quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro......"e.....Textos extraídos. ("Conversa Marciana" e "Declaração de amor II")
 
 
 
Texto de 13/10/2013 

 
Foto: Debruçar-se.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)
 
 
 CONVERSA  MARCIANA


Um encontro com Ana Cecília. Foi assim que aconteceu : eu dizia que comida mexicana era boa e ela dizia que não gostava daquela comida. Sem muita insistência, venci a contenda. Pedimos um taco cada uma. Ela gostou tanto que repetiu.

Nem sempre a gente repete quando gosta tanto. Às vezes, a gente se repete e não gosta nada. Mas isso é papo que deve escapar a essas linhas que não quero pesadas. Quero-as leves.

E falávamos, eu e Ana, de Drummond. A propósito de seu centenário, a propósito de uma palestra que ela faria sobre ele. Contamos uma à outra como foi o nosso primeiro encontro com Drummond. Sim, porque embora ele fosse parcimonioso em assuntos de encontros, ele nunca se furtou a estar conosco. E, mais ainda, foi ele quem promoveu o primeiro encontro entre nós duas. A primeira vez que fui à casa de Ana foi para conhecer o seu volume da obra completa. Velho como o meu.

Só para dar uma idéia, estávamos em 1972 e meu primeiro encontro com Drummond aconteceu quando eu contava apenas 12 anos. Eu tinha medo da escola pública. Eu tinha mesmo medo de escolas. Pois se só fui frequentar uma aos 10 anos !  Antes era professora particular. Então na escola pública minha mão pingava na sala de aula. Até parecia que eu estava no "Congresso Internacional do Medo". Mas estava apenas numa sala de aula cheia de adolescentes às vezes muito mais velhos que eu, muito mais espertos e maliciosos que eu.

Abrindo um parêntese, olhei agora para um retrato de Freud que tenho no meu mural. Senti um pouco de medo da severidade de seus julgamentos. Mas isso é coisa de adolescente de doze anos. A mesma cujo pai sugeriu que lesse Freud aos dez. Mas sejamos leves. O olhar de Freud no meu mural é compassivo, doce.

Se minha mão pingava na sala de aula, quiçá no recreio. Eu não me aventurava. Ficava na sala rezando que a próxima aula viesse logo. E um dia veio. Ela se chamava Ana Maria. Não deve ser à toa que as minhas mais antigas amigas se chamam Ana. Ana Maria, a professora de Português, era alta, magra, morena e muito mais coisa que a minha memória não alcança mais. Mas a memória nunca perde o alcance do que soa. A voz de Ana Maria era como o olhar de Freud. Doce. E com a doçura de quem sabe estar fazendo uma reverência, ela distribuiu uns papéis.

Era uma crônica. Chamava-se "Conversa de Velho com Criança". E era Drummond. E o que eu fiquei sabendo de Drummond naquele dia? A candura. Ai que palavra dura de tão cândida!  Era Drummond. Uma dureza cândida. Na crônica, a cumplicidade tão sutilmente construída, do velho Ferreira com as estripulias da menina no bonde, foi secando a minha mão e me encharcando por dentro de dor bonita. A dor do belo. Não havia mais nada senão Drummond. O meu Ferreira.

Depois da aula lá estava eu no recreio pela primeira vez. A minha mãe sem que nada soubesse, no mesmo ano me presenteou com a obra completa em papel bíblia. Não tinha dinheiro mas vendia livros de literatura batendo de porta em porta. Não pensem que perdi meu medo de recreios, reuniões sociais e coisas que tais. Se preciso ir, penso na dor bonita de ser "gauche". Penso em Drummond. Vou em frente.


P.S.1 Texto extraído dos escritos intitulados CONVERSA  MARCIANA (Salvador, 2002) para circulação entre amigos.
 
 
 

                                                          DECLARAÇÃO  DE  AMOR  II
 


Para cada um, o sorriso, o enternecimento, a alegria do outro era o bem mais caro. Com o fervor próprio dos apaixonados nos dedicávamos, entregues, a intermináveis jogos de encantamento. Em nossa busca, era como se escavássemos um poço de delícias que não se esgota. Havia sempre uma nova forma de dizer "gosto de você". Estávamos apaixonados.

Naquela época você trabalhava na Avenida Santo Amaro. Meu consultório, no Itaim Bibi. Almoçávamos juntos quase todo dia. Eu lhe pegava no trabalho e aproveitávamos aquela horinha sagrada, nossa, para pormos os corações em dia. Falávamos de tudo. Sua literatura, nossas descobertas profissionais, as nossas alegrias, nossas dores.

Às vezes brigávamos. Brigávamos feio. Eu tenho o péssimo defeito de confundir o outro em momentos do afeto mais delicado. Por medo. O seu defeito, explodir intempestivamente quando se sente ameaçado. Também nos permitíamos fazer silêncio, esse comovido cúmplice da intimidade.

Era véspera do meu aniversário. Você telefonou, todo esbaforido, para fazer duas estranhas perguntas. Queria saber o tipo de açúcar que podem usar os diabéticos. Respondi, e, curiosa, quis saber porque. Segundo me disse, você estava obtendo informações para construção de um personagem. A segunda estranha pergunta era : "que horas são"? Para a qual você pretextou alguma coisa convincente que eu não me lembro mais. A ela não respondi, ou melhor, respondi que não podia respondê-la. Meu relógio havia quebrado e eu não comprara outro ainda. O seu tom de voz ao telefone era de menino peralta que não quer ser pego no pulo. Sou meio lerdazinha. Nesses momentos do afeto mais caro, fico meio retardada. Em seguida você me ligou de novo, convidando para almoçarmos juntos no dia seguinte. Embora o fizéssemos diariamente, aquela data era especial e merecia convite. Topei. Não havia melhor forma de celebrar meu aniversário.

Você entrou no carro portando uma sacola como se fosse uma bomba. Proibida a mais longe intenção de tocá-la. Você fazia malabarismos corporais para carregá-la. Todo o mistério existencial parecia residir ali. Inibindo qualquer manifestação de curiosidade a respeito, você explicou ser o conteúdo da sacola coisa pessoal, indevassável. Portanto, nada de perguntas. Concordei, intrigada. Almoçamos. Teria você esquecido meu aniversário? Não o mencionou, a não ser um beijinho de cumprimento, nenhum afago. E o meu abraço? Eu já ensaiava o momento de reivindicá-lo, chegando perto de ficar magoada. Frustrada com o possível esquecimento, eu já nem me dava conta daquele insólito objeto que se interpunha na nossa relação, ameaçador, porque secreto.

Mencionei a vontade de pedir uma sobremesa, adiando reclamar o meu abraço. Estranho, você quase suplicou que eu não a pedisse. Estranho mesmo. O abraço tornava-se inadiável. Tínhamos horário para voltar ao trabalho. Para chegar ao cúmulo da esquisitice, você me perguntou se eu não queria ir ao toalete. Concordei mais por obediência do que por necessidade. Intuí estar naquela ida ao toalete a chave de todo o mistério. Apressei-me em ir, ansiosa que estava para que fosse posto fim àquela enigmática forma de celebração, desconcertante.

Voltei do toalete mais que depressa. Você não estava na mesa. Escondido, me espionava de algum canto do restaurante. Sobre a mesa, um maravilhoso bolo de aniversário, um cartão e um presente. Era um relógio. Como não percebi? Sou mesmo lerdazinha. "Pra você lembrar o tic-tac de um coração que lhe adora", dizia o cartão.

Você se aproximou sapeca, orgulhoso. Não era pra menos. Era o autor do bolo, dietético. Ficara até a madrugada exercendo seus dotes culinários. Era irrepreensível, o resultado. Repreensível é fazer tanto suspense, quase me matar de susto para me dar um abraço. É que além de lerda, eu gosto às vezes de surpresa.
 


P.S.2 Texto extraído de RECORTES (Salvador, 1991). Escritos para circulação entre amigos.
                                                                               
 
       Marcia Gomes.
                                                        

Nenhum comentário:

Postar um comentário