segunda-feira, 5 de maio de 2014


                                                                                            
04/05/14                              MATERNAGEM

Eu morava sozinha num apartamento de 3 quartos com 2 banheiros sociais no Jardim Apipema. Muito grande para mim que tenho a família distante. A única sobrinha que tenho morando em Salvador, depois de usufruir por dois anos do meu acolhimento e da minha hospedagem com casa, comida, roupa lavada, empregada e café da manhã na cama, me deu as costas que nem sei por onde anda. Bastou eu sugerir que seu filhinho, meu sobrinho-neto, seriamente asmático, talvez devesse ir a uma analista, Íris cortou relações comigo. Não sabe nem quer saber se eu estou viva ou morta. Dói, mas fazer o que? É a escolha dela.

 Sozinha, num apartamento de 3 quartos com 2 banheiros sociais no Jardim Apipema. Muito grande para mim. Fiz uma suíte minha, o outro quarto fiz de gabinete de estudos. E com o terceiro quarto, fazer o que?

Saindo de uma relação amorosa que foi bom enquanto durou, ainda enroscada numa relação outra que me atormentou por 20 anos e que nunca foi bom mesmo antes de durar. Fazendo a minha passagem para a psicanálise, já nos meus cinquenta e poucos anos, sem filhos. Gostava de morar sozinha. A solidão não me atemorizava mas o tamanho do apartamento me fazia sentir dispondo de espaço em excesso. Foi quando uma amiga me sugeriu alugar o quarto que sobrava para um ou uma jovem estudante.

Em princípio, relutei. Dividir meu espaço com um estranho ou uma estranha? Finalmente cedi e a notícia foi parar na pós-graduação de Psicologia da UFBA, onde tenho amigos. No dia em que fui à F.F.C.H assistir a uma defesa de tese de uma paciente, meu destino foi selado para o bem. Encontrei por acaso a coordenadora da pós que foi minha contemporânea de faculdade. Só de lembrar me dá um frio na barriga. Hilka me disse que conhecia um estudante colombiano que talvez se interessasse por alugar o quarto e ficou de passar meu telefone para ele. A indicação de Hilka me dava uma mínima garantia. Ela me conhece e fez boas recomendações do rapaz. Então só me restava aguardar e rezar.

Nem aguardei, nem rezei. Talvez de modo que interessasse a Freud, deletei o assunto. Dias depois me liga um rapaz com forte sotaque cujo tom de voz, ainda que muito másculo, me fez pensar num menino. Um menino com algo de um certo desamparo estilo "A insustentável leveza do ser". Era o estudante de doutorado colombiano recomendado por Ilka. A simpatia já bateu por telefone. Convidei-o para almoçar para conversarmos e nos conhecermos melhor.

Chegou para o almoço pontualmente à hora combinada, vestido de modo esportivo casual, cabelos negros e encaracolados com muito brilho, talvez usasse um brinco na orelha. Falou comigo com seu sotaque enternecedor, àquela época ainda titubeando na conjugação dos verbos. Na verdade, seu Português era excelente para quem estava recém-chegado no Brasil.

 Contou-me que no lugar onde estava hospedado tinha um galo que cantava de madrugada. Rafael, esse é o seu nome, não gosta de ser acordado, quanto mais de madrugada, quanto mais por um galo. Se ainda fosse uma galinha..... Quando eu lhe disse que escreveria um contrato estabelecendo regras de uso da casa e dos utensílios da cozinha, fez um ar de quem se sentia magoado, mas aceitou. Meia hora de conversa e me perguntou quando poderia mudar para minha casa. Tomada de susto, fiquei sem saber se ele era um impulsivo contra-fóbico ou apenas um rapaz decidido.

Quando nos sentamos para almoçar, o tom contratual da conversa se arrefeceu. Pude saber de que cidade da Colômbia provinha, pude constatar quão inteligente e versátil era aquele rapaz com jeito de menino. Podia conversar de psicanálise, literatura, cinema, música e até esporte, com a maior desenvoltura. Comia com muito prazer, contou-me ser amante da gastronomia e adorar a comida brasileira. Ponto a seu favor. Acho esquisitas as pessoas que não apreciam uma boa comida. O seu sorriso, muito espontâneo, era de uma criança tímida se arriscando a ser peralta. Ao se despedir, me avisou que ligaria avisando precisamente o dia da sua mudança para minha casa.

Quando ligou, foi logo dizendo que faria a mudança na segunda-feira de carnaval. As diferenças idiomáticas não me permitiram explicar direito que o carnaval era uma mega festa com trânsito inviável para chegar de táxi ao Jardim Apipema. Resultado: ele ligou dizendo que estava vindo pela manhã e só foi aparecer à tarde, tendo gasto uma fortuna de táxi. Saiu todas as noites do carnaval, encantado com a novidade da festa. Certamente as particularidades do carnaval em Salvador são de deixar boquiaberto um estudante recém chegado de qualquer país. Ele se encantou com a variedade dos ritmos e com a espontaneidade do povo. Muito cedo Rafael começaria a se sentir em casa em Salvador.

Dei-me conta de que estava nutrindo um afeto maternal pelo rapaz quando chegou o seu primeiro dia de aula na pós-graduação em Psicologia. Ele mal pode disfarçar a sua apreensão e ansiedade. Perguntou-me com qual roupa seria apropriado comparecer à aula. Ajudei-o a escolher a roupa com cuidado, pedi à empregada que fizesse uma moqueca de peixe para celebrar a data. Ele se deliciou com a moqueca que estava experimentando pela primeira vez. Ao sair, visivelmente ansioso, eu lhe dei um beijo no rosto e lhe disse que podia contar comigo como uma mãe. Depois que ele saiu, enxuguei minhas lágrimas de emoção e aguardei, também ansiosa, o seu retorno da aula.

Assim se estabeleceu a gratificante interação do fim do dia entre nós: cada um contava ao outro como foi seu dia de trabalho. Rafael era um filho multifacetado. Se em alguns momentos mostrava-se desamparado pedindo colo e opiniões, em outros era extremamente auto-suficiente e independente. Sempre detestou ser cobrado. Logo estava enturmado com seus professores e colegas. Sem negligenciar os seus estudos, aos quais era muito dedicado, adorava a noite. Saía todo fim de semana para dançar, tomar uma cervejinha e experimentar a comida baiana.

Quando chegou 11 de março, dia do seu aniversário, não sei como nem por quê eu adivinhei a especialidade daquela  data. Perguntei se ele não queria convidar uns colegas para vir em casa comer um bolo com ele. Preferiu não, talvez envergonhado de contar aos amigos que era seu aniversário. Quando cheguei à noite do consultório acendemos a vela, cantamos parabéns e comemos o bolo. Era seu primeiro aniversário no Brasil e aquela modesta celebração foi tão importante que Rafa fez questão de guardar a vela como recordação. 

Entre nós, logo uma troca se estabeleceu. Se eu cuidava de Rafael lhe fazendo mimos e carinhos maternais e dando opiniões quando se dizia indeciso nas suas escolhas, Rafa cuidava de mim ensinando dicas de manuseio da internet e de aparelhos eletrônicos e fazendo o lugar de cavalheiro quando eu tinha coisas a resolver que demandavam uma presença masculina. Às vezes quando eu chegava cansada do consultório, encontrava uma comida deliciosa preparada por ele. É excelente cozinheiro. Conversávamos dos mais variados assuntos de igual para igual.

Enquanto seu Português não estava ainda cem por cento aprimorado, eu sorria de ternura com frases como: "Marcia, você pode me dar um remédio? É que acho que vou pegar uma GRIPA. Marcia, você me arranja uma CREMA? É que machuquei minha mão." Nas vezes em que me viu chorar ficava todo desajeitado e dizia: "Não, Marcia, por favor, TRANKILA!"

E assim fomos convivendo por dois anos. Cada vez menos inquilino, cada vez mais filho. A minha casa se enriqueceu com o viço da juventude de seus amigos e amigas. Rafa é muito sociável e sabe se fazer querido. Recebi com alegria como hóspedes vindos da Colômbia sua mãe, seu pai e duas tias. Pessoas adoráveis. Simples e amorosas. Não passa um Natal, um aniversário meu ou mesmo um fim de semana qualquer sem que a sua mãe não me telefone. Às vezes nos falamos pelo Skype.

Contudo, nem tudo são flores. Tivemos também nossos "arranca-rabos". Eu nem sempre sou uma pessoa fácil e uma vez repreendi o rapaz tão severamente que ele até chorou. Mas sempre fizemos as pazes. Rafa é muito generoso e grato. Também discreto. Não me lembro jamais dele curioso ou opinando sem ser solicitado, sobre a minha vida íntima. A gente se respeitava muito.

Se em casa era o filho querido, me fazendo a dádiva de exercer uma maternagem tardia que me enchia de júbilo, no meio acadêmico ele cada vez mais se firmava como intelectual e pesquisador competente e respeitável, tendo participação em eventos e congressos importantes. E foi assim que bateu asas. Com planos de voltar para Salvador, mudou-se temporariamente para o Rio para trabalhar com um pesquisador importante de lá. Chorei um lençol inteiro de saudades, mas compreendi e dei força para sua iniciativa. Antes de tudo queria que  Rafa crescesse profissionalmente e fosse feliz. Recebi sua visita algumas vezes e seu quarto continuava guardado à espera de sua volta.

Quem vai controlar o destino? Ainda mais de um jovem curioso por explorar novas possibilidades de vida. No Rio, Rafa conheceu uma bonita jovem paulistana, por ela se apaixonou, casou e fixou residência em São Paulo. Seu quarto aqui se manteve disponível para suas visitas, agora, na maioria das vezes, acompanhado de minha nora adotiva, também uma espécie de filha.

Já casado, veio aqui defender sua tese de doutorado na qual me agradece por tê-lo recebido na Bahia como um filho. Cada vez que Rafa vem a Salvador é uma enorme alegria para mim. Na despedida, um lençol de lágrimas. Agora já está próximo de fazer 40 anos, está fazendo pós-doutorado e para mim continua sendo o filho amado que quando precisa tomar uma decisão da qual se sente inseguro, pergunta: "que acha você?". Opino, mesmo sabendo que ele é um homem feito e que escolherá seguindo os ditames do seu desejo.

Agora, depois da Semana Santa, Rafa passou uma semana aqui comigo. A sua esposa que é uma executiva, veio passar só o fim de semana. Eles me levaram como convidada para comer uma deliciosa Maniçoba. Foi um programa muito agradável e fiquei contente de perceber que eles estão bem como casal. Há muito tempo não sentia meu filho tão perto de mim. Embora também trabalhando, fez questão de estar com todos os seus amigos e de comer "comida de boteco" que tanto gosta.

 Assistimos juntos a uma partida de futebol entre Brasil e Colômbia. Felizmente o gol saiu no finalzinho da partida,  para a Colômbia. Vibramos juntos. Conversamos muito e eu até esquecia das minhas dores quando acordava cedo para servir seu café da manhã. De volta para casa à noite me contava como foi seu dia. Como um cavalheiro resolveu para mim um "Perrengue" antigo com a GVT. Foram dias maravilhosos. No dia de sua partida acordamos de madrugada. Levei-o até o playground para tomar o táxi que o levaria ao aeroporto e aí vieram as lágrimas. Ele,   me abraçou desajeitado e disse: "não, Marcia, por favor, TRANKILA!"  Filho, biológico ou não, não importa a idade, não importa a distância, é sempre filho, por mais primoroso que esteja o seu Português.
                                                                                                            Marcia Gomes.

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