sábado, 26 de abril de 2014

 "Blá,blá,blá domingueiro...."e.....O dia da Paixão.

18/04/14                      O  DIA  DA  PAIXÃO

Ser perseguido por inimigos, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Cinquenta anos do golpe militar. Na Sexta-Feira Santa de 1964, uma manchete estampava em letras maiúsculas: "A Nação Inteira ao Lado dos Marinheiros e Fuzileiros Navais". Referia-se a o que ficou conhecido como "A Revolta dos Marinheiros", movimento à esquerda que aconteceu poucos dias antes da instauração da ditadura direitista que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou barbaramente um número incontável de pessoas que lutavam por uma causa.

Hoje, dia da Paixão. Um calvário de dor para um homem e seus companheiros. Escolhi varar a noite de quinta para sexta lendo a biografia de Carlos Marighella. Perseguido por inimigos, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Um homem cheio de controvérsias, que por certo cometeu muitos equívocos percorrendo desde a década de 30 até novembro de 69, o conturbado cenário político brasileiro. Inicialmente militante do PCB, depois o nome principal da ALN, jamais abriu mão das suas convicções nem traiu sua causa.

Entre milhares de outras, três coisas me comoveram muito na história de Marighella : seu choro convulsivo quando do fim desiludido do "culto à personalidade" de Stálin. Resultou numa espécie de quadro depressivo quando teve que consultar um psiquiatra pelo seu luto, seu sentimento de orfandade; para protegê-lo das investidas da repressão, encontrou seu filho pela primeira vez quando este contava já 8 anos; aconselhou a uma amiga que o acolheu em seu apartamento mais de uma vez: "responda sempre com poesia".

Falando um jargão da psicanálise que tenho, com muito orgulho, como causa, -- mesmo tendo uma espécie de amigo às avessas me desejado que em nome dela eu caísse na sarjeta e vivesse o resto dos meus dias pedindo dinheiro emprestado aos amigos--, eu diria que amanhecer a Sexta-Feira Santa lendo a biografia, me trouxe, livre associando, uma série de significantes ainda hoje muito presentes na minha história, na minha vida.

É que eu não fui uma criança nem uma adolescente comum. Não frequentei a escola primária e eram poucas as crianças autorizadas a frequentar minha casa. Filhos de latifundiários ou de políticos direitistas, nem pensar. Na minha casa ouvia-se a Rádio de Moscou e a Rádio Mayrink Veiga. As horas da escuta eram sagradas. Fiquei sabendo o que era suicídio por causa da morte de Getúlio Vargas. Aprendi muito cedo que Carlos Lacerda era um monstro detestável, um traidor.

E então agora me vem a enxurrada de significantes: satélite Sputinik, Carlos Prestes, Diógenes Arruda, João Amazonas, Dolores Duran, Pedro Pomar, Nikita Khruschóv, Yuri Gagárin, Juscelino Kubitschek, Fidel Castro, Jânio Quadros, Marechal Lott, João Goulart, Brizola, Francisco Julião, Grupo dos Onze, reforma agrária, Mao Tsé-tung, Che Guevara. Todos esses nomes e milhares de outros povoaram a minha infância. Infância de uma criança solitária que muito cedo aprendeu que roupa servia apenas para cobrir o corpo e que eletrodomésticos eram para costumes pequeno-burgueses. Até hoje tenho enorme dificuldade de me permitir comprar uma roupa.

Em 1964, antes que eu completasse 11 anos, mudamos às pressas de Ibirataia para Salvador e nos abrigamos na casa de um tio. Meu pai passou um enorme tempo sem conseguir arrumar emprego, teve seus livros de Jorge Amado queimados e as caixas de seus aeromodelos destruídas sob a suspeita de guardarem armas de fogo. Depois do golpe e com essas investidas da repressão, sentiu-se desassistido pelos companheiros, desiludiu-se com o PCB e passou a dedicar o seu tempo a uma mulher por quem se apaixonou perdidamente.

A sua filha adolescente atípica, em 1967, com 13 anos, subia num caixote para discursar aos companheiros da escola pública conclamando-os a fazer greve e derrubar a ditadura. De liderança estudantil secundarista tornou-se militante de uma organização clandestina e já aos 15 anos pegava em arma e usava nome de guerra. Às vésperas de entrar na universidade já deixava a organização, também desiludida. Fora repreendida como inconsequente por seus companheiros, por haver dado bandeira para a repressão chorando no enterro de uma companheira de 17 anos. Por ter chorado, foi convocada a fazer uma dura sessão de autocrítica. Na universidade aproximou-se do movimento estudantil, mas sempre como simpatizante, não se sentindo estimulada a compor os quadros de qualquer partido ou organização.

A mulher adulta nunca esqueceu das lições que aprendeu na sua infância e adolescência, quanto a nunca trair a sua causa. Por isso antecipei para hoje, Sexta-Feira Santa, a escrita do "Blá, blá, blá.....". Hoje, dia da Paixão de Cristo, perseguido, preso, torturado, barbaramente assassinado em nome de uma causa. Hoje, quero dizer àquele espécie de amigo às avessas, que o seu desejo de que eu acabe na sarjeta pedindo dinheiro emprestado aos amigos pode até se concretizar, do ponto de vista material, embora não seja isso que se afigure no presente para mim. Do ponto de vista metafórico, estou imune.

Estou imune, porque  ao dizer isso, o tal amigo avesso à psicanálise mais do que sensível e atento ao funcionamento do outro,  não se deu conta de com quem estava falando. Embora soubesse que aos 15 anos eu preferia, ao invés de frequentar festinhas próprias para adolescentes, participar de minhas reuniões clandestinas, fazer meu treino com metralhadora, mesmo sabendo que dali a meia hora eu podia ser presa, torturada, barbaramente assassinada em nome de uma causa. Saí da organização em defesa do meu direito ao choro. Não para usufruir das vantagens de uma vida burguesa materialmente confortável, que nunca me seduziu. Saí da organização por uma questão de coerência com o que eu acreditava parecer justo para mim.

Ao dizer isso, o ódio do tal amigo à psicanálise se revelou mais fecundo no mau sentido, do que o respeito e o afeto por uma amiga que nunca desconsiderou os interesses e as motivações dele pelo que quer que fosse, embora esse tipo de pessoa talvez não saiba o que é sentir-se apaixonado, não conheça o brilho de ser causado por nada.

Ao dizer isso, ele não sabe do entusiasmo que me anima cada vez que leio um texto de Freud ou Lacan. Ele não sabe que em nome do quão gratificada me sinto quando um paciente me fala deitado no divã, pago o preço, seja qual for. Ao dizer isso, ele não sabe que a sarjeta é não poder ser movido por um desejo. Nada sabe sobre Jesus Cristo ou Marighella. 
                                                                  Boa Páscoa a todos,
                                                                                  Marcia Gomes.

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