talvez.Cuidava da casa em Itapoã e estava muito acostumado a subir nas árvores para pegar frutas.Subia com muita destreza no pé de jaca.
 
Um dia, Chico comunicou, solene:"vou viajar". E o seu interlocutor (devia ser meu avô paterno), obviamente, lhe perguntou:"pra onde Chico, pra onde você vai, e a casa, quem vai cuidar?" e Chico retrucou ainda mais solene: "vou pro Rio de Janeiro. A casa, o senhor dá um jeito por enquanto porque depois eu vou voltar". "Seu" Zacarias (era esse o nome do meu avô) ficou perplexo e mais uma vez perguntou: "mas como, Chico, você vai pro Rio de Janeiro, com que dinheiro?"
 
Chico perdeu um pouco da solenidade, deu um risinho de canto de boca e disse com a maior facilidade: "ô xente, Seu Zacarias, quem disse que eu preciso de dinheiro, eu vou a pé".O meu avô esbugalhou os olhos, perdeu a paciência e disse indignado: "você pensa que o Rio de Janeiro é ali? Ninguém vai ao Rio de Janeiro a pé. Onde já se viu? Você vai morrer de fome ou do coração.Você é maluco?" Então Chico ganhou um certo ar de ironia:"dinheiro pra comida eu tenho. E vocês me bota pra subir nesses pé de árvore tudo e eu nunca morri".
 
Toda a família se envolveu no assunto. Ninguém conseguia demovê-lo. Alguém, numa vã tentativa, ainda arriscou uma última pergunta:"me diga uma coisa, Chico, você vai mesmo pro Rio de Janeiro fazer o quê?" Chico abriu um sorriso largo de quem sabe das coisas:"vou ver o mar".--"Vai ver o mar? você mora defronte do mar, tá no mar toda hora...." --"mas é que o mar de cada lugar é diferente. Quando eu voltar vou contar pra vocês como é diferente". Ninguém mais pôde contestar Chico. A família jamais estivera no Rio de Janeiro. Lá se foi Chico.
 
Passaram-se meses e todos iam ficando tristes. O davam como morto. Um belo dia chega Chico casa adentro. Estava abatido, com as pernas e pés acabados. Tão inchados que até parecia elefantíase. Não se queixou, foi lacônico, disse apenas uma frase:"não disse que é diferente?"
 
Chico demorou a se curar.Foram muitas as infusões de Dona Petronilha, para os íntimos, Santinha. Era minha avó. Quando estava bonzinho da Silva, retomou as lidas da casa e obviamente subiu no pé de jaca. Distraído (quem sabe pensava no Rio de Janeiro?), desequilibrou-se e, catapumba! Lá estava Chico estirado no chão. Teve um enterro solene de homem realizado. "Mais vale um sonho, do que prever o dia de amanhã". Disse meu pai encerrando a narrativa.
 

P.S. Textos extraídos da coletânea de escritos intitulada "CONVERSA  MARCIANA" (2002), de circulação entre amigos.
 

Marcia Gomes.

"Blá, blá, blá domingueiro.... e....textos extraídos. (A Baianada do "Pão de Açúcar" e  SÃO PAULO NÃO PODE PARAR, SENÃO CHORA.

Texto de 01/09/2013


Foto: Itapoan. A Tecer. Artecer. A Arte é Ser Remendo.
Foto: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)



A Baianada do "Pão de Açúcar"

Cheguei ind'agorinha. A cidade é um mistério. Nada mais natural. Vivo mergulhada no mistério desse amor que provoca alianças e rupturas sucessivas. Não fosse esse amor, por que estaria eu aqui? A cidade é um mistério e na minha terra não se usa consultar mapa de ruas. Onde já se viu? Vai-se pelo jeitão da esquina. Foi o que fiz com seu auxílio e com sua cumplicidade.

Eu vivo meio aérea, tomada por esse estado de enamoramento que relativiza as fronteiras da vida, da morte, das ruas. Você não é pessoa chegada a esses entorpecimentos, mas em compensação não é, nem de longe, exemplo de orientação espacial a ser seguido.

Quero me apoderar da cidade, explorar seus cantos mais secretos. Você e a cidade se misturam. Quero a ambas, pessoa e cidade, com pressa. E lá vou eu, certa de que são muitas as minhas identificações com São Paulo. Na primeira saída de carro você me ensina: "a primeira rua de acesso ao centro é esta avenidona. No seu final, fica o "Pão de Açúcar". Tá vendo lá aquela casa escrito "Pão de Açúcar" ? Pois é o seu ponto de referência. Aqui é o cruzamento da Avenida Rebouças com a Avenida Paulista. PASSANDO POR AQUI VOCÊ ESTARÁ NA DIREÇÃO DO CAMINHO DE CASA".

Assim foi feito. Eu estava de férias aguardando a data do exame para o mestrado e o início das aulas na universidade onde eu trabalharia. Pegava o ônibus em Pinheiros e descia, tão logo divisava o "Pão de Açúcar", o tal ponto de referência. Assim fiz as minhas primeiras viagens ao "Belas Artes" e aos cinemas da Paulista. Lindas viagens, de marinheiro, as primeiras. E o meu coração ingênuo, nordestino, deslumbrado com o cinema, nem de longe imaginava o tamanho do amor que é preciso pra conter aquela cidade.

Não tive a curiosidade de olhar o que era o tal "Pão de Açúcar", aquele ponto mágico que me conduzia ao universo cinematográfico, tão sedutor. Senso prático? Nunca tive. Tenho esse defeito dos poetas, sem ter deles, uma qualidade sequer. Ia e vinha e não me aventurava a mudar o percurso. Tentei, é bem verdade, consultar o tal guia com o mapa das ruas. Não consegui.

Um belo dia (pra mim todos os dias em São Paulo são belos), tomei um malfadado ônibus. Até hoje não sei que diabo de ônibus era aquele. O caminho parecia esquisito, demorado, mas tranquilizei-me.Não precisava vencer a timidez para fazer perguntas a quem quer que fosse. Com certeza o caminho era o mesmo e era eu quem o enxergava com novos olhos. Vai ver a minha ansiedade das primeiras vezes me impediu de ver detalhes importantes. Além do mais eu tinha o trunfo do "Pão de Açúcar".

Finalmente, depois de ter visto aspectos do caminho nunca dantes notados, lá estava, fiel (?), o meu ponto de referência. Apressei-me em descer. Era noite. E haja gatos pardos em cidade dest'amanho! Cadê os cinemas, cadê a Paulista? Só podiam ter desaparecido já que o "Pão de Açúcar" estava lá.

Apavorada, desta vez resolvi sobreviver à timidez e perguntei. Estava nas proximidades do Aeroporto de Congonhas. Como a paixão por você e pela cidade excluía explicações psicanalíticas para o fato de ter ido ao aeroporto, concluí, rubra de vergonha, que a melhor explicação era a famosa baianada.

A caminho de casa o taxista explicou-me pacientemente: "o "Pão de Açúcar", minha senhora (ou foi senhorita?), é uma rede de supermercados que fica em muitas e muitas esquinas". Tive a humildade de lhe dar o endereço ao invés de lhe ensinar o caminho de volta pra casa.



                                        SÃO PAULO NÃO PODE PARAR, SENÃO CHORA

Fôra convidada a sair de casa.Por quatro horas não deveria retornar. Obedeci. Aquela casa, você dizia, era também minha. Eu acreditava. Exceto por aquelas quatro horas de expulsão, exceto por não possuir a chave do pega-ladrão. Exceto.....Vai ver era eu o ladrão, desautorizada que me sentia de participar de seus momentos secretos, privados, misteriosos.....A pessoa com quem você iria escrever um artigo não me conhecia. Poderia ficar constrangida com minha presença, você explicou. Eu, certamente, não me sentiria mal com aquela intimação. Era obediente.

Não tinha talvez uma semana de chegada a São Paulo.Ainda estava na fase do "Pão de Açúcar". Peguei o ônibus, desci na Paulista. Tinha quatro horas pra desfilar minha dor pelas calçadas dos Jardins. Por incompetência espacial, não poderia espalhá-la aos quatro ventos. Tinha que escolher ventos que soprassem numa única direção. Que imagem descabida, essa dos ventos. Em São Paulo, eles não sopram, com raríssimas exceções.

Escolhi os Jardins porque assim poderia adotar o "Conjunto Nacional" como ponto de referência. Gosto do "Conjunto Nacional". Tenho a ilusão de que aquela arquitetura é de um tempo onde se faziam compras menos consumistas. Por que não fui ao cinema? Me pergunto. Talvez porque as dores dos personagens de cinema parecem tão grandes, inibem as nossas.

E lá fui eu caminhando. Descia uma rua, e lá em baixo alcançava outra, paralela. Rua tal, Rua qual, Alameda isso, Alameda aquilo; não sou muito de olhar vitrines. Reparava nas pessoas. Eram bonitas, saudáveis, bem cuidadas. Provavelmente tinham todos os dentes. No Nordeste, cedo perdem-se os dentes. E lá se vão, banguelos e inocentes, os nordestinos, cutucar São Paulo, que nem demônio, de vara curta.

As imagens passavam, sem sentido, caleidoscópicas; eu, insistindo em vê-las, sem desfrutá-las. Caminhando em obsessiva obediência.Sentia que não podia parar.Se parasse, o desfile doloroso se tornaria patético. Se parasse, a dor que desfilava com dignidade  poderia, por acintosa, chamar a atenção de curiosos. Agora melhor compreendo a frase: "São Paulo não pode parar".

Não havia mendigos. Nisso reparei. Naquele tempo, a cidade nos resguardava do cruel espetáculo. Escolhia, para exibi-los, pontos menos nobres....A pressa das pessoas me intrigava. Paulistano não sabe passear;passa pelas coisas, não sei se as registra, ou se as usa somente como cenário mutante de alguma tragédia que carrega consigo, e só bem adiante se revela. Eu não sabia por quanto tempo caminhava assim a esmo. Contudo, as mudanças de tonalidade no céu, o ruído aumentando nas artérias principais, sinalizavam a passagem do tempo. Olhei no relógio. Passaram-se as quatro horas. A obrigação se cumprira.

Finalmente, de volta ao "Conjunto Nacional", parei. Olhei do alto a Rua Augusta. Daquele ponto onde eu estacionara a minha alma sombria, a rua era um colar de luzes, de cima abaixo, prismáticas. Lentes de óculos molhadas, provocam uma interessante distorção ótica. Não chovia.



P.S. Textos extraídos do manuscrito "RECORTES", escrito em 1991, onze anos depois das experiências vividas. Minha amiga  Ana Cecília e Virgílio (seu marido), me deram de presente "RECORTES" digitado, com a seguinte dedicatória:
        
        "São Paulo: um lugar, um tempo de ser Marcia. Marcia, tão doídamente generosa que, para encontrar-se a si própria, precisou de um lugar onde tudo fosse novo: no qual ela pudesse, em sua própria vida, mirar-se em um espelho que pudesse retribuir imagens suas: ver-se. Um lugar de renascer. Não é isso São Paulo? Os laços, os recortes, a estrutura ciosamente - em cuidado, ciúme, cio...... - construída e reconstruída, só o foram dessa forma porque se tratava de Marcia, a quem São Paulo teve o privilégio de conhecer. A Marcia a quem queremos tanto, e para quem gostaríamos que o dom da beleza pudesse ser isento de dor. Seria possível? Seria belo? Seria Marcia?
Querida Marcia: nessa passagem da vida, nosso presente para você, presente entre quarentões quase que somos, e abrir um espaço de "fazer presente", conquistado à tirania das horas, rotinas e atribulações do ser adultos, para passear pelas palavras de sua vida em São Paulo e devolvê-las a você numa nova "embalagem". Feliz Aniversário!" 
Outro P.S. Diante desta dedicatória, não posso deixar de dizer: temos que nos conformar. Só os poetas conseguem.
                                                                     
                                                                                                                   Marcia Gomes.  

"Blá, blá, blá domingueiro..." e..."Laços de Família" (plagiando Clarice)


Texto de 25/08/2013

Foto: Taperoá. Marcia Olhando Observadora para Sandra. Sandra, Resoluta.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Quando depois de onze anos de separação meus pais resolveram se entender, ter uma relação amigável em prol dos filhos, a vida nos deu uma rasteira. E que rasteira!  Meu pai frequentava o apartamento minúsculo onde morávamos, almoçava conosco, passava tardes de domingo batendo papo com sua conversa bem humorada, inteligente, instigante. Minha mãe parecia sentir satisfação com a presença dele. Sandra, minha irmã mais velha, casou e logo estava com um barrigão. Acho que foram os anos mais felizes da minha vida.
 
Mas aí veio 31 de janeiro de 1974. E a rasteira. Eu com apenas 21 anos. Solteira, namorado firme, estudando Psicologia e Letras, era feliz. Nosso pai nos buscava todo dia na faculdade. Sandra fazia História.
 
Eu? Enlutada. Havia perdido meu pai há pouco mais de um mês (a rasteira). Ela? Nasceu a fórceps. Quando eu vi aquela pessoinha com um hematoma na cabeça no berçário do hospital, tive uma certeza: embora eu estivesse triste, a partir dali a minha vida nunca mais seria a mesma. E não foi.
 
 Dani, minha primeira sobrinha, foi a minha "operação resgate". Gorducha, olhos como duas bolas de gude azuis. Puxou à minha mãe na cor dos olhos, na pele branca. Fisicamente, nada tinha do seu avô Joaquim. A chegada de Dani foi um bálsamo para a dor da perda. Nos apegamos muito. Eu, tia coruja, (ainda hoje), sempre a chamei de "filhota". Sandra, sua mãe, sempre muito amorosa e protetora comigo, apesar de ser mandona (muito!) não parecia sentir ciúmes. Compreendia, certamente, e respeitava, o lugar que Daniela viera ocupar na minha vida. E foi uma alegria enorme! A primeira vez que se virou no berço, o primeiro balbucio, os primeiros passos, todos os primeiros momentos de se constituir sujeito, aqui, ainda hoje, na minha memória registrados.
 
Sandra, apesar de mandona (muito!) um poço de generosidade: a primeira palavra que Dani disse, foi "titi". Não foi "maman". Minha irmã, parecendo sintonizar com minha dor, talvez achasse que eu precisava daquele mimo, daquela predileção da sobrinha pela tia, para que eu não sucumbisse de saudade de meu pai. Curioso que pareça, quem tinha ciúmes da minha relação com Dani era meu namorado. Os dois se pirraçavam como se tivessem a mesma idade.
 
Quando fui embora pra São Paulo Dani contava apenas seis anos de idade. Talvez, uma inconsequência de minha parte. Seu grande trauma de separação, depois de já haver passado pela dor da separação de seus pais. Se o pai de Dani não pôde estar muito presente, logo viria Alfredo, meu atual cunhado, na verdade seu real pai de fato. Um paizão. Amoroso, cuidador, brincalhão .A gente faz essas bobagens: acho que nunca agradeci a Alfredo (Feu) pela pessoa amorosa, meiga, bem humorada, bom caráter e um gênio no computador que é minha sobrinha Daniela, agora com 39 anos. Obrigada, Feu!
 
Pois é. Estávamos no aeroporto esperando o meu embarque e Dani, num pranto sentido, dizia: "tia, por favor, não vai!" Eu, dentro do avião, chorando muito, não parava de enxergar aquela cena: "tia, por favor, não vai!"Chegando em São Paulo eu ainda chorava de saudade, de culpa por ter deixado a minha filhota. Felizmente ela logo aprendeu a escrever cartas e a viajar sozinha de avião. Além de nos falarmos muito por telefone. O laço se estreitou.
 
Dani cresceu, tornou-se adolescente e nós, confidentes. Quando eu vinha de férias, ela praticamente se mudava para a casa de minha mãe, onde eu me hospedava. Sandra,  que sempre me protegeu, como se adivinhasse em mim uma fragilidade com pedido de uma irmã mais velha sem os fricotes de sensibilidade que eu tenho, nunca se importou.
 
A natureza, o diabetes precoce, as contingências da vida não quiseram que eu tivesse filhos. Mas tenho um casal de adotados:  a minha filhota e Rafael, o colombiano. Vocês acreditam que os dois não se conhecem?  Sandra, Feu e Dani moram em Aracaju.  Sandra tem um salão de beleza. Portanto, as visitas são muito raras. Por falar em salão de beleza, Ilka Bichara, professora de Psicologia na UFBA, já morou em Aracaju e diz a Deus e ao mundo que nunca encontrou aqui uma cabeleireira da qualidade de minha irmã. Somos irmãos competentes. Como o pai, incompetentes pra ganhar dinheiro.
 
Tão protetora e cuidadosa comigo, a minha irmã, que resolveu junto com Feu e Dani virem passar uns dias comigo no fim de semana passado. Nem sei se chovia tão bonitos foram os dias. Nem sei se ventava, tão aconchegantes foram os dias. Nem sei o que se passou lá fora, tamanho foi o aninhamento dentro de casa. Elogiaram o apartamento que não conheciam, elogiaram o vatapá e o sorriso amigável de Nice (minha auxiliar doméstica, um encanto de pessoa) que não conheciam, elogiaram a minha "facilidade" para escrever que sempre conheceram e sobretudo, respeitaram o meu direito à privacidade quanto aos problemas da minha saúde. Vieram mais por conta disso, eu suponho.Mas respeitaram.
 
Feu descobriu que o meu forno de micro-ondas de tão velho, estava soltando radiações deletérias à saúde. Resultado: me deram um novo. Dani, um gênio no assunto, embora eu não goste muito dessas coisas, me ensinou mais ou menos (por conta da minha oligofrenia) a usar o tal do facebook.  Sandra, profissional, lamentou ter esquecido a tesoura. Não sem razão, queria dar um trato no meu cabelo. Tirar o resto de tom de amarelo para deixa-lo todo grisalho. Afinal, sou uma irmã, uma cunhada e uma tia de 60 anos. 
 
Foram uns dias de laço. Todos sem dinheiro, ficamos com prazer dentro de casa assistindo filme na SKY e papeando, papeando, rindo juntos. Trouxeram as fotos dos oitenta anos de minha mãe para eu ver. Elogiaram o desvelo e o carinho com que minha cunhada de Maceió cuida dela. Tiramos muitas fotos. Vieram, a seu modo, me dizer do quão importantes podem ser os laços de família. Nesse momento, seria extremamente injusto se eu dissesse que tenho uma família desunida.
 
Não sei quando nos veremos de novo. Eu, como sempre, na despedida, muitas lágrimas. No dia seguinte, sabem o que fiz? Peguei meu cartão de crédito e comprei um monte de porta-retratos baratos. O que me parecia brega, cafona, é agora meu ritual de resgate.  A minha sala está cheia de fotos de família:  tem minha mãe abraçada ao padre, tem eles três que vieram, tem minha irmã caçula que não vejo, mas adoro, tem sobrinhos, sobrinhos netos. Tem Lula, meu irmão, tão distante.
 
Tem eu e meu pai. Esses,  fotos artísticas, em branco e preto. "Já conheço os passos desta estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor, já conheço as pedras do caminho e sei também que ali sozinho eu vou ficar, tanto pior.....com seus mesmos tristes, velhos fatos que num álbum de retratos eu teimo em colecionar". (Chico Buarque, "retrato em branco e preto").
                                                                           

   Marcia Gomes. 

"Blá, blá, blá domingueiro..." e...MARAvilha!

Texto de 17/08/2013


"...Porque és o Avesso do Avesso do Avesso do Avesso"
Foto de Joaquim Leal Gomes em São  Paulo
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Maria, Mara, Maroca. Ela veio. Papel com endereço anotado por quem, não sei.   Papel com endereço na mão apertado entre dedos.  Papel na mão quase feito em pedaços. Assim ela chegou, sozinha. Como terá adivinhado o ônibus a tomar?Como terá se orientado no emaranhado de ruas? Maroca põe sua inteligência a serviço dos afetos. Um saber que não é livresco, um saber quase como de bichos a aninhar suas crias.
 
Eu, sua cria, a aguardei por mais de uma hora. Abro a porta com a alegria lacrimosa de quem sabe vai revisitar o passado. Muito por causa dela,um passado bom. Ela, miúda, mirrada, muito magra, com cheiro de perfume barato. Perfumada, vestido azul com ares de reservado para ocasiões especiais, brincos e correntes dourados, uma bolsinha de nada, provavelmente só com o transporte,nenhum fio de cabelo branco sequer. Arrumou-se esmeradamente para me visitar.
 
 
Porta aberta e a sua voz inconfundível. Voz, será, não envelhece? --Me atrasei, né, Màcia? Foi o ônibu.  Noto, como na primeira vez que a encontrei por acaso quando eu comprava a planta para o consultório, a necessidade de franzir o cenho, comprimir as pálpebras para melhor divisar minha silhueta. Dou o abraço agradecida a quem me guiou com o candeeiro até a luz elétrica chegar. Abraço para mitigar a saudade daqueles tempos negros como a cor de sua pele, em que descendo vielas, subindo vielas às escondidas no Bairro do Alto das Pombas, pudemos dar uma trégua lúdica à dor da trágica separação de meus pais.
 
Abraço minha história. Faço pazes. Logo Maria está sentada no sofá.  Sua risada, ainda que lhe faltem dentes, inconfundível. Risada, será, não envelhece? --Mácia, você ainda tem a mesma cara de quem gosta de chorar. Você se alembra daquele namorado seu que o pai morreu e você se acabou de chorar? Mácia, você já gostava de um hôme véio!Aquele seu namorado que o pai morreu não era perto da idade de seu pai?  Falta, né, Mácia, muita falta de seu pai. Mal contenho o choro com a sensibilidade de Maroca. Pra disfarçar, sorrio das suas incursões psicanalíticas. --Doutô Joaquinho, êta mulato bonito, quando fazia supermercado com Sandra, comprava carne sertão pra mim. Seu pai era hôme bom .E quem vai dizer isso a Dona Mira, né Mácia? Dá uma risada farta. ---Só se quiser a inimizade dela. Outra risada farta.
 
Assim eu e Maroca enveredamos por um labirinto de recordações muito vívidas, quase disputando de qual das duas a memória é mais irrepreensível. Ela me conta que  tem sete filhos, várias netas e netos e dois bisnetos. Baixa a vista e embarga a voz para dizer que ficou magra assim por ter perdido um neto que se envolveu com drogas . Faz questão de garantir que todos os seus filhos e filhas e demais netos são direitos, do bem. Ela mora com Sandra, sua filha mais velha, que não casou. ---É ela que me mante, Mácia. Mas não tenho queixa de meus filhos. Tudo são bom pra mim.
 
Conta que há muitos anos se separou de Nêgo e "com poucos tempo ele faleceu.". Coloco Maria para falar ao telefone com Sandra, minha irmã mais velha, sua comadre que mora em Aracaju. Uma longa conversa. Sandra se emociona muito.
 
E assim passamos umas três horas conversando, eu e Maria, como se não fosse possível que tantos anos tivéssemos passado sem nos ver. O que pode ser a passagem do tempo diante da densidade da experiência? Me sinto acalentada por aquela presença cálida. Quase sinto vontade de pedir a ela que não vá embora, jamais. Aquela pessoa na minha casa me conta que eu fui feliz, em meio à dor. Que talvez pra ser feliz, em meio à dor, é preciso uma operação de resgate de pequenas coisas do cotidiano, que parecendo supérfluas, quando se sai da penumbra com a chegada da luz elétrica, ficam irresgatáveis.
 
Aquela senhora, idosa, na minha casa, mais que a psicanálise, mais que o cinema,  a literatura, mais que meus pacientes, meus amigos, meus amores,me deu a verdadeira medida da importância que eu possuo como ser humano. Me contou que os anos que vivemos juntas foram especialíssimos para cada uma de nós. Que importa a passagem do tempo?  Daí, cada detalhe do labirinto de recordações ter significado ímpar, ser rememorado com uma generosidade quase desconcertante, porque a gente desmonta quando é muito grande a comoção.
 
Eu não soube entender como chegar à casa dela, não tem telefone.  Se foi, prometendo me ligar. Levou, consigo, o fio de Ariadne. Eu, presa no labirinto, até quando?  Um último abraço e fica em meu corpo o cheiro maternal de seu perfume barato. Até breve, Maroca! Deus lhe abençoe.
                                                                                                   
                                        Marcia Gomes.