sábado, 26 de abril de 2014

 "Blá, blá, blá, domingueiro...."e...."Estranho Fruto".




27/04/14                                     "ESTRANHO  FRUTO"

Pareço estar no tempo das biografias. Biografia nem é muito a minha praia. Recentemente li a de Drummond, a de Clarice Lispector e a de Marighella que inspirou meu escrito de Sexta Feira da Paixão. Pareço estar num tempo onde o temor de devassar intimidades fica suplantado pelo desejo de fazer contato com o histórico de pessoas, da atmosfera que as cercou no tempo em que viveram. Desejo que neste momento vai para além das portas do meu consultório. Liberada do imperativo ético de escutar de um lugar de vazio, lendo a biografia, posso viajar na história como bem quiser  o meu imaginário.

 Mais de seis mil africanos foram vendidos como escravos só na Virgínia entre 1699 e 1708. Em 1867 em todos os Estados Unidos não havia diferença entre negros livres e ex-escravos: todos eram considerados seres da pior categoria. No verão de 1914, enquanto  Sara Harris (Sadie) trabalhava como doméstica para uma família branca, ainda adolescente foi seduzida por Clarence Holiday e engravidou. Deu à luz Elinore Harris no dia 7 de abril de 1915, que viria depois a ser chamada Eleanora. Clarence se tornou um conhecido músico em ascensão e Sadie , pelo "pecado" que cometera, foi cruelmente rejeitada pela sua família e cortou um dobrado para criar Eleanora, sem a ajuda do pai.

No dia 5 de janeiro de 1925, Eleanora, recolhida pelo juizado de menores por gazetear aulas, dava entrada numa instituição sob o cuidado de freiras. No mesmo ano foi entregue de novo à custódia de sua mãe. Adolescente, viveu num bordel. Muito jovem, quando já cantava, para contestar o modelo da mãe rejeitada pelos homens, Eleanora escolhia homens que se achavam durões e depois os rejeitava antes que pudessem rejeitá-la. Em 1928 já havia se mudado de Baltimore para Nova York.

Todos esses dados, recolhidos por mim de uma biografia, são controvertidos porque Eleanora era nada mais nada menos que a monumental cantora de jazz, Billie Holiday. A maravilhosa Billie parecia extrair prazer de confundir seus historiadores, tentando lhes deixar claro que a ficção é muito mais engenhosa do que a crua e inacessível realidade dos fatos. Como uma criança imaginativa, Lady Day gostava de inventar histórias sobre si mesma, ludibriando seus biógrafos, quem sabe como uma forma de ludibriar o que sabia sobre si mesma, tão doloroso que era esse saber.

Tornou-se alcoólatra, viciada em drogas, foi presa e passou por alguns casamentos muito conturbados. Adotou o sobrenome do pai somente quando este não pode fugir de reconhecer o seu talento. Sendo negra, cantava em locais que só aceitavam brancos no público. Para cantar teve que se submeter a entrar nos teatros pelas portas dos fundos.

Com o passar do tempo o mundo teve que se render ao magnetismo da sua voz inimitável. Voz lânguida como um canivete cortante expondo as vísceras. A dor de ter que possuir uma voz privilegiada para ser minimamente tolerada no mundo dos brancos, fazia da vida da jovem Billie Holiday uma sucessão de desatinos, o eco pungente de uma alma dilacerada.

Em 1939, surge finalmente o caminho pelo qual o canto de Billie Holiday lhe trouxe a oportunidade de resgatar com uma bofetada de luva de pelica, os rastros semi clandestinos da sua história, da história dos negros oprimidos. Billie recebeu do compositor Lewis Allan, cujo nome verdadeiro era Abel Meeropol, a canção "Strange Fruit".  Quando  ela cantou a música pela primeira vez, as lágrimas correram. A cada noite ela encerrava o show com a canção, e, nessa hora, o salão ficava imerso na escuridão. Os garçons não se movimentavam e ela não tocava no microfone, tão imóvel ficava. E as lágrimas correndo.

Até aquela época fotos de negros não eram publicadas em revistas. Cantando "Strange Fruit", Billie Holiday foi fotografada pela TIME que divulgou a letra da canção:

 "As árvores do Sul carregam um estranho fruto./ Há sangue em suas folhas e na sua raiz,/ Corpos negros balançam na brisa meridional,/ Estranho fruto que cai dos álamos./ Uma cena pastoral do grandioso Sul,/ Os olhos inchados e a boca retorcida,/ O aroma de magnólias, doce e fresco,/ E, de repente, o cheiro de carne humana queimada./ Aqui está um fruto para os corvos petiscarem,/ Para a chuva empapar, para o vento secar,/ Para o sol apodrecer, para cair das árvores,/ Eis um estranho e amargo fruto."

O fruto estranho eram os corpos dos negros enforcados e queimados pendendo nas árvores no Sul dos EUA.

P.S. Minha gratidão a Carlos Machado por compartilhar do meu encantamento por Billie Holiday e pela causa dos negros.
                                                                                      Marcia Gomes.                

                                                       

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