domingo, 6 de julho de 2014

  • 06/07/14                              AMANHECER,  A  MÃE  É  SER.

 A aurora se anuncia por sinais tênues. O trinado discreto de um passarinho madrugador me dá conta de que fui despertada precocemente. O fantasma do inexplicável do outro se insinuou no meu sono e como um tirano impiedoso me tirou da cama. Contrastando com a lentidão da minha dor que insiste em perdurar, a manhã vai rapidamente se impondo e os raios de luz vão se espalhando afastando o breu, como a pressa da juventude afasta para longe com rapidez, quaisquer vislumbres de um tempo de ficar velho. Mais passarinhos se juntam à orquestra. Os passarinhos agora quase gritam que amanheceu. Amanhecer. A mãe é ser. O amanhecer é cruel. É uma nesga rósea de nuvem que vai se alastrando, é o nascimento do dia convidando os velhos a testemunhar essa irrupção de vida, logo os velhos que já em tempo crepuscular vão se despedindo. Como um trabalho de parto nas últimas contrações, se fez manhã. Já se ouve ruído de carros circulando na rua se interpondo na harmonia do canto dos pássaros.

Amanhecer. A mãe é ser em testemunho da aurora. Amanhece. A mãe é esse ser. Minha mãe é esse ser que esquece que esquece. Me recordo de cenas muito comoventes dos dias em que estive em Maceió. Encontro contrastante de gerações, ela e Mimi, a sua bisneta, cedo estão despertas e brincam juntas. Com Mimi ela esquece de esquecer. Com sua vozinha frágil, entoa uma lúdica canção passeando seus dedos no bracinho da bisneta que sorri com dentinhos falhados, herança do bisavô. A bisavó e Mimi sorriem juntas. Mimi pede com gestos para repetir o jogo. Eu observo comovida. Se na noite anterior minha mãe se queixava de nada mais da vida se lembrar e pedia pra Deus vir logo lhe buscar, num amanhecer se engaja num terno jogo lúdico com a sua bisneta, canta e sorri.

 O velho, será essa intermitência entre desejo de se despedir da vida e esse ímpeto vital em que lúdico, brinca? O envelhecer da mãe será uma agenda onde se intercalam ganhos e perdas?  Quase já perdi a mãe que cuidava de mim? Quanto significa agora ela lembrar de me perguntar como foi minha cirurgia com o dentista!!! Esses momentos vão ficando cada vez mais raros e eu não estive perto o suficiente para acompanhar o ritmo desse desligar-se. Aos poucos ela vai deixando de acompanhar o que me acontece? Quando foi que diminuiu o espaço entre eu e ela, para partilhar as coisas que me inquietam? Um longo intervalo de tempo vazio de registros se faz entre o momento em que eu era ainda cuidada, e esse momento agora em que quero cuidar e a distância geográfica me impede.

De repente, da sua cadeirinha, Mimi deixa um brinquedinho cair no chão. Minha mãe sorrindo se abaixa, pega o brinquedo e entrega a Mimi. O jogo se repete. Fico perplexa!!! Minha mãe praticamente nos últimos tempos só consegue se locomover para sair, de cadeira de rodas. Eu mesma, com o incômodo da minha hérnia de disco, teria dificuldade de me engajar naquele jogo com a criança. Como minha mãe me surpreende!! Como oscila de um extremo desamparo a uma extrema lucidez!! E a gente fica, de um momento para outro, sem saber com quem está lidando. O bonito é que esses momentos de lucidez e vida ainda aconteçam e nos encham de ternura.

Na véspera do jogo entre Brasil e Colômbia nas quartas de final, minha mãe me liga para perguntar para qual time eu vou torcer. Está lembrada que tenho um filho adotivo colombiano. Respondo, é claro, que torceria pelo Brasil,aceitando contudo que vencesse o que jogasse melhor. Então ela me diz que não assistirá ao jogo porque acontecerá na hora da sua missa. Revela-se um tanto contrafeita com a existência da Copa que vem atrapalhando seus compromissos religiosos. Houve um momento recente em que ela sequer registrava que estava acontecendo a Copa do mundo.

Ontem, quando todo o país acordou consternado com a grosseira violência do jogador colombiano contra Neymar, tirando-o arbitrariamente da Copa, minha mãe me emocionou muito. Muito mesmo!!! Além do registro cognitivo do fato, envolveu-se afetivamente com o acontecimento, manifestando muito lucidamente seu sentimento de nacionalidade. Ao amanhecer, ligou-me indignada com o ocorrido com Neymar. Protestou contra a passividade medrosa do juiz, que nada fez para punir o agressor. Posicionou-se em tom apaixonado. Hoje, acordo convencida que não há lapso de memória que suplante uma boa dose de patriotismo. Hoje, amanhecendo, a mãe é sendo.
                                                                                                                  Marcia Gomes.

 

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