segunda-feira, 27 de julho de 2015

26/07/2015                                           FIAPOS

Fiapos esparsos desajuntados na tessitura do não pode ser. Fiapos dispersos, tecido abortado porque a dor concebe, mas precocemente torna-se sangue hemorrágico, filho perdido, escritura frustrada do parto bem sucedido. Fiapos de sangue do paulatino estancar da hemorragia resultada em filho nenhum. Filho nenhum porque não posso escrever. A dor devasta o corpo e o transforma num disforme esgar de nada. Corpo esgarçado de dores lancinantes, é somente uma narcísica escritura do impossível de se escrever. O investimento no mundo externo é uma inviável e congestionada rua de mão única que redundante, retorna sobre si mesma. A dor se esparrama por todo o corpo que sobre ela se debruça sem mais nenhum investimento. Sobre ela se debruça o corpo como sobre a própria imagem se debruçou Narciso, prisioneiro suicida da própria imagem. A dor só vê a si mesma e de tudo o mais faz espelho.

Logo hoje, que tentando driblar a dor do corpo tentei me entreter com poemas de nome "Colheita" que me foram presenteados pelo estimado Professor José Newton de Sousa, seu autor, num momento em que mais me doía a alma. O querido Professor José Newton, pai de alguns poetas, escreve dizendo coisas tais como "A beleza vale mais que a exatidão". Ele é um inexato radar do mundo sensível, captando como um requintado e inocente esteta, tudo o que escaparia ao olhar comum do passante desavisado. Assim ele fala nos seus versos da paisagem do Cariri, de peculiares tipos humanos que passaram por sua vida, de saudades e nostalgias do exilado, da alegria pela primeira e segunda filha e pela chegada do Natal, e muito apaixonadamente do seu amor à sua amada e a Deus. O Professor é um cristão de primeira ordem. Mas os seus singelos versos conseguem me entreter sem de mim se apoderarem, porque de mim só se apodera a dor na coluna. Hoje mais aguda. Talvez porque a Sul América não autorizou o procedimento de bloqueio da dor ao qual me submeteria. Talvez porque hoje me veja confrontada com a possivelmente imperiosa necessidade de mudar de casa. O comércio imobiliário pode às vezes ser impiedoso, pouco ligando para o amor à sua casa de uma senhora que mal se locomove, de tanta dor.

Logo hoje, que tenho na mão esquerda uma tesoura de corte incerto. Uma tesoura cega. Vejo que às apalpadelas, na penumbra que acomete os cegos, ela vai, certeira, passando de través pelas palavras e cortando aqui e ali, como uma mão decepada de artesão que embora amputada, preserva intactas as terminações nervosas e monstruosa, concebe a obra ímpar, de beleza assombrosa, um Narciso que, ao invés de suicida, debruçar-se sobre a própria imagem, belo, devolve ao outro a si mesmo, perpassado das perplexidades que lhe dá o tempo que passa e não passa, das cândidas alegrias do cotidiano contidas em um assovio, e, do peso do amor, pesando sete grãos de chumbo. Em breve vocês saberão o que é essa tesoura cega e compreenderão. Compreenderão como a dor do corpo pode ser desapontadora sabotagem poética que nos impede a fruição da beleza tão bem cortada às cegas, dessa tesoura guiada por um cão com faro de gênio.

Logo hoje, que mal conseguindo levantar da cama, ao acordar me dei a pensar no escritor valter hugo mãe que escreveu "a máquina de fazer espanhóis". Ele não abre mão das minúsculas porque diz lamentar estar a escrita investida de uma certa enfatuação de disputa pelo poder. Também diz que fez questão de colocar "mãe" no seu pseudônimo, porque só as mulheres têm o privilégio de dar à luz, coisa que inveja. Sabendo que o escritor foi criado no meio de mulheres e que pouco conheceu de sua ascendência paterna, enquanto fazia malabarismos para levantar da cama, me pus a pensar com meus botões no que têm meus botões de encaixes em casas de Freud e Lacan. Já levantada da cama aos trancos e barrancos, pensei: que vão Freud e Lacan ver se eu estou na esquina. Porque valter hugo mãe de há muito passou pela esquina sem deixar rastros. E, como bem disse Freud, a poesia antecede a psicanálise. Então, de nada vale querer psicanalisar um pseudônimo. Quanto mais um escritor. Isso só pode nos render a perda de caras amizades.

Logo hoje, que não fosse essa dor insuportável que não me dá trégua ( o remédio que eu tomo para mitigá-la se chama Lyrica. Às vezes me ponho a cismar com esse nome poético. Pois é. Me ponho a cismar com o nome, para não jogar o remédio fora. Além de ser muito caro, não diminui a dor em nada), eu tentaria assistir de novo uma aula sobre topologia na clínica de Lacan para ver se apreendo mais um pouco do que o palestrante quer dizer quando afirma que Freud ficou circunscrito à física newtoniana, enquanto Lacan avançou para a física quântica, daí a necessidade de conceitos topológicos. Um grupo de colegas no qual eu estou incluída, através de mim convidou um físico que publicou recentemente um livro sobre Física Quântica, para falar para nós. Já pensaram se o dia for um "logo hoje"?

Logo hoje, que tomar um banho é um sacrifício e que embora goste muito, eu até fique pensando nas desvantagens de morar sozinha, logo hoje, que nem de longe posso pensar em sair de casa, assistir televisão, ler para preparar um trabalho que vou apresentar sobre o "Estado Amoroso" nas suas articulações com o narcisismo, logo hoje que sinto dor de artrose degenerativa com total obstrução dos nervos, eu escrevi um texto intitulado "Fiapos". Fiapos de dor num emaranhado que não me  permite tecer coisa alguma, ainda que fique alegre. Alegre, porque enquanto houver poesia, não há por quê deixar de lado o tear.
                                                                                                                            Marcia Gomes.  

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