domingo, 27 de julho de 2014

27/07/14                                     QUEBRA - CABEÇA

Viver pode ser um desmantelamento de alma de dar juízo a maluco. Toda noite quando saio do trabalho encontro com ele. Às vezes tenho já a impressão que está à minha espera para contar as novidades. Como saio tarde, só tem eu e ele no prédio e enquanto espero meu táxi chegar, a conversa rola. Somos amigos.

 Sexta-feira falou-me da perda de Ariano Suassuna. Ele me disse: "Dra. Marcia, aquele homem era um gigante de nordestinidade. Ele fotografou a alma nordestina mas não foi com essa coisa de tecnologia digital que o pessoal faz foto besta de qualquer celular. Ele fotografou a alma nordestina como um lambe-lambe de feira. Botava seus personagens para fazer pose e mandava eles passearem enquanto revelava o filme. Quando eles voltavam do passeio para buscar a foto, tinham muita história pra contar e ele fotografava de novo e mandava de novo eles passearem na feira. No fim do dia tinha um mural completo. A história da Compadecida é como um mural de fotos do viver nordestino tiradas numa praça de feira por um lambe-lambe. Dra. Marcia, Ariano Suassuna jamais será esquecido. Cada nordestino tem ele gravado no coração porque um nordestino jamais se esquecerá do lambe-lambe de feira que fotografou sua alma".

Fiquei tocada com a descrição de Ariano Suassuna dada pelo meu amigo, o vigia noturno do prédio onde trabalho. Fiquei tocada de ver na originalidade da sua descrição, o quão comovido ele estava pela perda daquela figura emblemática da literatura brasileira. De tudo que li e vi sobre a morte de Suassuna, seu depoimento, foi, sem dúvida, o que mais me comoveu. O depoimento de um vigia noturno de prédio de consultórios.

Dando prosseguimento à conversa, ele disse: "Por falar em foto, hoje, finalmente, trouxe no meu celular, pena eu não ser um lambe-lambe, a foto do quebra-cabeça". E me mostra a foto. É uma montagem de cinco mil peças de quebra-cabeça que ele fez de uma obra de Michelangelo. Então comenta que montar quebra-cabeças tem sido ultimamente o seu entretenimento preferido. Segundo ele, é como viver. Não adianta querer por força encaixar a peça. Tem que ter paciência e seguir as pistas dadas pela forma que vai se delineando. No começo você tem cinco mil peças espalhadas como num caos e parece que você não vai conseguir. É um desafio. Mas pouco a pouco tudo começa a fazer sentido.

 E acrescenta: "Parece com o trabalho da senhora, não é, doutora? Agora estou montando um de duas mil peças. É Platão dando aula a seus discípulos. Desde que comecei a montar quebra-cabeça, passei a escutar música de modo diferente. Antes escutava a música como todo. Agora aprecio cada instrumento, cada acorde, cada frase e depois reúno no conjunto. Fica mais rico, mais bonito. Estou mais atento aos detalhes. É como a poesia de Manoel de Barros, um dos meus poetas preferidos. Ele constrói o poema a partir de um detalhe do cotidiano que parece sem importância. Ele diz que o bater de asas de um pássaro pode ser mais importante que a explosão de uma bomba nuclear. A senhora conhece Manoel de Barros?"

Respondo que conheço Manoel de Barros e que gosto muito. Conto que por coincidência ganhei recentemente toda a obra dele e que está lá em cima no meu consultório. Combinamos que no próximo dia que nos encontrarmos, vou levar alguns volumes para lhe emprestar. Ele fica muito feliz com a oferta.

A chegada do meu táxi interrompe a bonita conversa. Sigo no táxi pensando que viver pode ser um desmantelamento de alma de dar juízo a maluco. Sigo pensando que sou feliz de ter todo fim de dia um interlocutor tão sensível. Um interlocutor que me deu de presente um DVD com o filme "Freud Além da Alma" para nós comentarmos. Um interlocutor que passa as noites acordado como vigia de prédio, para estudar filosofia durante o dia. Um interlocutor
que lê Nietzsche.

 Volto pra casa inquieta com esse país atravessado pela desigualdade social. Volto pra casa me perguntando por que ao invés de vigia noturno de prédio de consultórios, o meu amigo não é profissional liberal, um artista, um professor. Volto pra casa pensando por que a uns a vida oferece (injustamente?) oportunidades e a outros, sonega. Só nega. Volto pra casa pensando que no quebra-cabeça da vida veio uma peça faltando.

Ciente de que essa peça que falta é um defeito no quebra-cabeça da vida de todos nós e que pode ser um motor de desejo, ciente que sobre essa lacuna podemos inventar e reinventar, resolvo passar o fim de semana terminando de ler um livro intitulado "A Distância Entre Nós" de uma escritora indiana que não conheço e que se chama Thrity Umrigar.

 É uma história da relação de uma patroa e uma empregada doméstica muito dedicada. Há muito afeto entre as duas e ambas são mulheres oprimidas pela cultura machista vigente em Bombaim. No final muito belo e dramático, a diferença de classe social se sobrepõe  ao afeto das duas e grita mais alto. A empregada é vítima de uma armadilha perversa do genro da patroa, que prefere acreditar nele e despedir impiedosamente a sua fiel criada. Por que estou cometendo a indelicadeza de contar o final de um livro? Que tem o final do livro a ver com a peça de quebra-cabeça que falta na vida de todos nós?

 É que a empregada injustamente despedida, mesmo sendo analfabeta, ao invés de se sentir surpresa com o gesto da patroa sempre tão amorosa com ela, compreende que o final da história entre as duas é inexorável e, a despeito de sua vida miserável, toma o fato de não ter mais patroa como uma libertação. Celebra comprando balões com os últimos trocados que lhe restam, e soltando-os numa praia para voarem livres. Celebra o triunfo da sua desgraça genuína e honesta sobre o conforto mentiroso sob os quais os patrões opressivos quando têm seus privilégios ameaçados tendem a escolher viver. Bhima (é esse o nome da empregada) cuja vida é um quebra-cabeça onde faltam inúmeras peças, resolveu preencher as lacunas deixadas com balões de liberdade e integridade voando ao vento. Meu carinho e minha homenagem a todas as Bhimas que há por aí.
                                                                                                                  Marcia Gomes.
                                                                                                                
20/07/14                                       DIVAGÂNCIAS

Os dolorosos confrontos na Faixa de Gaza. O trágico "acidente" de avião pondo fim à vida de centenas de pessoas. A triste notícia da morte de João Ubaldo. Nada me doeu mais do que a perda de Rubem Alves. Poeta, educador, pensador, um ser humano extraordinário que disse coisas tais como: "Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar." Pessoas como Rubem Alves, não importa o legado que deixem, não deveriam ir embora nunca porque teriam sempre algo bonito a nos dizer.

Lamentei tomar conhecimento do fato pelos noticiários. Lamentei não ter na hora ninguém a meu lado para conversar.  Assistir a noticiários é um árduo exercício de não nos sentirmos autorizados a viver a nossa dor de perder alguém como Rubem Alves. Alguém que independentemente de ser famoso, nos importa porque ajudou a construir um cotidiano mais humano, sensível, particular. E quem disse que noticiário quer saber de cotidiano particular?

 Assistir a noticiários às vezes sensacionalistas, onde o repórter global diz com a mesma inflexão de voz tanto que vai chover, quanto que um desastre aconteceu, é algo que faço a contragosto. A publicidade dada ao acontecimento, a despeito de como vai repercutir na subjetividade de cada um, acaba, às vezes, se prestando mais a comentários nas rodas sociais, se banalizando.  A notícia, tal como é contada, muitas vezes nos afasta de fazer um contato solidário com a experiência e nos tornamos ocos expectadores da manchete. Preferia que alguém querido tivesse me contado da partida de Rubem Alves e nos oferecêssemos um ombro amigo.

Então tento sair do foco da notícia publicada e, como consolo, penso no que acontece no meu mundinho particular. No meu mundinho particular ganhei três presentes muito especiais. Uma coleção bonita da obra de Manoel de Barros com um cartãozinho muito delicado. Vou deixar enfeitando de poesia os meus intervalos de trabalho no consultório. Uma amiga chegou de uma viagem à Itália e me deu um ímã de geladeira com a Pietá. Não sei como se escreve o nome dessa obra tão impressionante mas ela já está conotando de imensa beleza doída a porta da minha geladeira. Finalmente outra amiga querida me enviou um quadrinho de parede com essa interessante frase de Freud: "Não permito que nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria das coisas simples da vida." Sábio o meu querido Freud. Provavelmente não gostava de notícias e se permitia se deter no seu mundinho particular.

Três presentes. De pessoas diferentes que me querem bem e sabem quem sou. Que bonito isso! Me sentir reconhecida pelo outro. A alegria das coisas simples da vida prescindindo de reflexão filosófica.

Ontem fez 28 anos a filha de uma amiga que eu vi nascer. Ontem também foi aniversário de um querido sobrinho de quem me perdi. Não sei onde mora, não sei o que anda fazendo, só sei que tem duas filhinhas lindas que eu não conheço. E como isso dói! Terça-feira próxima será também aniversário de um "brother" muito querido. Às vezes parece que os sobrinhos emprestados pelos amigos acabam por ter mais a nos dizer. Esse "brother", também filho de uma amiga, nasceu no ano em que retornei de São Paulo para Salvador. Vivi a gestação da minha amiga por um lado, alegre pelo "brother" que viria, por outro lado terrivelmente enlutada pelo como foi a minha despedida de São Paulo.

Ver os filhos dos amigos que a gente botou no colo, limpou o primeiro cocô se tornando cidadãos de bem, adultos construindo uma vida amorosa e profissional, me alegra e me enche de vontade de parar o tempo antes que a velocidade com que passa me atropele com a sensação de "nunca mais". Então saí ontem à tarde e fui cortar o cabelo. Eu que o assumo grisalho, de repente senti uma impetuosa vontade de pintar. Pintar o cabelo para não ficar sem saber o que fazer quando um senhor muito gentil se oferece para me ajudar a atravessar a rua. O cabeleireiro me leva até um táxi e me chama respeitosamente de senhora. Encontro no shopping com uma amiga com quem acampei em Visconde do Mauá quando vivia em São Paulo. Nunca mais poder encarar uma viagem de acampamento. Saber que não tenho tempo hábil para estudar todos os seminários de Lacan.

Voltando pra casa encontro me esperando no meu prédio minha querida Maroca. Lembram de Maroca? Aquela senhora retinta de negra que trabalhou na minha casa no começo da minha adolescência. Aquela que encontrei na rua um dia por acaso, sobre quem escrevi um "Blá,blá,blá...." intitulado  "Mara à vista" contando de como um encontro por acaso na rua se converteu numa longa e rica visita. Pois é. Reencontrei Maroca ontem para saber que felizmente a memória é o melhor antídoto para "nunca mais". Para Maroca ainda sou aquela menina namoradeira que gostava de rapazes mais velhos, aquela menina que gostava de cantar e não tinha medo de cassetete de polícia nas passeatas contra a ditadura. Para Maroca serei sempre aquela menina. Tendo Maroca a meu lado sem receio de me chamar de você, volto a ser menina. Menina de cabelo grisalho. Por que não?
                                                                                                               Marcia Gomes. 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

13/07/14                             LUTO  E  GRATIDÃO

Escrevo a uma amiga querida que está no exterior. Digo a ela que do momento que vivo o que mais me importa é o quanto de amor tenho experimentado em relação a minha mãe. Comento com a minha amiga que minha mãe parece um filhote de passarinho precocemente expulso do ninho e isso me causa uma ternura incomensurável. A sua vozinha frágil, o seu entusiasmo quase sem fôlego pela leitura que fez da Bíblia. Ainda há pouco falei com ela ao telefone e combinamos de ler um trecho da Bíblia para comentar. Vou ler. Não sou afeita a Bíblia, não tenho religião, estou mais para os descrentes do que para os crentes, mas vou conversar com minha mãe sobre a Bíblia porque sei que isso lhe faz retornar ao ninho do qual parece exilada.

Hoje faz um sábado ensolarado. A tristeza com o derrota da Seleção Brasileira para a Alemanha, vai se acomodando. Amo o meu país e por isso torci para que vencêssemos a Copa, ainda que consciente que mereceria vencer o time que fosse melhor. Não me anima participar de debates sobre o que Felipão deveria ter feito, não me anima participar de debates que tendem a misturar questões do cenário político brasileiro com o futebol. Não gosto de discutir política, tampouco gosto de futebol. A minha torcida pelo Brasil foi inspirada num sentimento de nacionalidade. Fico triste de ver que o "vexame" dado pela Seleção serve de pretexto para alguns desqualificarem o nosso país, misturando alhos com bugalhos.

 Na lanchonete do prédio de meu consultório tive a tristeza de ouvir de uma madame pertencente à classe dominante, que as lágrimas dos jogadores eram lágrimas de crocodilo e que eles foram subornados por Dilma para ganhar a Copa. Fiquei estarrecida com a tonalidade delirante do discurso da madame. Lamentei que os incômodos com o governo Dilma ou com o governo de Fulano de Tal, se tornem mais relevantes do que o desejo de vermos o nosso país com uma bonita imagem lá fora, se tornem mais relevantes do que o desejo de alcançarmos direitos sociais mais igualitários, numa sociedade mais justa.

 Minha mãe costuma dizer :"um cão danado, todos a ele". Pelos sérios equívocos que cometeu, a nossa Seleção virou um cão danado. Muitos se colocam violentamente contra ela, fazendo-a de bode expiatório das próprias insatisfações. Aliás, tenho escutado com uma certa desconfiança o discurso de pessoas ricas da classe dominante que nunca estiveram nem aí para como sobrevivem os pobres, se posicionando contra a Copa porque o dinheiro gasto nela privou o nosso povo de saúde e educação. Desde quando madames e senhores endinheirados estiveram preocupados com o acesso a bens e serviços do nosso povão sofrido que gosta e se alegra com as conquistas do nosso futebol?

É lamentável que um evento como uma Copa do mundo que está acontecendo de forma pacífica e enobrecedora para a imagem de nosso país, um evento em que recebemos tão bem aos estrangeiros, em que a torcida brasileira portou-se com tanta dignidade apostando todas as fichas na torcida pela nossa Seleção, vire cavalo de batalha de correlações de forças políticas onde cada um pensa em como tirar o melhor partido, negligenciando por completo a dor do luto do povo brasileiro que investiu na Seleção como um possível alento para seu cotidiano sofrido.

Sou brasileira e me orgulho disso. Assisti ao jogo contra a Holanda na disputa do terceiro lugar. Fiquei emocionada na hora em que foi cantado o hino nacional, fiquei contente pela presença maciça da torcida brasileira no estádio apoiando os nossos jogadores e aplaudindo respeitosamente a Seleção da Holanda quando o resultado outra vez foi muito desfavorável para nós. O povo brasileiro está triste. O povo brasileiro está de luto. Eu também estou. Mas não me canso de repetir que o nosso país está de parabéns pelo bonito que tem sido a Copa, a ponto de os jogadores alemães terem pedido desculpas por terem derrotado de forma dramática a um povo que os recebeu tão bem.

Estou de luto e tolero mal as investidas revanchistas tipo golpe baixo dos representantes da direita que se comprazem em dizer "tá vendo aí, não disse? Foi pouco! Que bom que o Brasil perdeu!!" Tolero mal aqueles que por questões políticas de aversão a esse ou aquele governante ou partido político não podem se solidarizar com o dor do povo brasileiro e não podem se orgulhar da bonita Copa que fizemos independentemente de termos sido derrotados ou não. Tolero mal quem não ama este país em que vivemos e gosta de se nutrir de comparações desinformadas e viesadas do que temos, com o que existe no exterior. Acho que não é hora de tamponarmos a frustração que sofremos escolhendo bodes expiatórios para acusar. É hora de viver a dor com a mesma dignidade com que nos conduzimos até aqui. Então vou me recolher e enquanto isso examino os inúmeros E-mails que já recebi de retornos dados por meus leitores do "Blá, blá, blá domingueiro.....".

Desde 2012 escrevo essa crônica dominical. Já se aproxima de fazer um ano que criei o blog e se acumulam na minha caixa de entrada inúmeras mensagens de pessoas muito sensíveis, dizendo de como a crônica as toca, como o que escrevo chega a elas. Na verdade ao que eu chamo de crônica vem sendo um texto em prosa às vezes muito introspectivo, às vezes o relato de um caso, às vezes ficcional, muitas vezes autobiográfico quando muito me exponho expressando sentimentos e opiniões e fatos de minha própria vida. Às vezes está razoavelmente escrito, às vezes é apenas uma garatuja literária muito rudimentar, tomada que posso estar pelo afã de fazer interlocução com o outro, negligenciando questões de estilo ou mesmo da boa redação. 

Não importa. O que vejo nas mensagens que recebo é que o outro me lê com carinho. O outro parece adivinhar no "arremedo" de escritora, a pessoa que há por trás do que está dito no texto. E essa pessoa sou eu. Gratificada por tudo que me dizem e que muito me importa. Tendo a sensação de que por mais solitário que prometa ser um domingo, no final não será solitário, porque muitos retornos virão. Tendo a sensação de que mais que um passa-tempo, este escrito já é um compromisso amorosamente construído com meus leitores. São poucos, mas há aqueles para quem escrevo e que nunca me disseram uma palavra nem de sim, nem de não, nem oralmente, nem por escrito. Não importa. Importa a grande maioria que tem algo sempre a dizer mesmo que não diga sempre. Importa é que no último dia de jogo de uma Seleção derrotada eu tenho uma caixa muito grande e muito terna de E-mails recebidos, sobre a qual eu posso me debruçar como uma brasileira enlutada, mas agradecida.
                                                                               Marcia Gomes.

domingo, 6 de julho de 2014

  • 06/07/14                              AMANHECER,  A  MÃE  É  SER.

 A aurora se anuncia por sinais tênues. O trinado discreto de um passarinho madrugador me dá conta de que fui despertada precocemente. O fantasma do inexplicável do outro se insinuou no meu sono e como um tirano impiedoso me tirou da cama. Contrastando com a lentidão da minha dor que insiste em perdurar, a manhã vai rapidamente se impondo e os raios de luz vão se espalhando afastando o breu, como a pressa da juventude afasta para longe com rapidez, quaisquer vislumbres de um tempo de ficar velho. Mais passarinhos se juntam à orquestra. Os passarinhos agora quase gritam que amanheceu. Amanhecer. A mãe é ser. O amanhecer é cruel. É uma nesga rósea de nuvem que vai se alastrando, é o nascimento do dia convidando os velhos a testemunhar essa irrupção de vida, logo os velhos que já em tempo crepuscular vão se despedindo. Como um trabalho de parto nas últimas contrações, se fez manhã. Já se ouve ruído de carros circulando na rua se interpondo na harmonia do canto dos pássaros.

Amanhecer. A mãe é ser em testemunho da aurora. Amanhece. A mãe é esse ser. Minha mãe é esse ser que esquece que esquece. Me recordo de cenas muito comoventes dos dias em que estive em Maceió. Encontro contrastante de gerações, ela e Mimi, a sua bisneta, cedo estão despertas e brincam juntas. Com Mimi ela esquece de esquecer. Com sua vozinha frágil, entoa uma lúdica canção passeando seus dedos no bracinho da bisneta que sorri com dentinhos falhados, herança do bisavô. A bisavó e Mimi sorriem juntas. Mimi pede com gestos para repetir o jogo. Eu observo comovida. Se na noite anterior minha mãe se queixava de nada mais da vida se lembrar e pedia pra Deus vir logo lhe buscar, num amanhecer se engaja num terno jogo lúdico com a sua bisneta, canta e sorri.

 O velho, será essa intermitência entre desejo de se despedir da vida e esse ímpeto vital em que lúdico, brinca? O envelhecer da mãe será uma agenda onde se intercalam ganhos e perdas?  Quase já perdi a mãe que cuidava de mim? Quanto significa agora ela lembrar de me perguntar como foi minha cirurgia com o dentista!!! Esses momentos vão ficando cada vez mais raros e eu não estive perto o suficiente para acompanhar o ritmo desse desligar-se. Aos poucos ela vai deixando de acompanhar o que me acontece? Quando foi que diminuiu o espaço entre eu e ela, para partilhar as coisas que me inquietam? Um longo intervalo de tempo vazio de registros se faz entre o momento em que eu era ainda cuidada, e esse momento agora em que quero cuidar e a distância geográfica me impede.

De repente, da sua cadeirinha, Mimi deixa um brinquedinho cair no chão. Minha mãe sorrindo se abaixa, pega o brinquedo e entrega a Mimi. O jogo se repete. Fico perplexa!!! Minha mãe praticamente nos últimos tempos só consegue se locomover para sair, de cadeira de rodas. Eu mesma, com o incômodo da minha hérnia de disco, teria dificuldade de me engajar naquele jogo com a criança. Como minha mãe me surpreende!! Como oscila de um extremo desamparo a uma extrema lucidez!! E a gente fica, de um momento para outro, sem saber com quem está lidando. O bonito é que esses momentos de lucidez e vida ainda aconteçam e nos encham de ternura.

Na véspera do jogo entre Brasil e Colômbia nas quartas de final, minha mãe me liga para perguntar para qual time eu vou torcer. Está lembrada que tenho um filho adotivo colombiano. Respondo, é claro, que torceria pelo Brasil,aceitando contudo que vencesse o que jogasse melhor. Então ela me diz que não assistirá ao jogo porque acontecerá na hora da sua missa. Revela-se um tanto contrafeita com a existência da Copa que vem atrapalhando seus compromissos religiosos. Houve um momento recente em que ela sequer registrava que estava acontecendo a Copa do mundo.

Ontem, quando todo o país acordou consternado com a grosseira violência do jogador colombiano contra Neymar, tirando-o arbitrariamente da Copa, minha mãe me emocionou muito. Muito mesmo!!! Além do registro cognitivo do fato, envolveu-se afetivamente com o acontecimento, manifestando muito lucidamente seu sentimento de nacionalidade. Ao amanhecer, ligou-me indignada com o ocorrido com Neymar. Protestou contra a passividade medrosa do juiz, que nada fez para punir o agressor. Posicionou-se em tom apaixonado. Hoje, acordo convencida que não há lapso de memória que suplante uma boa dose de patriotismo. Hoje, amanhecendo, a mãe é sendo.
                                                                                                                  Marcia Gomes.

 

sábado, 5 de julho de 2014

29/06/14                                 O  OUTRO,  QUEM  É ???

As oscilações climáticas do mês de junho. Dias de sol intercalados por dias de chuva torrencial em Salvador. As oscilações de estados subjetivos de todo ser falante. Dias de júbilo por coisas da vida que vão dando certo. Dias de perplexidade diante das coisas que não dão muito certo e que não podemos controlar.

Razão de júbilo, parece que um encontro da turma de Psicologia que se formou em 76, vai assumindo contornos de possível realização talvez em início de novembro deste ano. Rever os colegas com os quais mantive frouxos laços de convívio. Poder dizer que se fosse hoje eu teria feito diferente. Quanta gente cuja fisionomia eu sequer me recordo.... No tempo da faculdade eu vivia num grupo muito fechado. Em torno de 40 anos depois, quero conhecer e reconhecer meus colegas. Quero também estar com aqueles com quem mantenho proximidade. São poucos, diante do tamanho da turma, mas muito queridos. Vai ser gostoso fazer uma espécie de "hora da saudade".

Há poucos anos atrás eu jamais me veria entusiasmada com a perspectiva de um encontro de turma. Não mexeria uma palha para que se realizasse e talvez torcesse o nariz na hora de ir. Talvez nem fosse, tão anti social que sou. Continuo tímida, um tanto avessa a situações sociais, mas o desejo de reconhecer aquelas pessoas agora se torna bem maior.

A ideia de fazer esse evento se delineou num encontro que tive com colegas, se não me engano, em abril deste ano. (Ver a crônica "O tempo, algoz? companheiro?" no blog:  blablablazista.blogspot.com.br ) . Na crônica eu relato o que esse encontro com o grupo de Dôra representou para mim. Saí desta tarde na casa de Dôra entusiasmada com a sugestão do grupo de fazermos o encontro e me mexi. Agora em junho, com o auxílio do espírito pragmático e colaborador da amiga e colega Bebel Drummond, estamos tentando dar uma arrancada no projeto.

Razão de júbilo, recebi inúmeros E-mails e alguns telefonemas de familiares, amigos e colegas agradecendo e se solidarizando pelo que escrevi sobre a visita à minha mãe e parentes próximos em Maceió. Fiquei comovida como aquele resgate tocou as pessoas.

Razão de júbilo, eu muito contente com o saldo positivo que a Copa do Mundo vai deixando. O sentimento de nacionalidade que transcende convicções políticas e partidos, o depoimento dos estrangeiros dizendo se sentirem seguros e bem acolhidos, os ganhos econômicos para o nosso país, a exemplo das obras que foram realizadas e ficarão para nosso usufruto, o recuo das investidas da direita diante da convicta expressão de patriotismo dada pelo povo brasileiro.

Torcer pela nossa Seleção, eu sempre torcerei. Mas estive sempre convencida de que deveria vencer o melhor. Essa é a maior demonstração dada pelo país de que ser brasileiro é antes de tudo cultivar o sentimento de justiça, torcendo para prosseguirmos na luta pela construção de uma sociedade mais igualitária nos direitos e mais respeitosa com a diversidade subjetiva.

Razão de perplexidade, saber que o Outro é inacessível. O Outro é uma suposição às vezes custosa, que está sempre a nos surpreender. Ter sempre que inventar, fazer um revestimento apaziguador diante desse fundo buraco que é a questão: o que é que o Outro quer de mim? E o que dizer quando o Outro silencia, não nos dá qualquer pista para que ao menos possamos nos implicar no que há de nossa participação no silêncio do Outro? Diante do longo silêncio do Outro, sem qualquer resposta, os apelos têm que cessar. E sobrevém a angústia. Angústia que precisa ser vivida sem culpa auto-referente. Angústia diante da constatação de que por mais que pensemos conhecer, não conhecemos o Outro. Angústia diante da constatação de que o Outro tem suas próprias questões e que por conta delas, talvez não nos responda.

Ter que inventar revestimentos para as abruptas, inesperadas mudanças de padrões do Outro. Suportar que nada podemos representar para ele. Suportar não correr o risco de converter suposições em certezas. O Outro é uma suposição às vezes custosa, sempre a nos surpreender e sobre isso não temos qualquer controle. Sobrevém o sentimento de perda, desaparelhados que às vezes somos, para fazer substituições imediatas. Viver um luto sem saber sequer se estamos efetivamente de luto. Cuidar de dar trégua a especulações catastróficas e aguardar. Somente aguardar.

A sensação de que em algumas relações de amizade vividas com intensidade e entrega, de repente não chegamos a lugar algum. Não há para onde caminhar. Como diz o escritor Jorge de Lima, "Também há naus que não chegam mesmo sem ter naufragado". Sensação de estar à deriva, cuidando de não naufragar. Não naufragar para permitir que a angústia da deriva possa se converter em desejo de uma outra coisa. Aproveitar a deriva para vislumbrar um novo porto não esperado. Escrever, não será vislumbrar um novo porto? Um novo porto onde possamos desembarcar e esculpir na areia da praia a palavra "outro" com minúscula. Enxugar o poder do outro, desinflar. Conviver, ainda que sob frustração, ainda que sob desapontamento, com a pergunta irrespondível: "O Outro, quem é?" O Outro é o outro. E prosseguir.

Por um longo e inquietante tempo, interrompo a escrita desse texto para assistir aos jogos do Brasil contra o Chile e da Colômbia contra o Uruguai. Por um longo tempo, dou uma trégua para as minhas especulações subjetivas que podem até ser chatas para o leitor. O jogo da Seleção foi um sufoco para todos nós. Na minha opinião de leiga o Brasil jogou muito mal. Não fosse o goleiro.... Fiquei contente por meu filho adotivo com a vitória da Colômbia. O Brasil jogou mal mas a torcida em todo o país foi de uma tenacidade comovente!!! Responde, grita, não entrega os pontos. "Ô, ô, ô, o campeão voltou!".  O sentimento de nacionalidade me toma inteira. Com meu boné com a bandeira do Brasil, passo um longo tempo sendo pura adrenalina. Como amamos este país, transcendendo convicções políticas!!! Por um longo tempo, dou uma trégua às minhas especulações subjetivas. Por um longo tempo construo a fantasia alvissareira de que o Outro é meu povo brasileiro. E vou em frente!!!!
                                                                                       Marcia Gomes.