quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro..." e..."Laços de Família" (plagiando Clarice)


Texto de 25/08/2013

Foto: Taperoá. Marcia Olhando Observadora para Sandra. Sandra, Resoluta.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Quando depois de onze anos de separação meus pais resolveram se entender, ter uma relação amigável em prol dos filhos, a vida nos deu uma rasteira. E que rasteira!  Meu pai frequentava o apartamento minúsculo onde morávamos, almoçava conosco, passava tardes de domingo batendo papo com sua conversa bem humorada, inteligente, instigante. Minha mãe parecia sentir satisfação com a presença dele. Sandra, minha irmã mais velha, casou e logo estava com um barrigão. Acho que foram os anos mais felizes da minha vida.
 
Mas aí veio 31 de janeiro de 1974. E a rasteira. Eu com apenas 21 anos. Solteira, namorado firme, estudando Psicologia e Letras, era feliz. Nosso pai nos buscava todo dia na faculdade. Sandra fazia História.
 
Eu? Enlutada. Havia perdido meu pai há pouco mais de um mês (a rasteira). Ela? Nasceu a fórceps. Quando eu vi aquela pessoinha com um hematoma na cabeça no berçário do hospital, tive uma certeza: embora eu estivesse triste, a partir dali a minha vida nunca mais seria a mesma. E não foi.
 
 Dani, minha primeira sobrinha, foi a minha "operação resgate". Gorducha, olhos como duas bolas de gude azuis. Puxou à minha mãe na cor dos olhos, na pele branca. Fisicamente, nada tinha do seu avô Joaquim. A chegada de Dani foi um bálsamo para a dor da perda. Nos apegamos muito. Eu, tia coruja, (ainda hoje), sempre a chamei de "filhota". Sandra, sua mãe, sempre muito amorosa e protetora comigo, apesar de ser mandona (muito!) não parecia sentir ciúmes. Compreendia, certamente, e respeitava, o lugar que Daniela viera ocupar na minha vida. E foi uma alegria enorme! A primeira vez que se virou no berço, o primeiro balbucio, os primeiros passos, todos os primeiros momentos de se constituir sujeito, aqui, ainda hoje, na minha memória registrados.
 
Sandra, apesar de mandona (muito!) um poço de generosidade: a primeira palavra que Dani disse, foi "titi". Não foi "maman". Minha irmã, parecendo sintonizar com minha dor, talvez achasse que eu precisava daquele mimo, daquela predileção da sobrinha pela tia, para que eu não sucumbisse de saudade de meu pai. Curioso que pareça, quem tinha ciúmes da minha relação com Dani era meu namorado. Os dois se pirraçavam como se tivessem a mesma idade.
 
Quando fui embora pra São Paulo Dani contava apenas seis anos de idade. Talvez, uma inconsequência de minha parte. Seu grande trauma de separação, depois de já haver passado pela dor da separação de seus pais. Se o pai de Dani não pôde estar muito presente, logo viria Alfredo, meu atual cunhado, na verdade seu real pai de fato. Um paizão. Amoroso, cuidador, brincalhão .A gente faz essas bobagens: acho que nunca agradeci a Alfredo (Feu) pela pessoa amorosa, meiga, bem humorada, bom caráter e um gênio no computador que é minha sobrinha Daniela, agora com 39 anos. Obrigada, Feu!
 
Pois é. Estávamos no aeroporto esperando o meu embarque e Dani, num pranto sentido, dizia: "tia, por favor, não vai!" Eu, dentro do avião, chorando muito, não parava de enxergar aquela cena: "tia, por favor, não vai!"Chegando em São Paulo eu ainda chorava de saudade, de culpa por ter deixado a minha filhota. Felizmente ela logo aprendeu a escrever cartas e a viajar sozinha de avião. Além de nos falarmos muito por telefone. O laço se estreitou.
 
Dani cresceu, tornou-se adolescente e nós, confidentes. Quando eu vinha de férias, ela praticamente se mudava para a casa de minha mãe, onde eu me hospedava. Sandra,  que sempre me protegeu, como se adivinhasse em mim uma fragilidade com pedido de uma irmã mais velha sem os fricotes de sensibilidade que eu tenho, nunca se importou.
 
A natureza, o diabetes precoce, as contingências da vida não quiseram que eu tivesse filhos. Mas tenho um casal de adotados:  a minha filhota e Rafael, o colombiano. Vocês acreditam que os dois não se conhecem?  Sandra, Feu e Dani moram em Aracaju.  Sandra tem um salão de beleza. Portanto, as visitas são muito raras. Por falar em salão de beleza, Ilka Bichara, professora de Psicologia na UFBA, já morou em Aracaju e diz a Deus e ao mundo que nunca encontrou aqui uma cabeleireira da qualidade de minha irmã. Somos irmãos competentes. Como o pai, incompetentes pra ganhar dinheiro.
 
Tão protetora e cuidadosa comigo, a minha irmã, que resolveu junto com Feu e Dani virem passar uns dias comigo no fim de semana passado. Nem sei se chovia tão bonitos foram os dias. Nem sei se ventava, tão aconchegantes foram os dias. Nem sei o que se passou lá fora, tamanho foi o aninhamento dentro de casa. Elogiaram o apartamento que não conheciam, elogiaram o vatapá e o sorriso amigável de Nice (minha auxiliar doméstica, um encanto de pessoa) que não conheciam, elogiaram a minha "facilidade" para escrever que sempre conheceram e sobretudo, respeitaram o meu direito à privacidade quanto aos problemas da minha saúde. Vieram mais por conta disso, eu suponho.Mas respeitaram.
 
Feu descobriu que o meu forno de micro-ondas de tão velho, estava soltando radiações deletérias à saúde. Resultado: me deram um novo. Dani, um gênio no assunto, embora eu não goste muito dessas coisas, me ensinou mais ou menos (por conta da minha oligofrenia) a usar o tal do facebook.  Sandra, profissional, lamentou ter esquecido a tesoura. Não sem razão, queria dar um trato no meu cabelo. Tirar o resto de tom de amarelo para deixa-lo todo grisalho. Afinal, sou uma irmã, uma cunhada e uma tia de 60 anos. 
 
Foram uns dias de laço. Todos sem dinheiro, ficamos com prazer dentro de casa assistindo filme na SKY e papeando, papeando, rindo juntos. Trouxeram as fotos dos oitenta anos de minha mãe para eu ver. Elogiaram o desvelo e o carinho com que minha cunhada de Maceió cuida dela. Tiramos muitas fotos. Vieram, a seu modo, me dizer do quão importantes podem ser os laços de família. Nesse momento, seria extremamente injusto se eu dissesse que tenho uma família desunida.
 
Não sei quando nos veremos de novo. Eu, como sempre, na despedida, muitas lágrimas. No dia seguinte, sabem o que fiz? Peguei meu cartão de crédito e comprei um monte de porta-retratos baratos. O que me parecia brega, cafona, é agora meu ritual de resgate.  A minha sala está cheia de fotos de família:  tem minha mãe abraçada ao padre, tem eles três que vieram, tem minha irmã caçula que não vejo, mas adoro, tem sobrinhos, sobrinhos netos. Tem Lula, meu irmão, tão distante.
 
Tem eu e meu pai. Esses,  fotos artísticas, em branco e preto. "Já conheço os passos desta estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor, já conheço as pedras do caminho e sei também que ali sozinho eu vou ficar, tanto pior.....com seus mesmos tristes, velhos fatos que num álbum de retratos eu teimo em colecionar". (Chico Buarque, "retrato em branco e preto").
                                                                           

   Marcia Gomes. 

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