domingo, 6 de abril de 2014

"Blá, blá, blá domingueiro......"e....Passeio continente.‏



30/03/2014



Para: Marcia Myriam Gomes

30/3/14                                  PASSEIO  CONTINENTE.

A areia na terra faz borda à impetuosidade do mar. O mar, sem ímpetos de avanço, por mais comedido que esteja, precisa do continente. O mar que parece calmo, às vezes quase silente, pode ser de uma tristeza profunda. Pode ter desistido de se manifestar. E isso é de uma tristeza profunda. Ela estava assim meio que desistida. Em tristeza profunda. Não sentia ímpetos. Nem tinha para onde avançar. Um embotamento silencioso corroía as suas entranhas. A dor de não desejar tendo que existir dava a seu rosto a paralisia de um mar indiferente aos acenos do vento. Um mar que recua, ao invés de se arremessar sobre a areia. Ela estava assim.

Ela estava assim desistida quando a outra chegou para lhe buscar. Ela saiu de casa, entrou no carro da outra e a cumprimentou com um aceno quase morto. Respondeu ao convite para tomar um sorvete no Jardim Brasil com um "pode ser" como se nada mais pudesse ser. No meio do caminho a outra sugeriu então outra sorveteria. Como se algo pudesse ser ,   ela arriscou esboçar que na verdade não gostava mesmo da sorveteria do Jardim Brasil. A outra então acrescenta que a nova sorveteria sugerida tem a vantagem de se poder descer do carro e entrar quase sem precisar andar. Ela acena afirmativamente com o cabeça. Aí algo já estava sendo. Ela se sentiu grata pelo reconhecimento pela outra da sua dificuldade de locomoção.

Já sentadas na sorveteria, a outra confessa ter razões afetivas para pedir uma determinada torta e fala dessas razões. Ela fica tocada pelas razões da outra e, ainda que quase monossilábica, conversa fazendo perguntas. E aqui se configurou um oásis entre as duas. Alguns minutos depois ela se desinteressa pelo sorvete e pede para irem embora. A outra concorda imediatamente e sugere darem uma volta de carro pelo centro da cidade. Ela, discretamente contrafeita, acena afirmativamente com a cabeça. Contrafeita com o que naquele passeio assumirá os contornos da dor do exílio. Essa cidade tão bonita, tomada por uma penumbra sepulcral de prédios silenciosos aos domingos, não é a sua cidade.

Ela e a outra percorrem de carro ruas e avenidas, sobem e descem ladeiras. A outra comenta que cada trecho da cidade conduz a um trecho de sua história. Comenta em sinal de reconhecimento, com uma alegria quase nostálgica. Ela, em silêncio, se pergunta em que trecho da cidade ficaram vários anos da sua história. E se responde, em silêncio tão eloquente quanto o silêncio abandonado da cidade aos domingos, que em nenhum trecho ficaram. Uma dor aguda se apodera de seu peito de exilada. Sentindo como cúmplice o silêncio da outra, arrisca comentar que cada dia ao acordar se dá conta com surpresa que está nesta cidade, que vive nesta cidade, que provavelmente nela morrerá.

A outra, areia fazendo borda ao mar que arriscou um ímpeto, responde que compreende serem muitas as camadas da sua solidão. Agora, mais que um oásis, há entre as duas um espaço de partilha, um deserto povoado. Ela, para que a outra não veja, vira o rosto para a imagem desta cidade bonita mas mortiça paisagem desabitada aos domingos e chora. Silenciosamente chora as suas muitas camadas de solidão. A outra não vê ou faz que não vê. Ela, agradecida, sente que naquele momento as suas camadas de solidão se dissolvem. Sente-se acompanhada. Ao chegar na porta de casa sorri para a outra , lhe dá um abraço caloroso e acena. Não é mais um aceno quase morto.

O mar, sem ímpetos de avanço, por mais comedido que esteja, precisa do continente.
                                                                                          Marcia Gomes.

  

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