quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro...."e...."Ernesto, meu rapaz!"

27/10/13

Caro(a)  leitor (a),

Creio que todos vocês ficaram sabendo que recentemente um pretenso assaltante, quebrou ao meio a armação dos meus óculos. Por isso, fui ainda esta semana à ótica providenciar óculos novos, e me recordei deste texto escrito em 2002 em CONVERSA  MARCIANA. O texto é uma homenagem póstuma a Joaquim Leal Gomes, meu pai.

Vocês devem saber que a frase "Ernesto, meu rapaz!" circulou muito na mídia há anos atrás na propaganda da Ótica Ernesto, senão a mais antiga, uma das mais antigas óticas de Salvador. Comecei a usar óculos com 5 anos de idade e naquela época, década de 50 ainda, Sr. Ernesto estava instalado na Avenida Sete, na altura da Praça da Piedade.

Longe de mim querer fazer propaganda de óticas, ainda mais nos meus escritos. Mas sempre vou lá por tradição. Para matar as saudades de meu tão querido pai. A diferença, é que quando fui lá por esses dias, fui tranquilamente sozinha e não precisei de ninguém para dizer que a armação ficou bonita. Eu me achei bonita com ela no rosto. Mesmo de 2002 para cá, felizmente, a gente cresce e com muita saudade, prescinde do pai. Espero que vocês apreciem o texto abaixo.

                                       ERNESTO,  MEU  RAPAZ!  (a meu pai, in memoriam)

Não gosto de comerciais. Acho a propaganda, em geral, muito perversa, alienante. Gosto do amor. Mesmo passional. Amor àquele que brincava com aeromodelos, com palavras e animais. Àquele que nos botava apelidos excêntricos, tomava banho de mar de sapatos e adorava contar "causos" de pescador. Àquele de mente brilhante que fazia versos; tão incompetente pra ganhar dinheiro que vivia a repetir: "sou pobre mas sou honesto". Àquele que era médico, ateu, mas acendeu uma vela quando eu, pequenininha, beirava a morte.

Amor ao insensato. Me apresentou a Freud quando eu contava apenas 10 anos. Ao asséptico. Não nos deixava sentar no chão porque tinha micróbios. Ao passional. Quando apaixonado, ficou irreconhecível. Aparentemente, em razão disso, nos machucamos a todos. Amor àquele que nos deixou tão cedo. Aos 45 anos. E foi conversar com as estrelas, ficando eu numa orfandade de temer estar no mundo sem a sua mão enorme, mulata, segurando a minha.

A sua mão enorme, mulata, segurando a minha a caminho da Ótica Ernesto. Era um passeio de lamber os beiços de tanto prazer. Já devo ter dito : nasci quase cega. Primeiro eu pensava que o mundo era assim, impressionístico. Mas quando veio a curiosidade pelas letras, eu precisava dos contornos e enfiava o texto no nariz. Assim comecei a usar óculos aos 5 anos de idade.

Taperoá não tinha ótica, muito menos oftalmologista. Como fazer então? Viajar pra Salvador com direito a baldeação em Santo Antônio de Jesus. Eu e meu pai. Dr. Joaquim, se lhe querem saber o nome. Creio que chegávamos à noite, pois lembro do encantamento com as luzes de neon. Na mala vinha um vestido único para a ocasião de passear em Salvador. Acho que era de organdi.

Vejo a minha mão tomada por aquela outra, enorme. Me ajuda a subir no ônibus (ou será que era ainda bonde?), rumo ao Doutor Papaléo. Ele sempre me deixou sentir compenetrada pelo jeito de falar. Se não fosse imaginação de criança de 5 anos, eu poderia dizer que a conversa de pai e filha era conversa de igual para igual. Observávamos a rua e também tipos humanos, gosto comum aos dois. Mas se a mão era enorme, é certo que o tom da conversa não devia ser menor. Digamos que nos acomodávamos à diferença de tamanhos e vinha muita risada. Essa sim, nos igualava. Risada não tem tamanho.

Onde era Papaléo perdido ficou na memória. Mas lembro do consultório. Austero, como convém a um doutor com ares de europeu. Na verdade um velhinho bondoso de deixar criança quieta com a cara enfiada naquelas aparelhagens. Mesmo assim, de vez em quando eu desviava o olhar. Não podia resistir a examinar, curiosa, como numa escrivaninha cabia tanta tranqueira. Nada que me interessasse, senão a desordem. Finalmente o bom velhinho nos entregava a receita sem cobrar um tostão. Naquela época, a ética não permitia colega cobrar de colega. Era um tempo de elegância.

E por acaso havia algo mais elegante do que a Loja " Duas Américas" com a sua casa de chá? Hora de lamber os beiços com aquelas iguarias. Se lambuzar não podia porque o pai era rigoroso nas regras de educação.

E satisfeitos partíamos para a Praça da Piedade encontrar outro velhinho. Esse, de fato, europeu? Que tanto velhinho é esse? Há de perguntar o leitor. Nem eu sei responder. Deve ser pelo que passa em cabeça de criança. Passou dos 40 , é vovô. Pois o velhinho nos atendia com presteza e paciência. Era seu Ernesto. O dono da ótica. Aqui a paciência é dado fundamental. Pois eu punha a armação no rosto, punha uma, punha outra com direito de escolher. Mas meu rosto no espelho era pouco mais que um borrão. Apesar do livre arbítrio, pedia socorro a meu pai para dizer qual ficou mais bonita. E ele apontava aquela que em mim ficou exata, parecendo uma professora. Porque progressiva a miopia, todo ano era hora de passear com meu pai.

Muitos anos se passaram, eu fiel ao velho Ernesto, embora já falecido. Mas na hora do espelho, doído enfrentamento. Vira um caso lacrimoso a escolha da armação. Quem, pra dizer se ficou bonita?
                                                                                            Bom domingo a todos,
                                                                                                                  Marcia Gomes.        

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