domingo, 27 de julho de 2014

27/07/14                                     QUEBRA - CABEÇA

Viver pode ser um desmantelamento de alma de dar juízo a maluco. Toda noite quando saio do trabalho encontro com ele. Às vezes tenho já a impressão que está à minha espera para contar as novidades. Como saio tarde, só tem eu e ele no prédio e enquanto espero meu táxi chegar, a conversa rola. Somos amigos.

 Sexta-feira falou-me da perda de Ariano Suassuna. Ele me disse: "Dra. Marcia, aquele homem era um gigante de nordestinidade. Ele fotografou a alma nordestina mas não foi com essa coisa de tecnologia digital que o pessoal faz foto besta de qualquer celular. Ele fotografou a alma nordestina como um lambe-lambe de feira. Botava seus personagens para fazer pose e mandava eles passearem enquanto revelava o filme. Quando eles voltavam do passeio para buscar a foto, tinham muita história pra contar e ele fotografava de novo e mandava de novo eles passearem na feira. No fim do dia tinha um mural completo. A história da Compadecida é como um mural de fotos do viver nordestino tiradas numa praça de feira por um lambe-lambe. Dra. Marcia, Ariano Suassuna jamais será esquecido. Cada nordestino tem ele gravado no coração porque um nordestino jamais se esquecerá do lambe-lambe de feira que fotografou sua alma".

Fiquei tocada com a descrição de Ariano Suassuna dada pelo meu amigo, o vigia noturno do prédio onde trabalho. Fiquei tocada de ver na originalidade da sua descrição, o quão comovido ele estava pela perda daquela figura emblemática da literatura brasileira. De tudo que li e vi sobre a morte de Suassuna, seu depoimento, foi, sem dúvida, o que mais me comoveu. O depoimento de um vigia noturno de prédio de consultórios.

Dando prosseguimento à conversa, ele disse: "Por falar em foto, hoje, finalmente, trouxe no meu celular, pena eu não ser um lambe-lambe, a foto do quebra-cabeça". E me mostra a foto. É uma montagem de cinco mil peças de quebra-cabeça que ele fez de uma obra de Michelangelo. Então comenta que montar quebra-cabeças tem sido ultimamente o seu entretenimento preferido. Segundo ele, é como viver. Não adianta querer por força encaixar a peça. Tem que ter paciência e seguir as pistas dadas pela forma que vai se delineando. No começo você tem cinco mil peças espalhadas como num caos e parece que você não vai conseguir. É um desafio. Mas pouco a pouco tudo começa a fazer sentido.

 E acrescenta: "Parece com o trabalho da senhora, não é, doutora? Agora estou montando um de duas mil peças. É Platão dando aula a seus discípulos. Desde que comecei a montar quebra-cabeça, passei a escutar música de modo diferente. Antes escutava a música como todo. Agora aprecio cada instrumento, cada acorde, cada frase e depois reúno no conjunto. Fica mais rico, mais bonito. Estou mais atento aos detalhes. É como a poesia de Manoel de Barros, um dos meus poetas preferidos. Ele constrói o poema a partir de um detalhe do cotidiano que parece sem importância. Ele diz que o bater de asas de um pássaro pode ser mais importante que a explosão de uma bomba nuclear. A senhora conhece Manoel de Barros?"

Respondo que conheço Manoel de Barros e que gosto muito. Conto que por coincidência ganhei recentemente toda a obra dele e que está lá em cima no meu consultório. Combinamos que no próximo dia que nos encontrarmos, vou levar alguns volumes para lhe emprestar. Ele fica muito feliz com a oferta.

A chegada do meu táxi interrompe a bonita conversa. Sigo no táxi pensando que viver pode ser um desmantelamento de alma de dar juízo a maluco. Sigo pensando que sou feliz de ter todo fim de dia um interlocutor tão sensível. Um interlocutor que me deu de presente um DVD com o filme "Freud Além da Alma" para nós comentarmos. Um interlocutor que passa as noites acordado como vigia de prédio, para estudar filosofia durante o dia. Um interlocutor
que lê Nietzsche.

 Volto pra casa inquieta com esse país atravessado pela desigualdade social. Volto pra casa me perguntando por que ao invés de vigia noturno de prédio de consultórios, o meu amigo não é profissional liberal, um artista, um professor. Volto pra casa pensando por que a uns a vida oferece (injustamente?) oportunidades e a outros, sonega. Só nega. Volto pra casa pensando que no quebra-cabeça da vida veio uma peça faltando.

Ciente de que essa peça que falta é um defeito no quebra-cabeça da vida de todos nós e que pode ser um motor de desejo, ciente que sobre essa lacuna podemos inventar e reinventar, resolvo passar o fim de semana terminando de ler um livro intitulado "A Distância Entre Nós" de uma escritora indiana que não conheço e que se chama Thrity Umrigar.

 É uma história da relação de uma patroa e uma empregada doméstica muito dedicada. Há muito afeto entre as duas e ambas são mulheres oprimidas pela cultura machista vigente em Bombaim. No final muito belo e dramático, a diferença de classe social se sobrepõe  ao afeto das duas e grita mais alto. A empregada é vítima de uma armadilha perversa do genro da patroa, que prefere acreditar nele e despedir impiedosamente a sua fiel criada. Por que estou cometendo a indelicadeza de contar o final de um livro? Que tem o final do livro a ver com a peça de quebra-cabeça que falta na vida de todos nós?

 É que a empregada injustamente despedida, mesmo sendo analfabeta, ao invés de se sentir surpresa com o gesto da patroa sempre tão amorosa com ela, compreende que o final da história entre as duas é inexorável e, a despeito de sua vida miserável, toma o fato de não ter mais patroa como uma libertação. Celebra comprando balões com os últimos trocados que lhe restam, e soltando-os numa praia para voarem livres. Celebra o triunfo da sua desgraça genuína e honesta sobre o conforto mentiroso sob os quais os patrões opressivos quando têm seus privilégios ameaçados tendem a escolher viver. Bhima (é esse o nome da empregada) cuja vida é um quebra-cabeça onde faltam inúmeras peças, resolveu preencher as lacunas deixadas com balões de liberdade e integridade voando ao vento. Meu carinho e minha homenagem a todas as Bhimas que há por aí.
                                                                                                                  Marcia Gomes.
                                                                                                                

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