quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro....." e.......Mara à vista.


Texto de 03/08/2013

Foto: Coluna por Um.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Quinta-feira, um dia em que não trabalho. Coisas a resolver. Me deixar surpreender pelo inesperado. De repente, revirar o baú, como diz uma amiga minha. Antes da resolução de coisas, concluo a leitura de um romance de tom policialesco que fala de um suposto segredo do poeta chileno Pablo Neruda. Livro ambientado na época do golpe de Pinochet. Nesses tempos nem sempre fáceis de agora, que aceito com quietude ter às vezes que ficar em casa, tenho buscado me permitir coisas diferentes: não ser obsessivamente tão estudiosa, ainda que isto recolha  algumas ironias. Dói, mas passa. Mudar meu gosto literário. Houve tempo em que só conseguia me entreter com leituras intelectualmente muito complicadas. Hoje, posso me dar conta, um romance policial despretensioso pode ser bem escrito e instrutivo.Até assistir novela tenho me permitido. Pois é....me deixar surpreender pelo inesperado.
 
Concluído o romance, saio em busca de uma planta  para meu consultório. Escolho-a tomada pelo ritualesco critério de evitar ao máximo deixá-la morrer. Tudo o que eu quero é uma planta que viva tanto quanto possível. Não é bom que  morra fácil. Também deve ser doído se deixar morrer.....
 
Conversei longamente com o vendedor de planta. Curiosa, perguntei sobre as condições necessárias à sobrevida desta e daquela. Perguntei o nome desta e daquela. O vendedor, como eu, era dessas pessoas que amam o próprio trabalho. Respondia às minhas perguntas com genuínos entusiasmo e interesse. Isso me tocou. Pensei que ele sofreria no caso de se ver destituído do seu ofício. Em meio à conversa, escolhi a planta. Ele a segurava com cuidado enquanto descíamos uma escada enorme e uma rampa íngreme, a caminho do lugar onde eu esperaria o táxi que nos viria acolher. A mim e à planta. Será que ela se acomodaria ao táxi?  Por razões poéticas (borgeanas), não dirijo mais........
 
Lances de família que não importam agora, e, aos dez anos de idade, mudei-me, junto com minha mãe e meus irmãos, para a casa de meus avós maternos. Nos alojamos num apartamento que ficava no subsolo, no bairro da Graça. Não achei a menor graça. Portanto, foi provavelmente num dia triste que Maria, "Maroca", "Mara" adentrou a nossa casa. Negra, muito negra, músculos rijos, olhos miúdos e brilhantes, um sorriso luminoso- que dentes, meu Deus! - baixinha, uns vinte anos talvez. O contraste da sua pele com os seus dentes impecavelmente brancos era tal e qual a lagôa do Abaeté em contraponto às suas dunas, nos tempos de Dorival Caymmi. (Outra coisa que tenho me permitido nos últimos tempos, é escrever errado. Simplesmente esqueço como se escreve. Sequer estudei ainda a tal reforma na ortografia da Língua Portuguesa.Continuo acentuando tudo que me dá na telha.E ponto final).
 
 Mara viria a ser nossa empregada doméstica. Tardia, é bem verdade, mas também uma espécie de babá, particularmente para minha irmã caçula. Maroca cozinhava (adorava fazer bife à milanesa), arrumava, lavava, passava e principalmente tomava conta da gente quando minha mãe saía a trabalhar. Assim começou o nosso namoro com esta moradora do bairro do Alto das Pombas e com as idiossincrasias da sua cultura, de seu modo de estar no mundo,de seus maneirismos linguísticos.
 
Quando minha mãe não trabalhava, jamais ficamos tão íntimos de uma empregada doméstica. Mara chamava à sua sogra -- mãe de "Nêgo", seu parceiro amoroso-  de "Véia do tibero". Suponho, "Velha do Tibério". É que a mãe de "Nêgo" vivia aos tragos com um cachimbo do qual não largava mão. Ficamos sabendo disto quando Maria, escondido, nos levou a visitar a tal "véia", no seu barraco. Para a tal visita, subimos vielas, descemos vielas, vimos crianças como nós brincando nos esgotos, carregando nuas bacias d'água. Maria, a tudo explicava com graça, humor. Era risonha e amorosa. Nos trouxe alegrias, muitas. Um privilégio termos acesso àquele universo cultural particular, numa leitura carregada de naturalidade, destituída de preconceitos. Muito mais divertido e eficaz do que o discurso comunista de nosso pai. Muitas foram as nossas idas ao Alto das Pombas, às escondidas, na companhia de Maroca.
 
Maria deu à luz a vários rebentos. Talvez uns seis ou sete. Aos quatro primeiros batizou com nossos nomes. Que homenagem!  Devia ser no mínimo curioso para os seus amigos, vizinhos,moradores do seu bairro, ver crianças daquela cultura com nomes tão pouco familiares, nomes esquisitos de gente de classe média. Mara, mais do que fiel à sua origem proletária,era fiel a seus afetos.
 
Quando nasceu sua primeira filha, Sandra (nome da minha irmã mais velha), Maroca precisou deixar de trabalhar em nossa casa. Tanto quanto zelosa conosco, zelosa com sua prole. Mas acompanhamos de perto a sua gestação, fizemos chá de bebê e, juntos com Nêgo, a acompanhamos à maternidade. Com a sua saída para cuidar de Sandra a nossa amizade só se fortaleceu.
 
Continuamos nos frequentando, sendo a sua filhinha, motivo a mais para o bem querer. Assim, ela acompanhou de perto minha iniciação amorosa. Conselheira, ficava  amiga dos meus namoradinhos. Auxiliou, e muito, na preparação da minha festa de 15 anos. Mudamos de casa algumas vezes e até depois do falecimento de meu pai, Maria continuava uma presença amorosa nas nossas vidas. Recordo, vivamente, ela contando muitos "causos" a meu noivo, dando com ele muita risada gostosa. Com seus dentes bonitos e seus olhos vivazes,Maria emprestou alegria  às nossas vidas,como se com um candeeiro na mão nos guiasse, afastando, sempre que possível, a escuridão dos tempos sombrios, na falta de luz elétrica.
 
Novos tempos, e não sei como, certamente sem palpável por que (terá chegado a luz elétrica?),"Maria de Nêgo" desaparece da minha vida.(Ou foram as luzes de neon do Sul Maravilha, nas quais nos perdemos?)...........................
 
 ............ eu e o vendedor com o vaso da planta apoiado sobre o chão. O taxi se aproxima. No exato momento em que o taxi para, meu olhar cruza quatro pessoas passando lentamente na calçada. Todas negras. Três jovens bonitas, de músculos rijos, parecendo se submeter, dóceis, ao ritmo de caminhada de uma senhora muito baixinha, mirrada. Porque são lentas,posso fixar meu olhar. Escolho a senhora. Um clarão de inesperado me proíbe entrar com a planta no taxi. Faço sinal para o motorista esperar, aceno para ela que segue, lenta, quase me abandonando:  --Êi, êi, êi! Você não é Maria? Ela,olhos baços, alguns dentes faltando, franze o cenho, comprime as pálpebras em busca de reconhecimento. Eu lhe pareço distante. Noto que em vão apura os ouvidos. Uma das jovens bonitas vem em meu socorro:  ---É, o nome dela é Maria. ---Mara, Maroca, eu sou Marcia!  Comprime as pálpebras:  ---"Mácia, a filha de Dona Mira?" e me dá um abraço. ---"Mácia, cadê você? cadê Chicorel?" Me permito fazer um pouco de poesia:  ---Mara, Chicourel perdeu-se nas brumas do passado.
 
 Dou-me conta que as jovens, suas netas,há instantes, já devem demandar uma explicação. Me apresento.  O vendedor de planta e o taxista me aguardam.  Assistem à cena.  Perplexos?  Eu, Maria e suas netas conversamos uma "hora da saudade" assombradas pela pressa. O motorista faz ar de impaciência.
 
Convido Mara para ir à minha casa, enquanto noto que ela, olhos baços, praticamente não enxerga mais. Me pede para escrever meu endereço. Ninguém tem caneta. Quase desamparada, encontro meu cartão no fundo da bolsa e entrego a ela. Olha para o cartão desanimada. Me despeço lamentando ter esquecido caneta em casa.Dentro do taxi uma onda de desapontamento me oprime o peito. Penso:  ---com o tamanho de letra que tem aquele cartão, jamais verei Maria outra vez. Então, como sempre faço pra dissipar a tristeza, recorro à poesia: --- Fazer o que? Como eu, Maroca é borgeana.
 
P.S.1. Algumas semanas se passaram desde o meu encontro com Maria. Desolada (esta é a palavra), penso que não mais a verei. Pra que se dá um cartão de visita a uma moradora do Alto das Pombas? Letras tão microscópicas?  Por que me deixei tomar pela pressa do taxista?  A pressa de todos nós.  Hoje, sábado, dia 3 de agosto, às 17:00h, fazendo no computador esse texto, exatamente quando acabo de escrever "todas negras", toca o telefone. Uma mulher se identifica como amiga de Maria , anota meu endereço e passa o telefone a ela. Virá me visitar amanhã.  Borges, por ser cego, jamais deixou de  escrever ou ler.  A planta? Sobreviverá.
 
P.S.2. Coincidência: Maria me telefonar justo na hora que escrevo sobre ela.  Coincidência?  Escrever, o que será? Pra que  será escrever?

                                                                                                     Marcia Gomes.

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