sábado, 26 de abril de 2014

 "Blá, blá, blá, domingueiro...."e...."Estranho Fruto".




27/04/14                                     "ESTRANHO  FRUTO"

Pareço estar no tempo das biografias. Biografia nem é muito a minha praia. Recentemente li a de Drummond, a de Clarice Lispector e a de Marighella que inspirou meu escrito de Sexta Feira da Paixão. Pareço estar num tempo onde o temor de devassar intimidades fica suplantado pelo desejo de fazer contato com o histórico de pessoas, da atmosfera que as cercou no tempo em que viveram. Desejo que neste momento vai para além das portas do meu consultório. Liberada do imperativo ético de escutar de um lugar de vazio, lendo a biografia, posso viajar na história como bem quiser  o meu imaginário.

 Mais de seis mil africanos foram vendidos como escravos só na Virgínia entre 1699 e 1708. Em 1867 em todos os Estados Unidos não havia diferença entre negros livres e ex-escravos: todos eram considerados seres da pior categoria. No verão de 1914, enquanto  Sara Harris (Sadie) trabalhava como doméstica para uma família branca, ainda adolescente foi seduzida por Clarence Holiday e engravidou. Deu à luz Elinore Harris no dia 7 de abril de 1915, que viria depois a ser chamada Eleanora. Clarence se tornou um conhecido músico em ascensão e Sadie , pelo "pecado" que cometera, foi cruelmente rejeitada pela sua família e cortou um dobrado para criar Eleanora, sem a ajuda do pai.

No dia 5 de janeiro de 1925, Eleanora, recolhida pelo juizado de menores por gazetear aulas, dava entrada numa instituição sob o cuidado de freiras. No mesmo ano foi entregue de novo à custódia de sua mãe. Adolescente, viveu num bordel. Muito jovem, quando já cantava, para contestar o modelo da mãe rejeitada pelos homens, Eleanora escolhia homens que se achavam durões e depois os rejeitava antes que pudessem rejeitá-la. Em 1928 já havia se mudado de Baltimore para Nova York.

Todos esses dados, recolhidos por mim de uma biografia, são controvertidos porque Eleanora era nada mais nada menos que a monumental cantora de jazz, Billie Holiday. A maravilhosa Billie parecia extrair prazer de confundir seus historiadores, tentando lhes deixar claro que a ficção é muito mais engenhosa do que a crua e inacessível realidade dos fatos. Como uma criança imaginativa, Lady Day gostava de inventar histórias sobre si mesma, ludibriando seus biógrafos, quem sabe como uma forma de ludibriar o que sabia sobre si mesma, tão doloroso que era esse saber.

Tornou-se alcoólatra, viciada em drogas, foi presa e passou por alguns casamentos muito conturbados. Adotou o sobrenome do pai somente quando este não pode fugir de reconhecer o seu talento. Sendo negra, cantava em locais que só aceitavam brancos no público. Para cantar teve que se submeter a entrar nos teatros pelas portas dos fundos.

Com o passar do tempo o mundo teve que se render ao magnetismo da sua voz inimitável. Voz lânguida como um canivete cortante expondo as vísceras. A dor de ter que possuir uma voz privilegiada para ser minimamente tolerada no mundo dos brancos, fazia da vida da jovem Billie Holiday uma sucessão de desatinos, o eco pungente de uma alma dilacerada.

Em 1939, surge finalmente o caminho pelo qual o canto de Billie Holiday lhe trouxe a oportunidade de resgatar com uma bofetada de luva de pelica, os rastros semi clandestinos da sua história, da história dos negros oprimidos. Billie recebeu do compositor Lewis Allan, cujo nome verdadeiro era Abel Meeropol, a canção "Strange Fruit".  Quando  ela cantou a música pela primeira vez, as lágrimas correram. A cada noite ela encerrava o show com a canção, e, nessa hora, o salão ficava imerso na escuridão. Os garçons não se movimentavam e ela não tocava no microfone, tão imóvel ficava. E as lágrimas correndo.

Até aquela época fotos de negros não eram publicadas em revistas. Cantando "Strange Fruit", Billie Holiday foi fotografada pela TIME que divulgou a letra da canção:

 "As árvores do Sul carregam um estranho fruto./ Há sangue em suas folhas e na sua raiz,/ Corpos negros balançam na brisa meridional,/ Estranho fruto que cai dos álamos./ Uma cena pastoral do grandioso Sul,/ Os olhos inchados e a boca retorcida,/ O aroma de magnólias, doce e fresco,/ E, de repente, o cheiro de carne humana queimada./ Aqui está um fruto para os corvos petiscarem,/ Para a chuva empapar, para o vento secar,/ Para o sol apodrecer, para cair das árvores,/ Eis um estranho e amargo fruto."

O fruto estranho eram os corpos dos negros enforcados e queimados pendendo nas árvores no Sul dos EUA.

P.S. Minha gratidão a Carlos Machado por compartilhar do meu encantamento por Billie Holiday e pela causa dos negros.
                                                                                      Marcia Gomes.                

                                                       

 "Blá,blá,blá domingueiro...."e.....O dia da Paixão.

18/04/14                      O  DIA  DA  PAIXÃO

Ser perseguido por inimigos, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Cinquenta anos do golpe militar. Na Sexta-Feira Santa de 1964, uma manchete estampava em letras maiúsculas: "A Nação Inteira ao Lado dos Marinheiros e Fuzileiros Navais". Referia-se a o que ficou conhecido como "A Revolta dos Marinheiros", movimento à esquerda que aconteceu poucos dias antes da instauração da ditadura direitista que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou barbaramente um número incontável de pessoas que lutavam por uma causa.

Hoje, dia da Paixão. Um calvário de dor para um homem e seus companheiros. Escolhi varar a noite de quinta para sexta lendo a biografia de Carlos Marighella. Perseguido por inimigos, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Um homem cheio de controvérsias, que por certo cometeu muitos equívocos percorrendo desde a década de 30 até novembro de 69, o conturbado cenário político brasileiro. Inicialmente militante do PCB, depois o nome principal da ALN, jamais abriu mão das suas convicções nem traiu sua causa.

Entre milhares de outras, três coisas me comoveram muito na história de Marighella : seu choro convulsivo quando do fim desiludido do "culto à personalidade" de Stálin. Resultou numa espécie de quadro depressivo quando teve que consultar um psiquiatra pelo seu luto, seu sentimento de orfandade; para protegê-lo das investidas da repressão, encontrou seu filho pela primeira vez quando este contava já 8 anos; aconselhou a uma amiga que o acolheu em seu apartamento mais de uma vez: "responda sempre com poesia".

Falando um jargão da psicanálise que tenho, com muito orgulho, como causa, -- mesmo tendo uma espécie de amigo às avessas me desejado que em nome dela eu caísse na sarjeta e vivesse o resto dos meus dias pedindo dinheiro emprestado aos amigos--, eu diria que amanhecer a Sexta-Feira Santa lendo a biografia, me trouxe, livre associando, uma série de significantes ainda hoje muito presentes na minha história, na minha vida.

É que eu não fui uma criança nem uma adolescente comum. Não frequentei a escola primária e eram poucas as crianças autorizadas a frequentar minha casa. Filhos de latifundiários ou de políticos direitistas, nem pensar. Na minha casa ouvia-se a Rádio de Moscou e a Rádio Mayrink Veiga. As horas da escuta eram sagradas. Fiquei sabendo o que era suicídio por causa da morte de Getúlio Vargas. Aprendi muito cedo que Carlos Lacerda era um monstro detestável, um traidor.

E então agora me vem a enxurrada de significantes: satélite Sputinik, Carlos Prestes, Diógenes Arruda, João Amazonas, Dolores Duran, Pedro Pomar, Nikita Khruschóv, Yuri Gagárin, Juscelino Kubitschek, Fidel Castro, Jânio Quadros, Marechal Lott, João Goulart, Brizola, Francisco Julião, Grupo dos Onze, reforma agrária, Mao Tsé-tung, Che Guevara. Todos esses nomes e milhares de outros povoaram a minha infância. Infância de uma criança solitária que muito cedo aprendeu que roupa servia apenas para cobrir o corpo e que eletrodomésticos eram para costumes pequeno-burgueses. Até hoje tenho enorme dificuldade de me permitir comprar uma roupa.

Em 1964, antes que eu completasse 11 anos, mudamos às pressas de Ibirataia para Salvador e nos abrigamos na casa de um tio. Meu pai passou um enorme tempo sem conseguir arrumar emprego, teve seus livros de Jorge Amado queimados e as caixas de seus aeromodelos destruídas sob a suspeita de guardarem armas de fogo. Depois do golpe e com essas investidas da repressão, sentiu-se desassistido pelos companheiros, desiludiu-se com o PCB e passou a dedicar o seu tempo a uma mulher por quem se apaixonou perdidamente.

A sua filha adolescente atípica, em 1967, com 13 anos, subia num caixote para discursar aos companheiros da escola pública conclamando-os a fazer greve e derrubar a ditadura. De liderança estudantil secundarista tornou-se militante de uma organização clandestina e já aos 15 anos pegava em arma e usava nome de guerra. Às vésperas de entrar na universidade já deixava a organização, também desiludida. Fora repreendida como inconsequente por seus companheiros, por haver dado bandeira para a repressão chorando no enterro de uma companheira de 17 anos. Por ter chorado, foi convocada a fazer uma dura sessão de autocrítica. Na universidade aproximou-se do movimento estudantil, mas sempre como simpatizante, não se sentindo estimulada a compor os quadros de qualquer partido ou organização.

A mulher adulta nunca esqueceu das lições que aprendeu na sua infância e adolescência, quanto a nunca trair a sua causa. Por isso antecipei para hoje, Sexta-Feira Santa, a escrita do "Blá, blá, blá.....". Hoje, dia da Paixão de Cristo, perseguido, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Hoje, quero dizer àquele espécie de amigo às avessas, que o seu desejo de que eu acabe na sarjeta pedindo dinheiro emprestado aos amigos pode até se concretizar, do ponto de vista material, embora não seja isso que se afigure no presente para mim. Do ponto de vista metafórico, estou imune.

Estou imune, porque  ao dizer isso, o tal amigo avesso à psicanálise mais do que sensível e atento ao funcionamento do outro,  não se deu conta de com quem estava falando. Embora soubesse que aos 15 anos eu preferia, ao invés de frequentar festinhas próprias para adolescentes, participar de minhas reuniões clandestinas, fazer meu treino com metralhadora, mesmo sabendo que dali a meia hora eu podia ser presa, torturada, barbaramente assassinada em nome de uma causa. Saí da organização em defesa do meu direito ao choro. Não para usufruir das vantagens de uma vida burguesa materialmente confortável, que nunca me seduziu. Saí da organização por uma questão de coerência com o que eu acreditava parecer justo para mim.

Ao dizer isso, o ódio do tal amigo à psicanálise se revelou mais fecundo no mau sentido, do que o respeito e o afeto por uma amiga que nunca desconsiderou os interesses e as motivações dele pelo que quer que fosse, embora esse tipo de pessoa talvez não saiba o que é sentir-se apaixonado, não conheça o brilho de ser causado por nada.

Ao dizer isso, ele não sabe do entusiasmo que me anima cada vez que leio um texto de Freud ou Lacan. Ele não sabe que em nome do quão gratificada me sinto quando um paciente me fala deitado no divã, pago o preço, seja qual for. Ao dizer isso, ele não sabe que a sarjeta é não poder ser movido por um desejo. Nada sabe sobre Jesus Cristo ou Marighella. 
                                                                  Boa Páscoa a todos,
                                                                                  Marcia Gomes.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Blá, blá, blá domingueiro....."e....ESPE(ta)CULAR.‏




13/04/14                                 ESPE(ta)CULAR.

Espetacular, da magnitude de um espetáculo caleidoscópico sobre a riqueza da subjetividade humana, é a diversidade de opiniões que um modesto texto ficcional, muito modesto mesmo, pode despertar nos leitores. Quando transitamos no universo da linguagem, a gente vai saber só depois. O meu escrito de domingo antepassado intitulado "Passeio Continente" foi uma espécie de testemunho termômetro da singularidade daqueles que têm a paciência de ler o que escrevo.

 Muitos silenciaram. Suspeito que eu não soube imprimir ao texto a gradação sutil de esperança que vai tomando a personagem no decorrer do passeio. Ou talvez, muitos silenciaram, não muito bem impressionados com a forte tonalidade melancólica do texto. A esses leitores, escapou de fazer a possível leitura  do escrito como um encontro de resgate promissor entre duas pessoas, na medida em que uma oferece acolhimento continente para a outra.

Por outro lado, vários elogiaram encontrando beleza no que foi dito. Uma pessoa cuja opinião muito prezo, me disse que não sabia se era Marcia ou Marguerite Duras quem escrevia o texto. Fiquei muito comovida com este comentário que tomei como um elogio. Um amigo escritor, cuja opinião também muito prezo, me disse que o texto era tão introspectivo, mas tão introspectivo, que não conseguiu fisgá-lo em nada. Me fez pensar.

Enfim, mexida com esse zum-zum-zum de opiniões, resolvi dar uma trégua para a ficção e enveredar por uma via mais autobiográfica e leve de memórias de infância. Aí minha mãe veio em meu socorro: "Por que você não conta aquela da vaca no espelho?" Então saí do espetacular para o especular, depois de ter feito um intervalo no domingo passado. Vocês devem lembrar, tentei relatar o impacto que teve sobre mim ser convidada e comparecer a um encontro com colegas de Psicologia. O encontro me fez pensar sobre como o tempo pode ser nosso algoz ou companheiro. Bom, mas vamos ao "ESPECULAR" deixando de tantas especulações.

A sugestão de minha mãe que agora está animada para escrever sua própria história de vida, projeto ao qual dou a maior força, me põe em maus lençóis literários. Como explicar a relação metafísica entre uma vaca no espelho e a chegada do fim do mundo? Essa é coisa para criança que vê relações metafísicas entre tudo quanto é coisa ou então para poeta: no espelho tinha uma vaca, no espelho tinha uma vaca e chegou o fim do mundo. Por uma mera questão rítmica, sem apelar para metafísica alguma, a vaca no espelho implicaria na chegada do fim do mundo, sem mais delongas. Assim tudo estaria dito sem precisar conversa comprida. Conversa comprida é mais da incontinência verbal do que da ação poética. Esses poetas são geniais. E quem não é poeta? Quem não é poeta se contenta com a incontinência. Vamos a ela.

Quem já leu um escrito meu de memórias de infância já me viu contar sobre Taperoá. Taperoá era a cidade de deixar criança encantada com seus tipos humanos originalíssimos, com sua festa folclórica de nome Zameapunga. Pois em Taperoá tinha um sítio defronte da nossa casa. Por aí já começam as insinuações do realismo fantástico onde tudo pode acontecer. No sítio tinha Dona Odete. E em Dona Odete tínhamos quem nos presentear com delicioso doce de leite. Leite das vacas do sítio. Dona Odete era uma senhora cândida. Mais ocupada em ordenhar suas vacas do que com os boatos sobre o final do mundo.

Não só em Taperoá, mas em todos os lugares vez por outra circula a notícia alvissareira para alguns, aterradora para outros, de que o mundo vai se acabar. Não é por guerra nuclear, devastação ecológica e muito menos por bombardeio aéreo de torres. Corrupção? Nem pensar. As reais razões pelas quais se apostaria no fim do mundo não chegavam ainda em Taperoá. Era pelas profecias de não sei quem. Nostradamus? E o desastre passava a se anunciar. Para nossos pais, nem alvissareiro nem aterrador. Não eram supersticiosos. Quem dera que algo viesse a acontecer somente porque alguém disse. Mas para sorte dos poetas palavra transcende coisas, o dito não acontece, o dito é. De modo que para nossos pais que gostavam mais dos poetas do que de Nostradamus, ficou o dito pelo não dito. Não estavam nem aí para o dia do fim do mundo que finalmente chegou.

Vai-se lá saber o que se passa em cabeça de criança? Chovia torrencialmente, razão pela qual não saímos à varanda para brincar. Ficamos no quarto, onde havia um guarda-roupa com um espelho enorme. Até aí nenhum de nós deu sinal de que estivesse recordando ser aquele o maldito dia. Brincávamos. De repente, Cristina, nossa prima de Salvador que viera nos visitar em férias, rompeu em prantos apontando para o espelho. Dizia: "o mundo vai se acabar e nunca mais vou ver meu pai e minha mãe". Olhamos todos para o espelho e foi um choro geral: "o mundo vai se acabar, o mundo vai se acabar" ao invés de "no espelho tem uma vaca, no espelho tem uma vaca". E tinha. Não éramos poetas. Éramos crianças fazendo uma conexão mágica. Uma coisa é o dito. Outra coisa é o visto. Mas por que uma vaca no espelho torna-se evidência da chegada do fim do mundo? Talvez porque uma alucinação coletiva seja, este sim, o prenúncio do fim das coisas, como estamos a ver nos dias de hoje.

Finalmente minha mãe chegou para nos acalmar. E mães, além de outros, têm o mérito de pôr nossos pés no chão, nos assenhorando de que o que estamos vendo é o que estamos vendo. Isso é mais simples, mas menos fantástico do que fazer conexões delirantes. Ela nos explicou que no espelho estava sim a vaca do leite do doce de Dona Odete. Encontrara o portão aberto, entrou na varanda e se pôs à janela que dava para o quarto. Indiferente, é claro, à chegada do fim do mundo. Interessada, sim, na sua imagem especular.

Está tudo muito bem, está tudo muito certo, mas como vou explicar por que emparelhamos a imagem da vaca no espelho com a chegada do fim do mundo? Se fôssemos adultos, talvez apenas pensássemos que estávamos alucinando, já que víamos a imagem no espelho mas não víamos a figura real da vaca. Se fôssemos adultos, talvez a primeira providência fosse alguém olhar para trás e topar com a vaca na janela. Nada sobre o fim do mundo nos ocorreria. Não sei, não sei. Somente sei que   foi uma absurda viagem na maionese. Quem viaja mais absurdamente na maionese do que criança? Talvez os poetas?  Que vivam as crianças e os poetas!!  Podem transformar o ESPECULAR em ESPE(ta)CULAR. 
                                                                                                          Marcia Gomes.
06/04/14                   O  TEMPO. ALGOZ? COMPANHEIRO?

Fiz uma viagem no tempo. Já fiz muitas. Inúmeras. Mas depois de completados os sessenta anos, muito significativa, a de ontem. Me recordo que no final de 2012 participei de uma confraternização de Natal com um pequeno grupo de colegas de turma do curso de Psicologia. Colegas com os quais mais convivi. Não houve tempo hábil para localizar os demais. Foi um fim de tarde num barzinho aconchegante. Recordo que fiquei muito feliz em rever aquelas pessoas. Foi muito bom aquele papo tipo hora da saudade. Resultou em mais um encontro menor, troca de e-mails, encaminhamento de paciente e  ganhei leitores assíduos para o meu "Blá, blá, blá.....". Indiscutivelmente foi uma oportunidade ímpar de matar as saudades daquelas pessoas tão queridas. Eu não havia ainda feito sessenta anos.

Talvez, bem antes de 2012, encontro por acaso no banco uma colega da turma um ano anterior à minha. Pessoa adorável, com quem eu talvez tenha feito junto algumas disciplinas, o papo rendeu. A fila do Banco do Brasil costuma ser grande. Acabei contando da minha passagem para a psicanálise. Para quem me conheceu estudante, fervorosa devota do behaviorismo, saber que ocupo hoje o lugar de analista é uma espécie de erupção vulcânica. Ela me contou que tem um grupo de colegas que se reúne regularmente para estudar e manter acesa a chama do afeto. Citou o nome de algumas pessoas do grupo. Mostrei-me interessada pelo assunto, disse que tinha vontade de rever aquele pessoal. A colega adorável me disse que talvez um dia pudesse me convidar para visitar o grupo. Nossos laços se estreitaram um pouco mais. Lembro que enviei para ela meu trabalho depoimento de passagem para a psicanálise. Lembro principalmente de um dia em que eu passava um período difícil e ela me ligou. E foi solidária. E me escreve de vez em quando retornos muito afetivos para o que lê no meu "Blá,blá,blá.....".

Quinta-feira passada, porque não trabalho neste dia da semana, estava eu em casa estudando e meditando sérias bobeiras do que diz o Senhor Lacan,  e a colega adorável me liga convidando para ir ao encontro do grupo que foi ontem. Ontem, agora que já vou completar sessenta e um anos. Agora que do ano passado para cá, tenho me colocado a questão do envelhecer confrontada com as escolhas que fiz, confrontada com o tempo que resta para reinventar escolhas, confrontada com o fato de que certas coisas não dá mais pra escolher, o que me dá às vezes um certo conforto com a sensação "agora é usufruir o que ficou de bom", o que me dá às vezes uma certa inquietação com a sensação "nossa, como pude perder tanto tempo com bobagem?"

Fiquei feliz, agradecida e ansiosa com o convite. Feliz, ao constatar o quanto mudei. Se eu ainda fosse aquela behaviorista arrogante de nariz empinado, jamais me disporia a estar com aquele grupo. Agradecida, porque achei de enorme generosidade o gesto da colega adorável de me incluir por um dia na rotina de encontro de amigos. Ansiosa porque me perguntei como elas me receberiam. Fora a minha colega adorável em cuja casa se realizou o encontro, as demais colegas, com pouquíssimas exceções, eu não vejo desde 1976, quando nos formamos. Algumas delas eu não me recordava e com nenhuma delas privei de intimidade no tempo de estudante em que meu nariz mais parecia um órgão genital masculino ereto, tamanha era a prepotência de behaviorista sabichona trancafiada num pequeno grupo de outros tirados também a sabichões. Eu estava feliz, agradecida e ansiosa.

Fiz uma viagem no tempo. Significativa. Depois de ter sessenta anos. Era um grupo de umas seis pessoas talvez. Todas mulheres. A Psicologia carece dos varões. Fui recebida com abraços calorosos e abracei calorosamente as pessoas. Uma delas, uma médica muito simpática era mesmo desconhecida. Uma outra eu recordei de pronto a fisionomia. Houve outra, que fui me dando conta de quem era ao longo da conversa. Não importa. De imediato estávamos todas conversando animadamente e rindo.

 Começamos a tecer o fio das recordações citando nomes de colegas e professores, experiências vividas. Conversando, eu pensava como pode o tempo colocar uma nova fisionomia de mulher madura superposta àquela de garota adolescente sem que uma apague a outra? E as vozes, então? Voz não envelhece? Como eu estava feliz participando daquela troca! Ao mesmo tempo me dava conta das muitas coisas que elas viveram que eu não vivi. Não me recordo de muita gente e não é por falta de memória. É que eu não estava atenta. Sabem uma coisa que muito me impressionou naquele grupo? Embora estudem juntas, nenhuma se fez reconhecer pelo lugar de intelectual que ocupa. Algumas falaram de si, coisas pessoais quase íntimas, com o maior desprendimento. Era um grupo de senhoras amigas que me incluía sem quaisquer cerimônias. Algumas são psicanalista, outras não. Isso não estava em questão. Algumas são avós, casadas, solteiras, viúvas, separadas. Isso também não estava em questão. A questão é se querer bem, tecer artesanalmente um laço mais de quarenta anos depois.

A questão é o tempo e o que se faz dele. Mexeu comigo saber que três dos membros do grupo já se foram. Falaram de modo tocante como se deu e ainda está se dando a elaboração do luto. Nós, aquelas jovens, quase ainda adolescentes que queriam mudar o mundo, nos reunimos numa tarde de sábado e falamos também da morte de professores e colegas como uma coisa que não está mais distante de nós.

Vejo que já escrevi muito. Creio que na escrita não estou acertando o tom para dizer o que essa experiência representou para mim. A minha colega adorável veio me trazer de carona em casa. Foi uma conversa aberta, honesta, pessoal. Muito longe estávamos das dissimulações que cercam certos encontros sociais. Me despedi pensando que a questão é o tempo e o que se faz dele. Me despedi satisfeita com os meus sessenta anos. Precisei deles para me dispor a participar e enxergar beleza num encontro como aquele. Precisei deles para perceber quão sofisticado é ser simples e quão complexo é cultivar laços que se constituíram há mais de 40 anos e que resistem fortes à toda diversidade. Precisei deles para deixar coexistindo em mim o "agora é usufruir o que ficou de bom" e o "nossa, como pude perder tanto tempo com bobagem?". Preciso deles a cada dia porque a questão é o tempo e o que se faz dele. Algoz? Companheiro?
                                                                             Marcia Gomes.
        

domingo, 6 de abril de 2014

"Blá, blá, blá domingueiro......"e....Passeio continente.‏



30/03/2014



Para: Marcia Myriam Gomes

30/3/14                                  PASSEIO  CONTINENTE.

A areia na terra faz borda à impetuosidade do mar. O mar, sem ímpetos de avanço, por mais comedido que esteja, precisa do continente. O mar que parece calmo, às vezes quase silente, pode ser de uma tristeza profunda. Pode ter desistido de se manifestar. E isso é de uma tristeza profunda. Ela estava assim meio que desistida. Em tristeza profunda. Não sentia ímpetos. Nem tinha para onde avançar. Um embotamento silencioso corroía as suas entranhas. A dor de não desejar tendo que existir dava a seu rosto a paralisia de um mar indiferente aos acenos do vento. Um mar que recua, ao invés de se arremessar sobre a areia. Ela estava assim.

Ela estava assim desistida quando a outra chegou para lhe buscar. Ela saiu de casa, entrou no carro da outra e a cumprimentou com um aceno quase morto. Respondeu ao convite para tomar um sorvete no Jardim Brasil com um "pode ser" como se nada mais pudesse ser. No meio do caminho a outra sugeriu então outra sorveteria. Como se algo pudesse ser ,   ela arriscou esboçar que na verdade não gostava mesmo da sorveteria do Jardim Brasil. A outra então acrescenta que a nova sorveteria sugerida tem a vantagem de se poder descer do carro e entrar quase sem precisar andar. Ela acena afirmativamente com o cabeça. Aí algo já estava sendo. Ela se sentiu grata pelo reconhecimento pela outra da sua dificuldade de locomoção.

Já sentadas na sorveteria, a outra confessa ter razões afetivas para pedir uma determinada torta e fala dessas razões. Ela fica tocada pelas razões da outra e, ainda que quase monossilábica, conversa fazendo perguntas. E aqui se configurou um oásis entre as duas. Alguns minutos depois ela se desinteressa pelo sorvete e pede para irem embora. A outra concorda imediatamente e sugere darem uma volta de carro pelo centro da cidade. Ela, discretamente contrafeita, acena afirmativamente com a cabeça. Contrafeita com o que naquele passeio assumirá os contornos da dor do exílio. Essa cidade tão bonita, tomada por uma penumbra sepulcral de prédios silenciosos aos domingos, não é a sua cidade.

Ela e a outra percorrem de carro ruas e avenidas, sobem e descem ladeiras. A outra comenta que cada trecho da cidade conduz a um trecho de sua história. Comenta em sinal de reconhecimento, com uma alegria quase nostálgica. Ela, em silêncio, se pergunta em que trecho da cidade ficaram vários anos da sua história. E se responde, em silêncio tão eloquente quanto o silêncio abandonado da cidade aos domingos, que em nenhum trecho ficaram. Uma dor aguda se apodera de seu peito de exilada. Sentindo como cúmplice o silêncio da outra, arrisca comentar que cada dia ao acordar se dá conta com surpresa que está nesta cidade, que vive nesta cidade, que provavelmente nela morrerá.

A outra, areia fazendo borda ao mar que arriscou um ímpeto, responde que compreende serem muitas as camadas da sua solidão. Agora, mais que um oásis, há entre as duas um espaço de partilha, um deserto povoado. Ela, para que a outra não veja, vira o rosto para a imagem desta cidade bonita mas mortiça paisagem desabitada aos domingos e chora. Silenciosamente chora as suas muitas camadas de solidão. A outra não vê ou faz que não vê. Ela, agradecida, sente que naquele momento as suas camadas de solidão se dissolvem. Sente-se acompanhada. Ao chegar na porta de casa sorri para a outra , lhe dá um abraço caloroso e acena. Não é mais um aceno quase morto.

O mar, sem ímpetos de avanço, por mais comedido que esteja, precisa do continente.
                                                                                          Marcia Gomes.

  
23/03/14    CRISE  COM  A  PSICANÁLISE?  Eu quero é tirar meu bloco da rua.

Faz quase um mês. E lá se foi o carnaval. O antes e o depois. Ainda no fim de semana passado o bloco dos desencantados parecia querer persistir na rua desafiando o calendário. O computador deu pane e não pude escrever nem enviar minha crônica dominical. Fiquei em falta com os leitores aos quais peço desculpas. Vivi uma situação difícil, crítica mesmo, e posso dizer que fui salva por uma amiga muito querida com quem convivo há 48 anos.

Conheci essa amiga no colégio. Eu, adolescente, militante de esquerda e ela furadora de greve estudantil. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Ela, negra, filha de operário, eu mulata tirada a branca de classe média filha de médico. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Ela, avessa às complicações da poesia, muito ingênua sobre sexo, eu já fazendo minhas incursões na literatura e no universo dos rapazes. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Passaram-se 48 anos e a danada me prestou ajuda na hora certa. Vivemos juntas 48 carnavais. 

Refeita dessa experiência crítica e para sempre enternecida e grata à minha amiga, foi na quarta-feira passada, dia 19, que me dei conta que felizmente já estou no depois do carnaval. A constatação se deu como um passe de mágica com um telefonema de meu filho adotivo. Foi simples. A muitos pode parecer nada especial. No telefonema feito de São Paulo ele me avisa que vem aqui ficar comigo em abril. Eu? Boba de alegria. Que eu adotaria um filho eu fiquei sabendo num dia desses qualquer quando fui assistir a defesa de tese de uma paciente. Saí da defesa de tese sabendo que um jovem psicólogo colombiano viria morar na minha casa. Filho ganho, amigos frequentando minha casa enchendo-a de juventude e a chegada da nora depois das muitas namoradas que passaram por aqui. Agora casado morando em São Paulo e já fazendo pós-doutorado, Rafa me acrescenta motivos para ser mais feliz. Pois foi o seu chamado na quarta que sinalizou que já é hora de tirar o bloco dos desencantados da rua.

Desde dezembro eu vim ensaiando desfilar no bloco. Foi a queda do movimento na demanda de pacientes própria do fim do ano, relacionamentos que se desfazem, a consciência do envelhecer chegando, as limitações que o corpo vai nos impondo, distância geográfica dos entes da família e  a  decisão de tirar férias da minha crônica dominical e da psicanálise. Em nome de descansar e cuidar da saúde me mantive por três meses afastada de quaisquer leituras e discussões em psicanálise. Um certo esboço de desencanto com a psicanálise me tomou. É que eu não sabia que se deixar fisgar pela psicanálise é como ter jaca como fruta preferida. É uma delícia mas tem que topar limpar o visgo. E que é melhor limpar o visgo do que ficar sem comer a jaca.  Jaca pode ser uma fruta que não está na moda mas é minha paixão.

Filhos, mesmo os adotivos, parecem saber a data certa de telefonar. E eu fui chamada no dia em que recomeçaria um seminário de psicanálise que frequento há mais ou menos 10 anos. Pouco tempo, diga-se de passagem, para se tornar uma psicanalista reconhecida no mercado.Um pouco desencantada, eu estava propensa a não ir ao seminário. Ainda mais com probleminhas de saúde. Ainda mais que às vezes quando estou menos "desejosa" receio que não haja  futuro muito promissor para a psicanálise. De uma possível crise na psicanálise neste mundo cruel globalizado não é todo mundo que quer falar. Há a pressão mercadológica devoradora das terapias "focais" de origem norte-americana.Mas sobre isso quem, como, quando pode falar?  Quem quer saber de visgo de jaca quando há frutas mais modernas e de fácil consumo disponíveis nos supermercados?

Tomada pela alegria da chamada de Rafa decidi comparecer ao seminário mesmo sentindo dor. Decisão mais acertada do que esta não haveria. A grande satisfação no reencontro com os colegas. Botar os assuntos em dia, a conversa gostosa sobre o que cada um fez nas férias. A carona solidária de Terezinha e seu marido. E, muito importante, as colocações promissoras do próprio seminário. Quando a gente gosta de jaca a gente gosta de jaca. E gostar de jaca é irreversível. Fazer contato com as questões que vamos trabalhar este ano. Vislumbrar discutir autorizar-se numa posição sexuada em paralelo com autorizar-se analista. Nada mais instigante. O entusiasmo resgatou o meu desejo e quase esqueci da dor. Me comove sentir-me movida por uma causa. A psicanálise me causa dê no que der. Saí do seminário com ânimo revigorado. Indiscutivelmente ocupo o lugar de analista e isso não é sem consequências. É preciso arcar com o visgo da jaca. Disso não quero nem posso abrir mão. Devo abrir mão, sim, do bloco dos desencantados. O carnaval já passou. Mais do que hora de retomar o trabalho. Eu quero é tirar meu bloco da rua.......

                                                                                                Marcia Gomes.