segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Blá, blá, blá domingueiro....."e....ESPE(ta)CULAR.‏




13/04/14                                 ESPE(ta)CULAR.

Espetacular, da magnitude de um espetáculo caleidoscópico sobre a riqueza da subjetividade humana, é a diversidade de opiniões que um modesto texto ficcional, muito modesto mesmo, pode despertar nos leitores. Quando transitamos no universo da linguagem, a gente vai saber só depois. O meu escrito de domingo antepassado intitulado "Passeio Continente" foi uma espécie de testemunho termômetro da singularidade daqueles que têm a paciência de ler o que escrevo.

 Muitos silenciaram. Suspeito que eu não soube imprimir ao texto a gradação sutil de esperança que vai tomando a personagem no decorrer do passeio. Ou talvez, muitos silenciaram, não muito bem impressionados com a forte tonalidade melancólica do texto. A esses leitores, escapou de fazer a possível leitura  do escrito como um encontro de resgate promissor entre duas pessoas, na medida em que uma oferece acolhimento continente para a outra.

Por outro lado, vários elogiaram encontrando beleza no que foi dito. Uma pessoa cuja opinião muito prezo, me disse que não sabia se era Marcia ou Marguerite Duras quem escrevia o texto. Fiquei muito comovida com este comentário que tomei como um elogio. Um amigo escritor, cuja opinião também muito prezo, me disse que o texto era tão introspectivo, mas tão introspectivo, que não conseguiu fisgá-lo em nada. Me fez pensar.

Enfim, mexida com esse zum-zum-zum de opiniões, resolvi dar uma trégua para a ficção e enveredar por uma via mais autobiográfica e leve de memórias de infância. Aí minha mãe veio em meu socorro: "Por que você não conta aquela da vaca no espelho?" Então saí do espetacular para o especular, depois de ter feito um intervalo no domingo passado. Vocês devem lembrar, tentei relatar o impacto que teve sobre mim ser convidada e comparecer a um encontro com colegas de Psicologia. O encontro me fez pensar sobre como o tempo pode ser nosso algoz ou companheiro. Bom, mas vamos ao "ESPECULAR" deixando de tantas especulações.

A sugestão de minha mãe que agora está animada para escrever sua própria história de vida, projeto ao qual dou a maior força, me põe em maus lençóis literários. Como explicar a relação metafísica entre uma vaca no espelho e a chegada do fim do mundo? Essa é coisa para criança que vê relações metafísicas entre tudo quanto é coisa ou então para poeta: no espelho tinha uma vaca, no espelho tinha uma vaca e chegou o fim do mundo. Por uma mera questão rítmica, sem apelar para metafísica alguma, a vaca no espelho implicaria na chegada do fim do mundo, sem mais delongas. Assim tudo estaria dito sem precisar conversa comprida. Conversa comprida é mais da incontinência verbal do que da ação poética. Esses poetas são geniais. E quem não é poeta? Quem não é poeta se contenta com a incontinência. Vamos a ela.

Quem já leu um escrito meu de memórias de infância já me viu contar sobre Taperoá. Taperoá era a cidade de deixar criança encantada com seus tipos humanos originalíssimos, com sua festa folclórica de nome Zameapunga. Pois em Taperoá tinha um sítio defronte da nossa casa. Por aí já começam as insinuações do realismo fantástico onde tudo pode acontecer. No sítio tinha Dona Odete. E em Dona Odete tínhamos quem nos presentear com delicioso doce de leite. Leite das vacas do sítio. Dona Odete era uma senhora cândida. Mais ocupada em ordenhar suas vacas do que com os boatos sobre o final do mundo.

Não só em Taperoá, mas em todos os lugares vez por outra circula a notícia alvissareira para alguns, aterradora para outros, de que o mundo vai se acabar. Não é por guerra nuclear, devastação ecológica e muito menos por bombardeio aéreo de torres. Corrupção? Nem pensar. As reais razões pelas quais se apostaria no fim do mundo não chegavam ainda em Taperoá. Era pelas profecias de não sei quem. Nostradamus? E o desastre passava a se anunciar. Para nossos pais, nem alvissareiro nem aterrador. Não eram supersticiosos. Quem dera que algo viesse a acontecer somente porque alguém disse. Mas para sorte dos poetas palavra transcende coisas, o dito não acontece, o dito é. De modo que para nossos pais que gostavam mais dos poetas do que de Nostradamus, ficou o dito pelo não dito. Não estavam nem aí para o dia do fim do mundo que finalmente chegou.

Vai-se lá saber o que se passa em cabeça de criança? Chovia torrencialmente, razão pela qual não saímos à varanda para brincar. Ficamos no quarto, onde havia um guarda-roupa com um espelho enorme. Até aí nenhum de nós deu sinal de que estivesse recordando ser aquele o maldito dia. Brincávamos. De repente, Cristina, nossa prima de Salvador que viera nos visitar em férias, rompeu em prantos apontando para o espelho. Dizia: "o mundo vai se acabar e nunca mais vou ver meu pai e minha mãe". Olhamos todos para o espelho e foi um choro geral: "o mundo vai se acabar, o mundo vai se acabar" ao invés de "no espelho tem uma vaca, no espelho tem uma vaca". E tinha. Não éramos poetas. Éramos crianças fazendo uma conexão mágica. Uma coisa é o dito. Outra coisa é o visto. Mas por que uma vaca no espelho torna-se evidência da chegada do fim do mundo? Talvez porque uma alucinação coletiva seja, este sim, o prenúncio do fim das coisas, como estamos a ver nos dias de hoje.

Finalmente minha mãe chegou para nos acalmar. E mães, além de outros, têm o mérito de pôr nossos pés no chão, nos assenhorando de que o que estamos vendo é o que estamos vendo. Isso é mais simples, mas menos fantástico do que fazer conexões delirantes. Ela nos explicou que no espelho estava sim a vaca do leite do doce de Dona Odete. Encontrara o portão aberto, entrou na varanda e se pôs à janela que dava para o quarto. Indiferente, é claro, à chegada do fim do mundo. Interessada, sim, na sua imagem especular.

Está tudo muito bem, está tudo muito certo, mas como vou explicar por que emparelhamos a imagem da vaca no espelho com a chegada do fim do mundo? Se fôssemos adultos, talvez apenas pensássemos que estávamos alucinando, já que víamos a imagem no espelho mas não víamos a figura real da vaca. Se fôssemos adultos, talvez a primeira providência fosse alguém olhar para trás e topar com a vaca na janela. Nada sobre o fim do mundo nos ocorreria. Não sei, não sei. Somente sei que   foi uma absurda viagem na maionese. Quem viaja mais absurdamente na maionese do que criança? Talvez os poetas?  Que vivam as crianças e os poetas!!  Podem transformar o ESPECULAR em ESPE(ta)CULAR. 
                                                                                                          Marcia Gomes.

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