quinta-feira, 3 de outubro de 2013


"Blá, blá, blá domingueiro..." e...textos extraídos. (Adivinhe e Imaginação).


Texto de 29/07/2013 


Foto: Marcia no colo da mãe olhando perplexa para mim | Depois de ter-se visto no espelho. O que me pergunta?
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam) 

                                                         ADIVINHE


Palavra, coisa que não é coisa. É grafo, signo, som, mistério. Palavra que se interpõe entre mim e o outro e delineia contornos. Não fosse assim, não os veria. Porque nasci míope. Foi uma licença poética que me fez a natureza pra tomar gosto pelo impressionismo. Quando eu tinha uns quatro anos, minha mãe usava uma saia de fundo preto com umas manchas lindas em tons róseos. Não havia contornos. Eram borrões. Eu adorava aquela saia, somente até quando passei a usar óculos. Perdeu-se a saia de minha mãe. Aquela com umas rosas enormes, espalhafatosas, não era mais. Cedo nos faltam as belas coisas da mãe.

Então, precocemente, por causa da quase cegueira, tornei-me muito auditiva. As palavras eram o meu guia. Pode ser um pouco estranho para uma criança, mas, às vezes, alguém falava comigo e eu abstraía os fatos, o enredo, e ficava a viajar no efeito sonoro das palavras, em como eles se combinavam, e ficava encantada. Não pensem que eu era uma criança distraída. Captava a mensagem. Apenas a mensagem era o fundo e a figura, palavra. Também, tendo um pai que adorava brincar com palavras.....Era o rei do chiste, do trocadilho.

Eu fui uma criança um tanto solitária, porém, faladeira. E aos sete anos, quando o mundo parecia ruir sobre a minha cabeça, eu adquiri o hábito de sentar na varanda da nossa casa no interior e contar histórias pra mim mesma. Eu as inventava. Alguns adultos, às vezes, se preocupavam. Uma menina que se deleitava inventando histórias para si mesma, podia ser talvez problemática. Problemas? Não me faltavam, é bem verdade. Mas é que eles não sabiam que a "cura" se dá pela palavra.

Pois é, palavra, palavra, palavra.....e a minha mãe conta que eu tinha dois pra três anos e ela brincou comigo dizendo com algo escondido nas mãos: "adivinhe o que eu tenho pra lhe dar?"  E eu retruquei :"o que é adivinhe?"  Ela insistiu: "você não quer a coisa? adivinhe!"  E eu de novo: "o que é adivinhe?"  Como qualquer boa mãe faria, a minha queria me premiar com uma coisa bonita, certamente. Sem querer me negava a palavra. Como poderia intuir que tinha uma filha "torta", na falta de melhor adjetivo?  Me cansei do jogo e disse, birrenta: "eu não quero a coisa e já adivinhei o que é adivinhe". Assim ela me contou.        
 


     IMAGINAÇÃO


Acabo de chegar de uma palestra da minha amiga A.C. sobre Drummond. Foi bonito. Sobretudo como A. estava enrubescida de comoção. Na saída, disse a K., outra amiga querida, o quanto desejei dar meu depoimento sobre o meu encontro com Drummond e o quanto fiquei acanhada de fazê-lo. Então K. recitou para mim um poema de Cecília Meireles intitulado "Timidez".   Adorei saber que K. recita poemas.

No caminho de volta para casa vinha pensando: "por que me atrevo a escrever agora? por que já escrevi tanto, na vida?" Não seria desrespeito ao talento de Drummond?  À sua intimidade com as palavras, à sua dura fidelidade ao sentimento do mundo, à sua irrepreensível lição das coisas?  Talvez. Não sei. Só sei que de certa forma fui salva pelas histórias que contava pra mim mesma e peguei este gosto brabo de converter experiência em escrito. Gosto, não. Mais do que gosto:necessidade. Porque no fundo essas historietas me incomodam. Assim circunscritas a um mundinho tão pueril. Creio que maior seria o incômodo, se não as escrevesse. Porque meu mundo é pueril, mas vasto.  É, meu mundo é vasto e eu sequer me chamo Raimundo. Meu pai me apelidava de "Telebrevindas". E isso só me lembra um radar. Me sinto um radar; uma coisa vibrátil que se escoa em palavras ou que se esconde em palavras, que seja. Sei que é urgência contar. Também, o que dizer de uma criança cujo pai apelida carinhosamente de "Telebrevindas"? Uma palavra inventada que não tem significado senão para nós mesmos. Soa radar. Soa captar à distância e precisar devolver com brevidade, como se os sensores não suportassem reter a informação por muito tempo senão podem estourar, se fazer em mil pequenos pedaços voláteis. Morrer sem o socorro do escrito, das palavras.

Escrevo, porque só a escrita me autoriza a imaginar. Como posso saber que adivinhei o que é "adivinhar" aos dois anos? A memória trai. A escrita, nunca!  E se não tomo como narrativa o que aconteceu, então o que aconteceu, aconteceu. Então enlouqueço. Felizmente o que aconteceu está fenomenologicamente perdido. Só nos resta recordar e fingir que o discurso espelha a realidade, quando nos convém. Escrevo porque dói saber que fenomenologicamente estamos mentindo o tempo todo. Então, é mais suave inventar.

Quando eu era criança, em Ibirataia, estava com meus irmãos sentada ao batente do fundo da casa e minha mãe fazia graça pra gente. Caretas divertidas. Nós ríamos muito. Depois, num momento seguinte, ela se levantava e começava a bailar pela casa inteira e ficávamos encantados. Ela cantarolava e fazia rodopios graciosos, levantava a perna, articulava-a em seguida, erguia os braços e juntava as mãos lá em cima.

Durante anos eu guardei comigo a imagem daquele momento mágico.A mãe que em meio à dor, nos divertia com arte. Já adulta, perguntei a ela se lembrava daquele dia. Descrevi a cena. Ela respondeu: "eu não me lembro de nada disso.  É pura imaginação sua. Seu mal é ter muita imaginação". É a memória de minha mãe contra a minha?  Não. Penso que não. Apenas uma diversidade de histórias.
 



P.S.1.
Fico com vontade de dizer a vocês que em 2002, quando escrevi "Imaginação", embora já fosse analisante, eu sequer vislumbrava a possibilidade de ocupar o lugar de analista e nada conhecia sobre recordações encobridoras. Eu era ainda uma terapeuta cognitivo-comportamental. "Diante da literatura a psicanálise se verga em silêncio." (frase minha em "ENRIQUECEDOR"-2002)
 
P.S.2.
Textos ("ADIVINHE" e "IMAGINAÇÃO") extraídos de "CONVERSA MARCIANA" (escrito de circulação entre amigos- 2002)

                                                                                              Marcia Gomes.

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