segunda-feira, 27 de julho de 2015

26/07/2015                                           FIAPOS

Fiapos esparsos desajuntados na tessitura do não pode ser. Fiapos dispersos, tecido abortado porque a dor concebe, mas precocemente torna-se sangue hemorrágico, filho perdido, escritura frustrada do parto bem sucedido. Fiapos de sangue do paulatino estancar da hemorragia resultada em filho nenhum. Filho nenhum porque não posso escrever. A dor devasta o corpo e o transforma num disforme esgar de nada. Corpo esgarçado de dores lancinantes, é somente uma narcísica escritura do impossível de se escrever. O investimento no mundo externo é uma inviável e congestionada rua de mão única que redundante, retorna sobre si mesma. A dor se esparrama por todo o corpo que sobre ela se debruça sem mais nenhum investimento. Sobre ela se debruça o corpo como sobre a própria imagem se debruçou Narciso, prisioneiro suicida da própria imagem. A dor só vê a si mesma e de tudo o mais faz espelho.

Logo hoje, que tentando driblar a dor do corpo tentei me entreter com poemas de nome "Colheita" que me foram presenteados pelo estimado Professor José Newton de Sousa, seu autor, num momento em que mais me doía a alma. O querido Professor José Newton, pai de alguns poetas, escreve dizendo coisas tais como "A beleza vale mais que a exatidão". Ele é um inexato radar do mundo sensível, captando como um requintado e inocente esteta, tudo o que escaparia ao olhar comum do passante desavisado. Assim ele fala nos seus versos da paisagem do Cariri, de peculiares tipos humanos que passaram por sua vida, de saudades e nostalgias do exilado, da alegria pela primeira e segunda filha e pela chegada do Natal, e muito apaixonadamente do seu amor à sua amada e a Deus. O Professor é um cristão de primeira ordem. Mas os seus singelos versos conseguem me entreter sem de mim se apoderarem, porque de mim só se apodera a dor na coluna. Hoje mais aguda. Talvez porque a Sul América não autorizou o procedimento de bloqueio da dor ao qual me submeteria. Talvez porque hoje me veja confrontada com a possivelmente imperiosa necessidade de mudar de casa. O comércio imobiliário pode às vezes ser impiedoso, pouco ligando para o amor à sua casa de uma senhora que mal se locomove, de tanta dor.

Logo hoje, que tenho na mão esquerda uma tesoura de corte incerto. Uma tesoura cega. Vejo que às apalpadelas, na penumbra que acomete os cegos, ela vai, certeira, passando de través pelas palavras e cortando aqui e ali, como uma mão decepada de artesão que embora amputada, preserva intactas as terminações nervosas e monstruosa, concebe a obra ímpar, de beleza assombrosa, um Narciso que, ao invés de suicida, debruçar-se sobre a própria imagem, belo, devolve ao outro a si mesmo, perpassado das perplexidades que lhe dá o tempo que passa e não passa, das cândidas alegrias do cotidiano contidas em um assovio, e, do peso do amor, pesando sete grãos de chumbo. Em breve vocês saberão o que é essa tesoura cega e compreenderão. Compreenderão como a dor do corpo pode ser desapontadora sabotagem poética que nos impede a fruição da beleza tão bem cortada às cegas, dessa tesoura guiada por um cão com faro de gênio.

Logo hoje, que mal conseguindo levantar da cama, ao acordar me dei a pensar no escritor valter hugo mãe que escreveu "a máquina de fazer espanhóis". Ele não abre mão das minúsculas porque diz lamentar estar a escrita investida de uma certa enfatuação de disputa pelo poder. Também diz que fez questão de colocar "mãe" no seu pseudônimo, porque só as mulheres têm o privilégio de dar à luz, coisa que inveja. Sabendo que o escritor foi criado no meio de mulheres e que pouco conheceu de sua ascendência paterna, enquanto fazia malabarismos para levantar da cama, me pus a pensar com meus botões no que têm meus botões de encaixes em casas de Freud e Lacan. Já levantada da cama aos trancos e barrancos, pensei: que vão Freud e Lacan ver se eu estou na esquina. Porque valter hugo mãe de há muito passou pela esquina sem deixar rastros. E, como bem disse Freud, a poesia antecede a psicanálise. Então, de nada vale querer psicanalisar um pseudônimo. Quanto mais um escritor. Isso só pode nos render a perda de caras amizades.

Logo hoje, que não fosse essa dor insuportável que não me dá trégua ( o remédio que eu tomo para mitigá-la se chama Lyrica. Às vezes me ponho a cismar com esse nome poético. Pois é. Me ponho a cismar com o nome, para não jogar o remédio fora. Além de ser muito caro, não diminui a dor em nada), eu tentaria assistir de novo uma aula sobre topologia na clínica de Lacan para ver se apreendo mais um pouco do que o palestrante quer dizer quando afirma que Freud ficou circunscrito à física newtoniana, enquanto Lacan avançou para a física quântica, daí a necessidade de conceitos topológicos. Um grupo de colegas no qual eu estou incluída, através de mim convidou um físico que publicou recentemente um livro sobre Física Quântica, para falar para nós. Já pensaram se o dia for um "logo hoje"?

Logo hoje, que tomar um banho é um sacrifício e que embora goste muito, eu até fique pensando nas desvantagens de morar sozinha, logo hoje, que nem de longe posso pensar em sair de casa, assistir televisão, ler para preparar um trabalho que vou apresentar sobre o "Estado Amoroso" nas suas articulações com o narcisismo, logo hoje que sinto dor de artrose degenerativa com total obstrução dos nervos, eu escrevi um texto intitulado "Fiapos". Fiapos de dor num emaranhado que não me  permite tecer coisa alguma, ainda que fique alegre. Alegre, porque enquanto houver poesia, não há por quê deixar de lado o tear.
                                                                                                                            Marcia Gomes.  

domingo, 19 de julho de 2015

Olá, colegas e amigas (os) leitores,

Estou enviando abaixo o link do documentário "A Família de Elizabeth Teixeira" gentilmente cedido por um amigo. O documentário foi filmado também por Eduardo Coutinho, trinta anos depois de "Cabra Marcado pra Morrer", filme sobre o qual escrevi no domingo passado. Só para lembrar, "Cabra Marcado pra Morrer" é a história de João Pedro, um líder camponês paraibano que foi cruelmente assassinado pelos latifundiários em 1962. Comentei sobre esse filme e o sofrimento da viúva Elizabeth Teixeira, porque estou indignada com as investidas de setores da direita reacionária no sentido de estimular um retrocesso político de graves proporções como um golpe militar, tomando como pretexto o fato de estarmos vivendo um momento de crise política e econômica. No documentário abaixo, Eduardo Coutinho reencontra Elizabeth Teixeira com mais de 80 anos e faz contato com seus filhos e netos. O filme vem mostrar que o assassinato de João Pedro junto com a perseguição política à sua viúva a partir do golpe de 64, tiveram desdobramentos dramáticos sobre a história daquela família, que estão presentes até os nossos dias.

Se você tiver interesse em ler as minhas crônicas de domingos anteriores, é só acessar o blog: blábláblazista.blogspot.com.br    . Do blog constam escritos desde 2012. Alguns dos textos têm um cunho predominantemente autobiográfico, nos quais me exponho muito às vezes. Foram escritos para um público seleto de amigos e colegas, por uma necessidade de partilhar com vocês algo da minha subjetividade, sem pretensões literárias. Não sou escritora. Sou "escrevinhadora". Gosto de "escrevinhar". Quem sabe, em algum momento, eu possa fazer uma seleção dos textos menos ruins que estão no blog e publicá-los? Por que não?
                                                     Um abraço,
                                                                        Marcia Gomes.

19/07/2015                                                                 DESENCADEIRA

Penso sobre o quê escrever. Poucas coisas me ocorrem. Penso com muita alegria que falei com Leandro ao telefone a título de despedida. Leandro é meu sobrinho cineasta que ganhou um prêmio com seu talento, e vai morar na Alemanha. Ele gosta de ler minha crônica domingueira e eu gosto de saber o quanto ele é bem resolvido para viver suas questões pessoais do modo que prefere. Penso também que estou felicíssima porque Íris Gomes,  Iroca, minha sobrinha, esteve defendendo sua tese de doutorado na UFMG e foi aprovada com louvor. Torço por ela e sinto orgulho do quanto é capaz. Fico muito satisfeita de saber que várias sobrinhas  ( Lívia, Luciana e agora Íris) são doutoras brilhantes. Mas não precisam ser doutores para cair nas minhas predileções. Daniela, minha sobrinha mais velha, não enveredou por uma carreira acadêmica e é muito capaz. Tenho um orgulho enorme da minha "filhota", principalmente por seu caráter e coragem para lidar com adversidades. Penso também em Rafa (outro doutor brilhante), vivendo com entusiasmo a visita de Carolina, sua mulher e o filho João, neste mês de julho em Porto Seguro.

Não quero escrever sobre filho e sobrinhos. Poderia sair um texto muito narcisista. Também não quero voltar a bater na tecla das investidas golpistas da direita. Se falasse sobre isso, sairia um texto muito indignado. Hoje não quero ser narcisista nem indignada. Desconfortável com a falta de assunto, vou até meu quarto de estudos que há tempos não uso, porque está uma bagunça. Virou também depósito de coisas que estão fora de combate. Por isso tenho lido e estudado mais na sala. Olho para minhas estantes de livros com um prazer nostálgico. Penso que tenho lido pouco por conta das dores na coluna. Sem me dar conta, muito sem querer, desloco o olhar dos livros para uma cadeira comprada em São Paulo, que me acompanha desde 1980. É uma cadeira forte. Apoia-se em hastes tubulares em ferro resistente, tendo encosto e assento em couro cor de vinho. O seu modelo é de uma robusta cadeira de diretor de cinema.

 Penso em tudo que vivi sentada nesta cadeira. Nela escrevi minha dissertação de mestrado quando estudava na USP e morava no Butantã. Quando estudava na USP e morava no Butantã, eu era uma jovem de vinte e tantos anos, deslumbrada com o behaviorismo, tomada de rompante pelos arroubos do amor, e encantada com a cidade de São Paulo. Ouvia muita música de Paulo Vanzolini, frequentava assiduamente o burburinho cultural da Paulicéia Desvairada, indo a restaurantes, shows, concertos, peças de teatro, museus, exposições, cinemas, etc, num frisson voraz de quem quer se apoderar de toda a arte produzida pela alma da cidade. Sentada na cadeira escrevia num diário as minhas impressões sobre tudo que vivia com entusiasmo. Ocupava grande parte do escrito a dizer da minha rica amizade com um escritor que me apresentou o poeta Cesar Vallejo e me levou ao sítio de Hilda Hilst. Pois é. Sentada na cadeira escrevi sobre meu tímido e perplexo encontro com Hilda Hilst. Com Caio Fernando Abreu ("Tenho um dragão que mora comigo...."), com Lygia Fagundes Teles.

Sentada na cadeira escrevi sobre a devastadora dor de ter que perder meu emprego de professora da Ufba e por isso não ter podido defender minha dissertação. Escrevi sobre muitas alegrias e dores de amor. Muitas. Escrevi muita coisa sobre a campanha "Diretas Já" e sobre a transição da ditadura para a democracia. Escrevi sobre o pesar do Brasil com a morte de Tancredo e sobre a inesquecível e última experiência de ver Elis Regina ao vivo, no seu show "Trem Azul". A cadeira saiu comigo do Butantã e foi à Avenida Angélica. Lá eu escrevi no meu diário sobre os muitos judeus que viviam no bairro de Higienópolis, com todas as suas idiossincrasias culturais. Passei com a cadeira pelo Sumarézinho onde lia cartas de amor escritas em papel azul, vindas da Alemanha, e escrevia sobre a emoção de receber de lá, doces dietéticos de marzipã trazidos por um eminente portador.

 Finalmente, forte como eu, a cadeira me acompanhou à Vila Madalena. Ficava no meu quarto na escrivaninha. Era uma casinha muito modesta, onde um enorme girassol brotava na calçada . A cadeira, companheira imbatível, me acomodou numa certa cumplicidade, ao escrever sobre a ternura cândida dos artistas e velhinhos aposentados que povoavam a Vila Madalena com suas ruas de nomes poéticos, como Fidalga, Harmonia e Purpurina. Quando soube que a Vila Madalena seria a minha última, derradeira morada em São Paulo, não sei como a cadeira suportou sem se quebrar, o peso devastador do meu choro convulso.

Aqui em Salvador, para onde me mudei, a cadeira, fazendo coro ao meu recolhimento enlutado, ficou por muito tempo também recolhida num guarda móveis. Lá, talvez maltratada e também pelo efeito da maresia, ficou com suas hastes enferrujadas. Refeita do luto, mas ainda sob o impacto das radicais diferenças culturais entre Salvador e São Paulo, em desabafo, muito escrevi sobre o padrão baiano dos atendentes em lojas e estabelecimentos comerciais. Estranhando e às vezes rejeitando os padrões culturais de Salvador, passei muito tempo sentada na cadeira refugiada na literatura. Quando já compreendia e aceitava melhor o padrão "preguiçoso" do baiano como um reflexo da resistência às rotinas oprimidas das senzalas, levei a cadeira comigo para a Federação, o Jardim Apipema e o Morro do Gato. No Jardim Apipema me acolhi no seu assento para escrever sobre novas descobertas e dores de amor e sobre o meu feliz encontro com a psicanálise. Não sei a razão ao certo, mas jamais mandei reparar a ferrugem de suas hastes. Ainda hoje, continua enferrujada. Deve ser por razões metafóricas. Na verdade, essa cadeira é minha testemunha.

Tanto quanto sua dona, a cadeira mudou muitas vezes de casa. Eu tenho um coração itinerante pouco afeito ao pouso? Não sei. Mas parece que finalmente estou pousada no Morro do Gato. Mas quem vai entender a alma defeituosa desses seres de linguagem que somos? Assim que pousei, não sentei mais na cadeira. Não a dou a ninguém. Não reparo sua ferrugem. Agora me lembrei do nome de um livro que gosto muito: ""As veias abertas da América Latina". A cadeira está aposentada no quarto de estudos e quase não olho para ela. Fica ali, depositária enferrujada de muitas lembranças que prefiro deixar quietas.  Uma cadeira, pode dizer bem mais do que suportaríamos. Envelheço e não recorro mais a ela. Já ressignifiquei muitas coisas.Parece que estou pacificada com a cidade de Salvador apesar do seu inverno sem céu azul claro, sem um friozinho seco que convide um fondue com um bom vinho, seu inverno pluvioso e destruidor de encostas. Estou pacificada com a cidade de Salvador, com o pulsar ritmado da sua corajosa negritude. Então prefiro sentar para trabalhar na sala. E a cadeira aposentada no quarto de estudos. Também dela não me desfaço. Melancolia? Talvez a ignore tentando silenciar as lembranças que em mim desencadeia. "Desencadeira". Muda testemunha de uma longa história. Para que sentar nela? Para que fazê-la falar?
                                                                                                                Marcia Gomes.

P.S. Abaixo o link do filme documentário.  




 A Família de Elizabeth Teixeira 
https://www.youtube.com/watch?v=TondnexDVUk









domingo, 12 de julho de 2015

12/07/2015                                    LUTO,  LUTA.

Hoje acordei sem vontade de escrever crônica. Apenas conto em poucas palavras uma experiência que tive ontem, dedicando esse relato a todos aqueles que foram vítimas diretas das atrocidades do golpe militar de 64, ou que tiveram familiares, amigos, companheiros, violentamente perseguidos, presos, torturados, assassinados e desaparecidos por defenderem um Brasil onde os direitos humanos fossem respeitados, onde respeitando-se a diversidade subjetiva de cada um, tivéssemos igualdade de direitos sócio-econômicos para todos. Dedico esse pequeno relato a todos aqueles que viveram ou ainda vivem o luto por seus entes queridos que nas condições mais adversas, jamais abandonaram a luta por um país mais digno. Se hoje tenho a liberdade de falar sobre essas questões, tenho uma enorme dívida de gratidão aos brasileiros que construíram a derrubada do golpe de direita que aconteceu em 64. Só de pensar que há pessoas falando em retrocedermos à época da intervenção fascista das forças armadas, tremo de nojo, tremo de horror.

Não vou escrever sobre política. Cada vez menos, gosto de tratar de política. Apenas exponho minhas opiniões para aqueles que compartilham comigo a simpatia companheira pelos inúmeros brasileiros que são ainda socialmente desprivilegiados, e sofrem a dor de serem discriminados, estigmatizados, por serem pobres, negros, mulheres, deficientes física ou psiquicamente ou até por serem idosos. Não entro em embates políticos. Talvez devesse até entrar, mas me sinto cansada. Acho que por trás dos argumentos que se colocam nas discussões, o que está em jogo são os interesses da classe social à qual pertence ou aspira pertencer aquele que está argumentando. Na minha modesta opinião, a defesa dessa ou aquela ideia nas conversas sobre política passa por uma questão ideológica de origem social que transcende argumentos. Vou escrever sobre a dor que por anos a fio atravessou uma família inteira.

Pois é. Ontem voltei a assistir no canal Arte 1, o filme documentário intitulado "Cabra Marcado para Morrer". O filme conta a história de João Pedro e sua família. João Pedro era um cabra paraibano casado com Elizabete, com quem teve vários filhos, num casamento harmonioso e de muito companheirismo. João Pedro, cabra de poucas letras, "malmente" sabia ler e escrever, era um camponês que trabalhava numa pedreira em um latifúndio. Muito religioso, temente a Deus, vivendo na pele as injustiças e atrocidades exercidas sobre os empregados pelos donos da terra, tornou-se líder numa associação de camponeses na luta por direitos sociais. Organizava seus companheiros para reivindicar melhores condições de vida. Em 1962 João Pedro foi violentamente assassinado com tiros num crime cujo mandante foi um latifundiário. Alguns meses depois, sua filha mais velha não suportando a dor cruel do luto, suicidou-se tomando arsênico.

Ainda antes do golpe de 64, a história da morte de João Pedro foi publicada nos jornais e pessoas se interessaram por documentar sua vida no filme "Cabra Marcado para Morrer", cuja rodagem foi iniciada. Elizabete, viúva de João Pedro, continuou na militância camponesa e chegou a ser filmada. Era uma mulher com a fisionomia tipicamente nordestina, com dentes faltando na boca e com um discurso ingênuo comovente, de quem, com poucos estudos, sabe lutar por seus direitos e não se deixa abater. Na falta de João Pedro, vivendo a dor da trágica perda de sua filha mais velha, criava seus muitos filhos com dificuldades enormes.

Com o golpe de 64 o assassino de João Pedro foi absolvido, a repressão apreendeu quase todo o material da filmagem dizendo ser subversivo, e Elizabete teve que ir para a clandestinidade, afastando-se dolorosamente por muitos anos de todos os seus filhos. Ficou refugiada com nome falso, tendo que viver a vida de uma outra pessoa, destituída do direito à sua identidade e à sua história.

Quando veio a abertura política muitos anos depois, visivelmente envelhecida pelo sofrimento que passou, Elizabete pode retornar às suas origens e o projeto do filme "Cabra Marcado para Morrer" foi retomado e levado adiante. Elizabete não conseguiu retomar contato com todos os seus filhos. Seus depoimentos no filme causam uma comoção profunda àqueles que assistem. Comoção profunda provavelmente somente àqueles que sabem na própria pele da dor de Elizabete, e que, independentemente das crises que nosso estado democrático atravesse, estão dispostos a lutar por anos de chumbo nunca mais.
                                                                                                   Marcia Gomes. 

domingo, 5 de julho de 2015

05/07/2015                                   DIVAGAÇÕES.

Divagações. De vaga sons. Sons de vagas. Sons de ondas às vezes tormentosas, às vezes amenas. De ondas tormentosas, o lamentável desfecho por enquanto da questão da votação da emenda de redução da maioridade penal. Unanimidade contra essa medida em todas as cabeças esclarecidas e pensantes deste país, incluindo Caetano Veloso e Gilberto Gil, tivemos que passar pelo constrangedor desconforto de, na mesma semana, vivermos primeiro a alegria de ver a tal emenda recusada, para apenas algumas horas depois, ficarmos sabendo que por manobras manipulativas e perversas do Senhor Eduardo Cunha e seus comparsas brancos e ricos, a emenda voltou a ser aprovada. 

Num primeiro momento, eu, muito feliz por ver que a emenda não passou, fiquei perplexa de ver na televisão o Ministro da Justiça argumentando ser contra a redução da maioridade penal por não haver vagas nos presídios. Fiquei pasma! Ainda que vagas houvessem, a questão é que reduzir a maioridade penal jamais seria solução para a necessidade da sociedade oferecer aos nossos jovens condições sócio educativas e culturais para que se tornem cidadãos de bem, ao invés de trancafiá-los em presídios. Quem de nós não sabe que com a aprovação dessa emenda sofrerão represálias repressoras os jovens desfavorecidos negros e pobres enquanto os branquinhos riquinhos e perversos se beneficiarão dos estratagemas desonestos para se manterem em liberdade usufruindo dos privilégios que o dinheiro compra? Quem de nós não sabe que a aprovação dessa emenda daqui a 10 anos só terá agravado o panorama de desamparo estigmatizante que vivem hoje os nossos jovens menores de 18 anos? Quem de nós não sabe que o que os nossos jovens e crianças precisam é de garantia de saúde física e emocional, de educação, de condições sócio econômicas dignas?

A desonesta aprovação desta emenda, fere mortalmente a dignidade de todos os cidadãos que trabalham e lutam para que nossas crianças e jovens vivam sob condições sócio emocionais mais justas e humanas. Mas nem tudo está perdido. Amanhã parlamentares que se respeitam vão entrar com mandato de segurança para anular esse vergonhoso resultado. Mas nem tudo está perdido. Pude ver pelo Facebook inúmeras pessoas se manifestando veementemente contra a redução da maioridade penal. Em resposta à arbitrariedade de Eduardo Cunha e seus seguidores, consciências se formam, pessoas se posicionam num movimento social que vai crescendo.

Mas a direita reacionária não nos dá trégua. "É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte." Desde que abandonei a militância na minha adolescência, política não é mais o meu forte. Não dou conta de acompanhar o noticiário, fico às vezes confusa quanto a que posições adotar, e me tornei muito mais flexível quanto a acolher opiniões diferentes das minhas. Mas fiquei estarrecida ao saber que estavam à venda e sendo propagados adesivos pornográficos misóginos de agressão à presidente Dilma, numa postura de violência sexual raramente vista. Um violento desrespeito a todas as mulheres brasileiras. Não vou aqui entrar no mérito se simpatizo ou não simpatizo com a presidente Dilma. Não é disso que se trata. Numa sociedade que se preza, discordâncias políticas se expressam com argumentos políticos. Não com adesivos pornográficos e sexistas. Isso deveria ser punido como crime. Isso é crime.Eu não simpatizo nem um pouco com a Rede Globo com seu noticiário tendencioso e sensacionalista e fiquei indignada ao saber que Maria Júlia Coutinho, que atua na Globo, foi vítima de discriminação racial. Quando se trata da dignidade humana é preciso que um valor mais alto se levante. Do contrário, é a barbárie.

E pensar que esses tristes episódios aconteceram na semana em que se celebra a Independência da Bahia. Temos muito o que fazer, temos que arregaçar as mangas para falarmos com propriedade em independência. A propósito, estou triste com os acontecimentos na Grécia, antes de tudo, para mim, berço de nossa tradição filosófica. Comecei a ensaiar preparar um trabalho sobre o estado amoroso e para isso estou lendo o Seminário 8 onde Lacan, de certa forma, faz uma homenagem a Sócrates. Uma bela homenagem, diga-se de passagem.

Divagações. De vaga sons. De ondas amenas a alegre notícia do lançamento em São Paulo, no dia 17 de junho, do livro do amigo e grande poeta Carlos Machado, que edita e envia para vocês o boletim poesia.net. O livro de poemas de Machado chama-se "Tesoura Cega". Título no mínimo instigante para os psicanalistas que são chegados a um corte. Não vejo a hora de poder ler "Tesoura Cega". Com certeza, uma excelente contribuição para a literatura do Brasil e do mundo. Na onda das amenidades, saber que a Flip está acontecendo em Paraty, desta vez em homenagem a Mário de Andrade. Ai que vontade de ter ido à Flip!!! Bom também saber que a peça de teatro "A Alma Imoral" voltou a estar em cartaz em Salvador. Assisti no ano passado. É um monólogo de grande qualidade. Recomendo. Tenho um amigo querido que trabalha com teatro que está indo hoje ao espetáculo pela quinta vez.

Nas amenidades da onda, pensar em meus sobrinhos e sentir alegria por eles. Quase todo dia, me comunicar pelo Facebook com a doce Daniela. Dani é o meu xodó. Minha sobrinha mais velha, desde que nasceu, faz as vezes de filha. É a minha filhota por quem sinto grande orgulho. Um contentamento grande de saber que meu sobrinho Leandro Goddinho que vive em São Paulo trabalhando como cineasta, ganhou um prêmio de cinema e está indo morar na Alemanha. Meu reencontro com Íris (Iroca), outra sobrinha querida, aqueceu meu coração e me deixa muito grata. Iroca, que não abre mão de correr atrás de seus sonhos, estará provavelmente defendendo sua tese de doutorado agora em julho. Já ouvi dizer que quando o diabo nos tira os filhos, Deus nos manda os sobrinhos. Que Deus não é de deixar ninguém desamparado. A mim, menos ainda. Que além dos sobrinhos me deu um filho. Hoje está chegando Rafael, meu filho adotivo. Vem para compor uma banca de doutorado. Deve chegar todo feliz da vida com a visita da sua mulher em Porto Seguro.

Pois é. Leitores, amigos e colegas. Ondas tormentosas, graças à truculência arbitrária de um Eduardo Cunha. Mas há os sobrinhos e os filhos, e há, sobretudo, a esperança de com divagações dar uma trégua, para ainda que devagar, mergulhar em ondas mais amenas, e, acreditar num futuro digno e promissor para  nossas crianças e jovens, e para todos aqueles que de alguma forma, trabalham para construir uma sociedade mais justa.
                                                                                                              Marcia Gomes.