quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro.... e....textos extraídos. (A Baianada do "Pão de Açúcar" e  SÃO PAULO NÃO PODE PARAR, SENÃO CHORA.

Texto de 01/09/2013


Foto: Itapoan. A Tecer. Artecer. A Arte é Ser Remendo.
Foto: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)



A Baianada do "Pão de Açúcar"

Cheguei ind'agorinha. A cidade é um mistério. Nada mais natural. Vivo mergulhada no mistério desse amor que provoca alianças e rupturas sucessivas. Não fosse esse amor, por que estaria eu aqui? A cidade é um mistério e na minha terra não se usa consultar mapa de ruas. Onde já se viu? Vai-se pelo jeitão da esquina. Foi o que fiz com seu auxílio e com sua cumplicidade.

Eu vivo meio aérea, tomada por esse estado de enamoramento que relativiza as fronteiras da vida, da morte, das ruas. Você não é pessoa chegada a esses entorpecimentos, mas em compensação não é, nem de longe, exemplo de orientação espacial a ser seguido.

Quero me apoderar da cidade, explorar seus cantos mais secretos. Você e a cidade se misturam. Quero a ambas, pessoa e cidade, com pressa. E lá vou eu, certa de que são muitas as minhas identificações com São Paulo. Na primeira saída de carro você me ensina: "a primeira rua de acesso ao centro é esta avenidona. No seu final, fica o "Pão de Açúcar". Tá vendo lá aquela casa escrito "Pão de Açúcar" ? Pois é o seu ponto de referência. Aqui é o cruzamento da Avenida Rebouças com a Avenida Paulista. PASSANDO POR AQUI VOCÊ ESTARÁ NA DIREÇÃO DO CAMINHO DE CASA".

Assim foi feito. Eu estava de férias aguardando a data do exame para o mestrado e o início das aulas na universidade onde eu trabalharia. Pegava o ônibus em Pinheiros e descia, tão logo divisava o "Pão de Açúcar", o tal ponto de referência. Assim fiz as minhas primeiras viagens ao "Belas Artes" e aos cinemas da Paulista. Lindas viagens, de marinheiro, as primeiras. E o meu coração ingênuo, nordestino, deslumbrado com o cinema, nem de longe imaginava o tamanho do amor que é preciso pra conter aquela cidade.

Não tive a curiosidade de olhar o que era o tal "Pão de Açúcar", aquele ponto mágico que me conduzia ao universo cinematográfico, tão sedutor. Senso prático? Nunca tive. Tenho esse defeito dos poetas, sem ter deles, uma qualidade sequer. Ia e vinha e não me aventurava a mudar o percurso. Tentei, é bem verdade, consultar o tal guia com o mapa das ruas. Não consegui.

Um belo dia (pra mim todos os dias em São Paulo são belos), tomei um malfadado ônibus. Até hoje não sei que diabo de ônibus era aquele. O caminho parecia esquisito, demorado, mas tranquilizei-me.Não precisava vencer a timidez para fazer perguntas a quem quer que fosse. Com certeza o caminho era o mesmo e era eu quem o enxergava com novos olhos. Vai ver a minha ansiedade das primeiras vezes me impediu de ver detalhes importantes. Além do mais eu tinha o trunfo do "Pão de Açúcar".

Finalmente, depois de ter visto aspectos do caminho nunca dantes notados, lá estava, fiel (?), o meu ponto de referência. Apressei-me em descer. Era noite. E haja gatos pardos em cidade dest'amanho! Cadê os cinemas, cadê a Paulista? Só podiam ter desaparecido já que o "Pão de Açúcar" estava lá.

Apavorada, desta vez resolvi sobreviver à timidez e perguntei. Estava nas proximidades do Aeroporto de Congonhas. Como a paixão por você e pela cidade excluía explicações psicanalíticas para o fato de ter ido ao aeroporto, concluí, rubra de vergonha, que a melhor explicação era a famosa baianada.

A caminho de casa o taxista explicou-me pacientemente: "o "Pão de Açúcar", minha senhora (ou foi senhorita?), é uma rede de supermercados que fica em muitas e muitas esquinas". Tive a humildade de lhe dar o endereço ao invés de lhe ensinar o caminho de volta pra casa.



                                        SÃO PAULO NÃO PODE PARAR, SENÃO CHORA

Fôra convidada a sair de casa.Por quatro horas não deveria retornar. Obedeci. Aquela casa, você dizia, era também minha. Eu acreditava. Exceto por aquelas quatro horas de expulsão, exceto por não possuir a chave do pega-ladrão. Exceto.....Vai ver era eu o ladrão, desautorizada que me sentia de participar de seus momentos secretos, privados, misteriosos.....A pessoa com quem você iria escrever um artigo não me conhecia. Poderia ficar constrangida com minha presença, você explicou. Eu, certamente, não me sentiria mal com aquela intimação. Era obediente.

Não tinha talvez uma semana de chegada a São Paulo.Ainda estava na fase do "Pão de Açúcar". Peguei o ônibus, desci na Paulista. Tinha quatro horas pra desfilar minha dor pelas calçadas dos Jardins. Por incompetência espacial, não poderia espalhá-la aos quatro ventos. Tinha que escolher ventos que soprassem numa única direção. Que imagem descabida, essa dos ventos. Em São Paulo, eles não sopram, com raríssimas exceções.

Escolhi os Jardins porque assim poderia adotar o "Conjunto Nacional" como ponto de referência. Gosto do "Conjunto Nacional". Tenho a ilusão de que aquela arquitetura é de um tempo onde se faziam compras menos consumistas. Por que não fui ao cinema? Me pergunto. Talvez porque as dores dos personagens de cinema parecem tão grandes, inibem as nossas.

E lá fui eu caminhando. Descia uma rua, e lá em baixo alcançava outra, paralela. Rua tal, Rua qual, Alameda isso, Alameda aquilo; não sou muito de olhar vitrines. Reparava nas pessoas. Eram bonitas, saudáveis, bem cuidadas. Provavelmente tinham todos os dentes. No Nordeste, cedo perdem-se os dentes. E lá se vão, banguelos e inocentes, os nordestinos, cutucar São Paulo, que nem demônio, de vara curta.

As imagens passavam, sem sentido, caleidoscópicas; eu, insistindo em vê-las, sem desfrutá-las. Caminhando em obsessiva obediência.Sentia que não podia parar.Se parasse, o desfile doloroso se tornaria patético. Se parasse, a dor que desfilava com dignidade  poderia, por acintosa, chamar a atenção de curiosos. Agora melhor compreendo a frase: "São Paulo não pode parar".

Não havia mendigos. Nisso reparei. Naquele tempo, a cidade nos resguardava do cruel espetáculo. Escolhia, para exibi-los, pontos menos nobres....A pressa das pessoas me intrigava. Paulistano não sabe passear;passa pelas coisas, não sei se as registra, ou se as usa somente como cenário mutante de alguma tragédia que carrega consigo, e só bem adiante se revela. Eu não sabia por quanto tempo caminhava assim a esmo. Contudo, as mudanças de tonalidade no céu, o ruído aumentando nas artérias principais, sinalizavam a passagem do tempo. Olhei no relógio. Passaram-se as quatro horas. A obrigação se cumprira.

Finalmente, de volta ao "Conjunto Nacional", parei. Olhei do alto a Rua Augusta. Daquele ponto onde eu estacionara a minha alma sombria, a rua era um colar de luzes, de cima abaixo, prismáticas. Lentes de óculos molhadas, provocam uma interessante distorção ótica. Não chovia.



P.S. Textos extraídos do manuscrito "RECORTES", escrito em 1991, onze anos depois das experiências vividas. Minha amiga  Ana Cecília e Virgílio (seu marido), me deram de presente "RECORTES" digitado, com a seguinte dedicatória:
        
        "São Paulo: um lugar, um tempo de ser Marcia. Marcia, tão doídamente generosa que, para encontrar-se a si própria, precisou de um lugar onde tudo fosse novo: no qual ela pudesse, em sua própria vida, mirar-se em um espelho que pudesse retribuir imagens suas: ver-se. Um lugar de renascer. Não é isso São Paulo? Os laços, os recortes, a estrutura ciosamente - em cuidado, ciúme, cio...... - construída e reconstruída, só o foram dessa forma porque se tratava de Marcia, a quem São Paulo teve o privilégio de conhecer. A Marcia a quem queremos tanto, e para quem gostaríamos que o dom da beleza pudesse ser isento de dor. Seria possível? Seria belo? Seria Marcia?
Querida Marcia: nessa passagem da vida, nosso presente para você, presente entre quarentões quase que somos, e abrir um espaço de "fazer presente", conquistado à tirania das horas, rotinas e atribulações do ser adultos, para passear pelas palavras de sua vida em São Paulo e devolvê-las a você numa nova "embalagem". Feliz Aniversário!" 
Outro P.S. Diante desta dedicatória, não posso deixar de dizer: temos que nos conformar. Só os poetas conseguem.
                                                                     
                                                                                                                   Marcia Gomes.  

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