domingo, 19 de julho de 2015

Olá, colegas e amigas (os) leitores,

Estou enviando abaixo o link do documentário "A Família de Elizabeth Teixeira" gentilmente cedido por um amigo. O documentário foi filmado também por Eduardo Coutinho, trinta anos depois de "Cabra Marcado pra Morrer", filme sobre o qual escrevi no domingo passado. Só para lembrar, "Cabra Marcado pra Morrer" é a história de João Pedro, um líder camponês paraibano que foi cruelmente assassinado pelos latifundiários em 1962. Comentei sobre esse filme e o sofrimento da viúva Elizabeth Teixeira, porque estou indignada com as investidas de setores da direita reacionária no sentido de estimular um retrocesso político de graves proporções como um golpe militar, tomando como pretexto o fato de estarmos vivendo um momento de crise política e econômica. No documentário abaixo, Eduardo Coutinho reencontra Elizabeth Teixeira com mais de 80 anos e faz contato com seus filhos e netos. O filme vem mostrar que o assassinato de João Pedro junto com a perseguição política à sua viúva a partir do golpe de 64, tiveram desdobramentos dramáticos sobre a história daquela família, que estão presentes até os nossos dias.

Se você tiver interesse em ler as minhas crônicas de domingos anteriores, é só acessar o blog: blábláblazista.blogspot.com.br    . Do blog constam escritos desde 2012. Alguns dos textos têm um cunho predominantemente autobiográfico, nos quais me exponho muito às vezes. Foram escritos para um público seleto de amigos e colegas, por uma necessidade de partilhar com vocês algo da minha subjetividade, sem pretensões literárias. Não sou escritora. Sou "escrevinhadora". Gosto de "escrevinhar". Quem sabe, em algum momento, eu possa fazer uma seleção dos textos menos ruins que estão no blog e publicá-los? Por que não?
                                                     Um abraço,
                                                                        Marcia Gomes.

19/07/2015                                                                 DESENCADEIRA

Penso sobre o quê escrever. Poucas coisas me ocorrem. Penso com muita alegria que falei com Leandro ao telefone a título de despedida. Leandro é meu sobrinho cineasta que ganhou um prêmio com seu talento, e vai morar na Alemanha. Ele gosta de ler minha crônica domingueira e eu gosto de saber o quanto ele é bem resolvido para viver suas questões pessoais do modo que prefere. Penso também que estou felicíssima porque Íris Gomes,  Iroca, minha sobrinha, esteve defendendo sua tese de doutorado na UFMG e foi aprovada com louvor. Torço por ela e sinto orgulho do quanto é capaz. Fico muito satisfeita de saber que várias sobrinhas  ( Lívia, Luciana e agora Íris) são doutoras brilhantes. Mas não precisam ser doutores para cair nas minhas predileções. Daniela, minha sobrinha mais velha, não enveredou por uma carreira acadêmica e é muito capaz. Tenho um orgulho enorme da minha "filhota", principalmente por seu caráter e coragem para lidar com adversidades. Penso também em Rafa (outro doutor brilhante), vivendo com entusiasmo a visita de Carolina, sua mulher e o filho João, neste mês de julho em Porto Seguro.

Não quero escrever sobre filho e sobrinhos. Poderia sair um texto muito narcisista. Também não quero voltar a bater na tecla das investidas golpistas da direita. Se falasse sobre isso, sairia um texto muito indignado. Hoje não quero ser narcisista nem indignada. Desconfortável com a falta de assunto, vou até meu quarto de estudos que há tempos não uso, porque está uma bagunça. Virou também depósito de coisas que estão fora de combate. Por isso tenho lido e estudado mais na sala. Olho para minhas estantes de livros com um prazer nostálgico. Penso que tenho lido pouco por conta das dores na coluna. Sem me dar conta, muito sem querer, desloco o olhar dos livros para uma cadeira comprada em São Paulo, que me acompanha desde 1980. É uma cadeira forte. Apoia-se em hastes tubulares em ferro resistente, tendo encosto e assento em couro cor de vinho. O seu modelo é de uma robusta cadeira de diretor de cinema.

 Penso em tudo que vivi sentada nesta cadeira. Nela escrevi minha dissertação de mestrado quando estudava na USP e morava no Butantã. Quando estudava na USP e morava no Butantã, eu era uma jovem de vinte e tantos anos, deslumbrada com o behaviorismo, tomada de rompante pelos arroubos do amor, e encantada com a cidade de São Paulo. Ouvia muita música de Paulo Vanzolini, frequentava assiduamente o burburinho cultural da Paulicéia Desvairada, indo a restaurantes, shows, concertos, peças de teatro, museus, exposições, cinemas, etc, num frisson voraz de quem quer se apoderar de toda a arte produzida pela alma da cidade. Sentada na cadeira escrevia num diário as minhas impressões sobre tudo que vivia com entusiasmo. Ocupava grande parte do escrito a dizer da minha rica amizade com um escritor que me apresentou o poeta Cesar Vallejo e me levou ao sítio de Hilda Hilst. Pois é. Sentada na cadeira escrevi sobre meu tímido e perplexo encontro com Hilda Hilst. Com Caio Fernando Abreu ("Tenho um dragão que mora comigo...."), com Lygia Fagundes Teles.

Sentada na cadeira escrevi sobre a devastadora dor de ter que perder meu emprego de professora da Ufba e por isso não ter podido defender minha dissertação. Escrevi sobre muitas alegrias e dores de amor. Muitas. Escrevi muita coisa sobre a campanha "Diretas Já" e sobre a transição da ditadura para a democracia. Escrevi sobre o pesar do Brasil com a morte de Tancredo e sobre a inesquecível e última experiência de ver Elis Regina ao vivo, no seu show "Trem Azul". A cadeira saiu comigo do Butantã e foi à Avenida Angélica. Lá eu escrevi no meu diário sobre os muitos judeus que viviam no bairro de Higienópolis, com todas as suas idiossincrasias culturais. Passei com a cadeira pelo Sumarézinho onde lia cartas de amor escritas em papel azul, vindas da Alemanha, e escrevia sobre a emoção de receber de lá, doces dietéticos de marzipã trazidos por um eminente portador.

 Finalmente, forte como eu, a cadeira me acompanhou à Vila Madalena. Ficava no meu quarto na escrivaninha. Era uma casinha muito modesta, onde um enorme girassol brotava na calçada . A cadeira, companheira imbatível, me acomodou numa certa cumplicidade, ao escrever sobre a ternura cândida dos artistas e velhinhos aposentados que povoavam a Vila Madalena com suas ruas de nomes poéticos, como Fidalga, Harmonia e Purpurina. Quando soube que a Vila Madalena seria a minha última, derradeira morada em São Paulo, não sei como a cadeira suportou sem se quebrar, o peso devastador do meu choro convulso.

Aqui em Salvador, para onde me mudei, a cadeira, fazendo coro ao meu recolhimento enlutado, ficou por muito tempo também recolhida num guarda móveis. Lá, talvez maltratada e também pelo efeito da maresia, ficou com suas hastes enferrujadas. Refeita do luto, mas ainda sob o impacto das radicais diferenças culturais entre Salvador e São Paulo, em desabafo, muito escrevi sobre o padrão baiano dos atendentes em lojas e estabelecimentos comerciais. Estranhando e às vezes rejeitando os padrões culturais de Salvador, passei muito tempo sentada na cadeira refugiada na literatura. Quando já compreendia e aceitava melhor o padrão "preguiçoso" do baiano como um reflexo da resistência às rotinas oprimidas das senzalas, levei a cadeira comigo para a Federação, o Jardim Apipema e o Morro do Gato. No Jardim Apipema me acolhi no seu assento para escrever sobre novas descobertas e dores de amor e sobre o meu feliz encontro com a psicanálise. Não sei a razão ao certo, mas jamais mandei reparar a ferrugem de suas hastes. Ainda hoje, continua enferrujada. Deve ser por razões metafóricas. Na verdade, essa cadeira é minha testemunha.

Tanto quanto sua dona, a cadeira mudou muitas vezes de casa. Eu tenho um coração itinerante pouco afeito ao pouso? Não sei. Mas parece que finalmente estou pousada no Morro do Gato. Mas quem vai entender a alma defeituosa desses seres de linguagem que somos? Assim que pousei, não sentei mais na cadeira. Não a dou a ninguém. Não reparo sua ferrugem. Agora me lembrei do nome de um livro que gosto muito: ""As veias abertas da América Latina". A cadeira está aposentada no quarto de estudos e quase não olho para ela. Fica ali, depositária enferrujada de muitas lembranças que prefiro deixar quietas.  Uma cadeira, pode dizer bem mais do que suportaríamos. Envelheço e não recorro mais a ela. Já ressignifiquei muitas coisas.Parece que estou pacificada com a cidade de Salvador apesar do seu inverno sem céu azul claro, sem um friozinho seco que convide um fondue com um bom vinho, seu inverno pluvioso e destruidor de encostas. Estou pacificada com a cidade de Salvador, com o pulsar ritmado da sua corajosa negritude. Então prefiro sentar para trabalhar na sala. E a cadeira aposentada no quarto de estudos. Também dela não me desfaço. Melancolia? Talvez a ignore tentando silenciar as lembranças que em mim desencadeia. "Desencadeira". Muda testemunha de uma longa história. Para que sentar nela? Para que fazê-la falar?
                                                                                                                Marcia Gomes.

P.S. Abaixo o link do filme documentário.  




 A Família de Elizabeth Teixeira 
https://www.youtube.com/watch?v=TondnexDVUk









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