domingo, 28 de junho de 2015

28/06/2015                                         AMÊNDOA.

O feriado de São João é de uma paz modorrenta. Não deixo de enxergar nisso a vantagem de ir ao supermercado sem atropelos, frequentar o cinema se me der na telha, sobretudo a vantagem de estar só sem o burburinho barulhento e constrangedor que às vezes estar com o outro nos causa. Só às vezes. Que não é toda hora que encontro prazer em estar sozinha. Com frequência o outro é muito, muito bem vindo e estar sozinha pode ser chato.

A data de São João me causa a vontade incontrolável de comer amendoim cozido. Amendoim. Ai, as palavras. Amendoim não por acaso começa como amêndoa. Amen doa. Amém doa. Amém dói em mim. E como às vezes dói, dizer amém!!! Dizer amém ao outro. Sim, você tem razão. Sim, vou fazer o que você quer. Sim, vou seguir sua prescrição até reduzir a nada meu desejo. Desejo aqui entendido como vontade.

 Fiquei muito feliz de jantar, no dia do meu aniversário, com uma prima e um amigo que muito gentilmente me deram o privilégio de escolher o restaurante por ser eu a aniversariante. Rimou. Também fiquei feliz naquela data, por ter recebido presentes tão a minha cara, que pareceu que eu os tivesse escolhido. Há alguns outros que com muita gentileza não nos deixam escolher nem de vez em quando. Às vezes, mesmo sem gentileza podem dizer sempre assim: "você é minha convidada, sou eu quem vai pagar e pronto". E a gente diz amém. Por se sentir em dívida? Não é por mal que as pessoas mesmo com delicadeza fazem valer o seu desejo esquecendo o desejo do outro. Na verdade elas nem se dão conta que estão fazendo isso.

 A gente é que permite. A gente é que as acostuma a pensar que não tem desejo para exercer. Às vezes elas pensam que seu desejo, por ser generoso, dadivoso,oblativo mesmo, deve prevalecer a qualquer custo. Felizmente há ainda verdadeiros amigos, aqueles generosos com muita sensibilidade, que quando a gente contesta, gentilmente cedem, evitando que o que seria um dom, vire uma quebra de braço, uma disputa de poder. Mas há também aqueles, que mesmo sendo amigos, sem perceber que estão fazendo isso, e movidos pelas melhores intenções, tentam com sua palavra  nos submeter a ferro e fogo. E quando a gente explode de tanto engolir sapo, perde a razão por estar sendo "mal agradecida" ou mesmo "agressiva". Na verdade a gente está equivocada quando explode. Tudo que a gente sabe sobre a dualidade sado-masoquista, deveria ser suficiente para nos fazer compreender que aquele que quer nos submeter, provavelmente foi cruelmente submetido na sua história de vida. Então a pessoa não se dá conta que está repetindo com a gente o que fizeram com ela no passado. Mas chega de interpretosas porque "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". O que importa mesmo, é saber, que a gente poder, de vez em quando, exercer o próprio desejo, é a maior dádiva que o outro pode nos fazer. Mas se nos falta jogo de cintura para fazermos as nossas escolhas, as pessoas que nos submetem não vão se dar conta disso nunca. Outra vez é nossa a responsabilidade de, de vez em quando, sabermos fazer valer a nossa vontade.

Mas enveredei por esse caminho do dizer amém por causa do amendoim, da amêndoa. Amendoim sabe a chão, a resíduo de terra na casca, sabe a forró, a Nordeste. Já a amêndoa lembra aquelas guloseimas com sabor de doceria européia que um namorado sedutor e de hábitos sofisticados nos presenteia. Já tive amores de hábitos sofisticados. Mas hoje queria mesmo era comer amendoim cozido com resíduo de terra na casca. Então saí à cata. Saí porque estava entediada, nauseada mesmo, de ter visto na televisão ligada por um instante, uma notícia sensacionalista e desrespeitosa sobre a morte por acidente de um músico sertanejo.

Não sei bem ao certo o que é música sertaneja. Acho que por meus vieses narcísicos intimistas, tendo a não me dar conta de coisas do cotidiano, infelizmente ignorando às vezes assuntos que rendem à maioria das pessoas motivos para uma boa conversa sem maiores pretensões, e que às vezes vale muito a pena. Padeço de não me sentir como a maioria das pessoas. Muito me consola a frase de Caetano Veloso "de perto ninguém é normal".

 Será que às vezes me sinto anormal de tanto que deixo o outro chegar perto sem lhe dar fronteiras? Será que me exponho muito para o outro e isso, ao invés de ser um gesto de coragem, é uma situação de risco que me deixa vulnerável? Há quem diga, e me criticando, que me exponho muito ao escrever esta crônica domingueira e que isso não pega bem para alguém que ocupa o lugar de analista. Mando a crônica domingueira muitas vezes de cunho autobiográfico para um público seleto de colegas e amigos, jamais para nenhum de meus analisantes (pacientes), com os quais não costumo me comunicar por E-mail. Mas será que os que me criticam ainda assim não estão com razão? Será que não exponho demais minhas divagações subjetivas?

Como não tenho como responder isso agora, voltemos ao amendoim. Peguei um táxi para procurá-lo mais ou menos nas imediações de casa. Agora divaguei e me veio à cabeça o receio de estar me expondo muito, ao escrever e pensar em enviar a meus leitores essa crônica domingueira, mesmo sabendo que pelo menos até amanhã, quinta-feira, quando vem o técnico, meu computador estará com vírus e isso me causou o maior problema no Facebook. Face. Dar o rosto pra apanhar? Me expor ou não me expor, eis a questão. Será que tenho tendências exibicionistas? Aplaco as divagações me dando conta que domingo, quando eu enviar a crônica, a virose do computador já estará curada. Se tenho ou não tendências exibicionistas é um papo que fica melhor eu deitada num divã. Então é melhor não divanear sobre isso aqui.

O melhor a fazer é voltar ao amendoim. Procurei-o em vão. Tinha acabado em todos os lugares perto de casa. Mas o desejo continuava aceso e sem nenhum Outro que pudesse inibi-lo. Então resolvi estender a procura para além das proximidades de casa. Peguei outro táxi e fui a um supermercado mais sofisticado em que as coisas não costumam faltar. Enquanto andava pela rua usufruía do tom bucólico da cidade deserta com tons invernais. Não seriam infernais se a cidade não estivesse deserta? Finalmente cheguei ao supermercado. Não havia amendoim nem cru nem cozido. Foi uma frustração sem tamanho. Quando já ia me retirando de volta e frustrada, bato o olho numa embalagem bonita onde estava escrito "amêndoa". Não contei conversa. Estava ali a minha saída sublimatória. Comprei a embalagem bonita, muito mais cara do que o amendoim que sabe a chão, a resíduo de terra na casca, a forró, a Nordeste.

 Chegando em casa abri a embalagem e saboreei a amêndoa como uma guloseima com sabor de doceria européia como se um namorado sedutor e de hábitos sofisticados me houvesse presenteado. Degustando a amêndoa, lembrei de Monte Verde, de Campos do Jordão. Lembrei da Europa, por que não? Só por que agora não posso, nem de longe, pensar em ir à Europa? A gente não paga nada por fantasiar. Ou paga? Apaga que tem que pagar. A paga. Fantasiei sobre o amor de hábitos sofisticados, nós dois vendo a neve do alto de um teleférico, de puro prazer. Cada amêndoa saboreada era uma fantasia vivida. Ame  amendoar. Amendo ar. Amem do ar ao invés de amém doa. Amar do ar. Amor, viagem.  Comer amêndoa sem dizer amém a ninguém. Esqueci do amendoim e fui feliz.
                                                                                                              Marcia Gomes. 

domingo, 21 de junho de 2015

21/06/2015                                            PLEONASMO.

Desci até o playground de meu prédio e fui tomada por uma nostalgia saudosa. Será que nostalgia saudosa é pleonasmo? Acabei de ler uma crônica muito divertida e bucólica (crônica bucólica?) onde o autor diz que aprendeu a falar "abraço caudaloso" com Manoel de Barros e expressa perplexidade diante do fato de a palavra "engano" vir sempre precedido de "ledo". Mas precedido de "Ledo" também vem "Ivo". Ledo Ivo, se não me engano, é o nome de um escritor. Ou será um ledo engano? Ivo viu a uva. Frase que constava da minha cartilha de alfabetização quando eu era criança. Cartilha de alfabetização quando eu era criança é um pleonasmo? Só se for um pleonasmo preconceituoso e desinformado. Afinal, no nosso país e em muitos países as pessoas usam cartilha de alfabetização quando são adultas. Cartilha, é bem verdade, eu não sei não. Cartilha é coisa dos tempos idos.

Assisti recentemente a um filme muito enternecedor ambientado numa pequena cidade da África onde um senhor de mais de 80 anos luta ferozmente pelo direito de se alfabetizar numa escola pública à qual somente crianças podiam ter acesso. Para mim foi muito tocante ver a determinação e a dignidade com que aquele senhor reivindicava ser alfabetizado. Não é que ele conseguiu? Me causou particular interesse observar como ele se relacionava com seus colegas crianças, acabando por dar um jeito de ser aceito pelo grupo dos menores. 

O playground do meu prédio estava todo ornamentado de bandeirolas e balões de São João. Vou passar um São João chucro provavelmente em Salvador e solitária. Fiquei com muita vontade de aceitar o convite de uma amiga querida para ir a seu sítio. Mas pelas idiossincrasias do atendimento médico nessa cidade, não vou ao sítio. É que a médica especialista em dor que me fará (ou faria?) o procedimento de bloqueio, sumiu de circulação e até hoje não respondeu a meus telefonemas. Idiossincrasias baianas? Ou estou sendo preconceituosa com minha terra? Afinal, médicos impontuais há em todo lugar.

Bandeirolas e balões coloridos de São João. Recordar é viver. Re cor dar. Dar de novo ao coração? São João é uma palavra mágica para mim. Só me traz belas recordações. Pois não foi quando eu completei 15 anos que minha mãe preparou uma festa junina surpresa para mim? Talvez vocês não se recordem, mas já contei sobre essa festa em outra crônica domingueira.

 Mas minhas belas recordações também remontam a períodos mais precoces de quando eu tinha entre 4 e 10 anos e morávamos no interior. Primeiro em Taperoá. Meu pai se encarregava de fazer lindos balões e do preparo da canjica e dos licores. Minha mãe ficava encarregada de providenciar os ingredientes e dava o apoio logístico. Os rituais começavam muitos dias antes da festa. Confeccionar os balões para depois içá-los aos céus era um trabalho cheio de requintes estéticos sofisticados. Requintes sofisticados é pleonasmo? A escolha das cores dos papéis e das figuras para compor cada balão era coisa de artista. Já disse a vocês que além de médico, meu pai era também fotógrafo e tinha gosto visual apurado. Nós, os filhos, colaborávamos com ele no trabalho, e cada balão pronto era uma farra que fazíamos. Verdadeira celebração.

O preparo dos licores também era antecipado. Precisava de tempo para fazer a decantação. O carro chefe era o jenipapo. Mas tinha também cacau, tangerina, maracujá e mil outros sabores mais. Era muito licor. No interior havia o hábito de, na noite da festa, grandes grupos de pessoas passarem de casa em casa dançando forró, comendo e bebendo as coisas que o anfitrião oferecia. Nós recebíamos os visitantes com mesa farta e muita generosidade. Outra coisa que era uma farra era a compra de fogos. Cada um de nós queria para si o mais brilhante, o mais luminoso. Na hora de soltar os fogos minha mãe nos assessorava para evitar o risco de acidentes e queimaduras. Tudo isso acontecia à beira da enorme fogueira acesa na porta de nossa casa, onde assávamos milho e batata doce. Embora meu pai fosse ateu, logo aprendemos sobre o significado bíblico da fogueira. Ela foi acesa pela mãe de João Batista para anunciar seu nascimento à família de Jesus.

Na véspera da festa a feitura da canjica era um acontecimento muito particular. Uma senhora cujo nome me fugiu à memória e que gostava de tomar umas e outras, vinha também auxiliar meu pai que acreditava que quanto mais ébria ela estivesse, melhor prepararia a canjica. Ele então enchia a mulher de licor. Ela ficava muito engraçada fazendo pilhéria com tudo. Talvez, em alguns momentos, um pouco inconveniente. Mas quem vai ligar para isso na véspera de festejo tão lúdico? O milho era passado num moedor manual e em seguida a mistura era coada em um pano repetidas vezes antes de ser lentamente mexida ao fogo. É que se acreditava que o segredo da canjica era a leveza e delicadeza da massa. Acho que a canjica de meu pai era a mais leve e delicada de toda Taperoá.

Tinha também o ritual do preparo dos trajes típicos de caipira ao encargo de minha mãe. Se não me falha a memória, Anísia, a secretária de meu pai no consultório e que morava conosco, era quem costurava. Mas minha mãe não abria mão de escolher os modelos e comprar os tecidos. Além do acontecimento que era a roupa de caipira, ainda tínhamos a deliciosa aventura de podermos usar maquiagem.

Também é de São João a memorável recordação de meu primeiro pileque. Memorável recordação é pleonasmo? Aos meus 16 anos eu estava apaixonada por um bonito jovem de nome Rogério, irmão de uma grande amiga cujos pais moravam numa cidade de interior chamada Queimadas. Felizmente minha mãe autorizou que eu fosse com minha amiga e Rogério passar o São João naquela cidade. Dancei a noite toda encantada com Rogério e de tanto encantamento me embebedei. Minha grande e inesquecível transgressão alcoólica. Provavelmente, não na fogueira, fiquei queimada com a família que me recebia. Quem manda a cidade ter nome tão sugestivo? Só sei que Rogério não gostou nada de me ver literalmente botando os bofes para fora de tanto que eu vomitava. Perdi um namorado e ganhei uma ressaca de fazer dó.

Me vem outra lembrança bonita de festa de São João, nesse caso eu bem mais velha do que quando fui apaixonada por Rogério. Se não me engano, eu já era recém formada em Psicologia, tinha namoro firme com um rapaz de nome Alberto e uma estreita relação de amizade com o casal de colegas Ana Cecília e Virgílio que nos convidaram para a festança no sítio de Dailton, tio de Ana Cecília. Acho que Ana Helena, também amiga íntima, estava nessa embaixada. Se não me engano, o sítio era para os lados da Estrada Velha do Aeroporto. Fomos no carro de Alberto e passamos por vários divertidos acidentes de percurso antes de achar o caminho correto. Mas como valeu a pena!! Passamos a noite ao calor da fogueira, tomando licor e comendo muito amendoim e guloseimas, usufruindo da companhia de pessoas maravilhosas como a nossa saudosa Dona Ruth. Brincamos por um longo tempo de jogo da verdade. Os jovens, ah como às vezes é bom sermos jovens, se comprazem com esses jogos de descobertas e revelações onde se exercitam no conhecimento de suas subjetividades. Pelo menos os jovens do tempo em que fui jovem.

Pois é, São João para mim é palavra de "se guardar no lado esquerdo do peito". E "cometer" pleonasmos como nostalgia saudosa. Bom São João para vocês.
                                                                                Marcia Gomes.

domingo, 14 de junho de 2015

14/06/2015                                ATUALIDADE

Atual idade. Dar-me conta da idade atual. Atualizar meus amigos e colegas leitores sobre o momento que vivo. Faço 62 anos no próximo dia 19. Atual idade. Postei no meu Facebook algo que são amarras que se desfazem e se tornam gaivotas voando libertas. Sinto-me como uma gaivota voando liberta. Atual idade. Estou cuidando da saúde e em breve vou me submeter a um procedimento de bloqueio da dor que requer hospitalização por um dia. Estou confiante que vai dar certo.

 Atual idade. Resolvi que na data do meu aniversário vou fazer uma celebração à moda marciana. Escolhi sair com uma prima e um amigo ambos queridos, para um jantar informal sem cunho de festividade. Talvez almoçar com duas ou três amigas mais íntimas se elas puderem, sentindo prazer em usufruir da companhia, também sem cunho de festividade. É o meu desejo. Sinto-me envelhecendo. Será que envelhecer deixa a gente menos festeiro e mais seletivo? Não sei, não sei. Só sei que esse ano pelo menos, não cabe festejar. Nunca fui muito afeita a meu aniversário. Também não sou muito amiga de festas. Sou tímida, um tanto taciturna, e me sinto mais à vontade em pequenos grupos. Lembro que Lívia, uma sobrinha querida que é também psicóloga e mãe da meiga Iasmin, faz aniversário comigo. Parabéns, Livinha !!! Para mim, manifestações de felicitações são bem vindas, mas sem clima de festividade. Esse é o meu desejo.

 Quero exercer meu desejo. Faço 62 anos sob a égide de ventos que anunciam bons presságios. Me sinto animada. Instalada sem lamentações no fato de que sou uma senhora mais que sexagenária e que isso implica algumas perdas necessárias. Felizmente, nos últimos anos, perdi muito peso infelizmente sem fazer atividade física. Aceito que tenho que me deparar com as desagradáveis consequências disso, que me deixam com uma aparência bem mais envelhecida, ainda mais tendo assumido meus cabelos brancos. Assumi com prazer. Por outro lado, minha saúde melhorou bastante e as minhas taxas de colesterol, triglicérides etc, etc, estão maravilhosas. Não é fácil lidar com uma relativa perda do vigor da juventude, mas me ancoro em algumas saídas sublimatórias. Por exemplo, tenho meu trabalho que adoro e vivencio com muita alegria a experiência de maternagem adotiva. Meu filho Rafa está muito bem instalado em Porto Seguro como professor da UFSB. Nos próximos dias vai  receber a esposa que mora em São Paulo e está feliz com isso.

Sinto-me privilegiada por trabalhar no que gosto. Estive por um longo período com o meu desejo pela psicanálise muito amortecido. Amor tecido. Amor ter sido. A morte sido. Renunciar ao gozo mortífero para que como Fênix renasça das cinzas e possa fazer as pazes com o que sou, como sou, jogando rótulos aprisionadores e estigmatizadores no lixo. Parece que faço pazes com a psicanálise. O movimento na minha clínica tem melhorado de modo relativamente satisfatório, considerando que o país vive um momento de crise e que estou na psicanálise há pouco tempo.

Sofro ainda e muito com um problema de refluxo esofágico somado a interação medicamentosa que me causam uma dificuldade sensível de articular a fala. Isso é muito complicado para alguém para quem falar é uma necessidade visceral. Essa desagradável limitação muito me inibiu de frequentar grupos e poder conversar livremente. Enquanto não se resolve, tenho usado algumas saídas paliativas que não me impeçam de todo de me exprimir principalmente em situações de trabalho. Fiquei muito feliz de ter aceito o desafio de preparar um trabalho sobre o estado amoroso para apresentar em outubro no seminário da Letra Freudiana em Salvador. Vou apresentar falando como posso. Também fiquei feliz de ter ido esta semana ao Campo Psicanalítico assistir ao debate sobre os nós do sintoma na entrada em análise. Provavelmente volto lá no dia 16 para participar do "Bloomsday". Marco da data em que transcorre a narrativa de Ulisses de James Joyce.

Por coincidência o dia 16 é também muito importante por ser o aniversário de minha mãe. Eu e ela temos tido uma relação muito amorosa. Agora, nesse período próximo ao São João, o movimento no consultório tem uma queda por conta do feriado e férias escolares. Por isso não é o melhor momento para eu viajar para vê-la. Mas assim que puder, o farei. Para mitigar a saudade falo com ela duas vezes por dia. Gostaria muito que meu irmão com quem Dona Myriam mora, dispusesse de tempo para colocá-la no Skype para conversarmos mais ao vivo. Mas nem tudo é como a gente gostaria. Torço para que minha mãezinha fique contente com o presente e o cartão que pedi à minha cunhada que comprasse para ela.

 Estou um pouquinho preocupada porque por conta de uma viagem do meu irmão e minha cunhada, minha mãe talvez vá também viajar e se hospedar em Aracaju na casa de minha irmã mais velha. Sandra é muito amorosa e cuidadosa com ela que é apaixonada por Alfredo, seu genro. O motivo da minha preocupação é que minha mãe sofre um certo abalo com mudanças geográficas. Fica um pouquinho desorientada. Só de saber que talvez viaje, ela tem chorado às vezes, e tem apresentado lapsos de memória preocupantes. Me disse com sua vozinha sumida e triste, que não aguenta mais fazer viagens. Se fosse só pela minha vontade, Dona Myriam permaneceria instalada no seu cantinho em Maceió, sem precisar passar por mudanças estressantes. Mas nem tudo é como a gente gostaria.  Meu irmão e minha cunhada cuidam dela com muito amor e dedicação e precisam viajar.Me consola saber que tenho podido usufruir de uma gratificante relação com minha mãe. Fico muito contente de vê-la fisicamente plenamente recuperada da mastectomia que sofreu no ano passado, momento em que vocês muito me apoiaram.

Não sem esforço (não consegui dar conta de toda a leitura), mas com muito gosto, me preparei para a discussão com uma psicanalista da Letra Freudiana do Rio. É que eu e uma colega muito querida estamos há 2 anos estudando o Seminário 6 de Lacan e de 2 em 2 meses tiramos nossas dúvidas com essa psicanalista do Rio. É muito rico e proveitoso. Se as contingências ajudarem, pretendo no segundo semestre participar de um trabalho sobre o Seminário de Lacan "O Ato Analítico" com essa psicanalista. Também estou me organizando para ver se retomo minhas sessões de supervisão.

Tanto quanto o problema da coluna permite, tenho estado com amigos e adorei assistir "O Sal da Terra" com um amigo muito querido. No feriado passado encontrei com uma amiga que não via há muitos anos e por quem tenho muito afeto. Fiquei muito feliz de saber que ela vai ser avó. Num desses fins de semana fui à casa de outra amiga adorável e confortavelmente instaladas assistimos a uma aula de um psicanalista. Na saída ainda ganhei de presente uma almofadinha milagrosa para descansar a coluna. Almocei no fim de semana passado na Ceasinha   do Rio Vermelho com duas outras amigas. Mesmo com muita dor, foi um programa delicioso.

 Tendo um orçamento que não me dá folga, tenho me permitido fazer pequenos gastos como cortar o cabelo e fazer a unha, sem que por isso precise me sentir em dívida, como se o outro (aqui faço questão de usar letra minúscula) estivesse me pedindo  explicações de como uso meu dinheiro. Finalmente comprei sem culpa uma secretária eletrônica para meu consultório. O telefone da antiga não funcionava mais e o conserto sairia mais caro do que a compra de uma nova. Não me sinto em dívida. Tento aceitar o afeto que as pessoas que me querem bem me oferecem, sem que eu tenha que pagar algo por isso. Apenas fico muito grata. Muito grata mesmo. Como fiquei quando ganhei um maravilhoso puf para descansar os pés dando trégua à coluna. Vocês estão notando que toda hora estou falando da coluna?

Tem a chuva, mas estou curtindo muito a atmosfera de prenúncio de inverno. Há uma temperatura mais amena e os dias de céu mais sombrio me lembram São Paulo com suas veredas enganosas e prédios elegantes. Se o bom momento que estou vivendo se mantiver, qualquer hora dessas dou um pulo em São Paulo. Depois de tantos anos sem me permitir ir até lá, quero ver os caules de suas árvores dolorosamente maltratados pela fuligem da poluição. Quero ver São Paulo tão bem cantada na crônica musical de Paulo Vanzolini. "Cena de sangue num bar da Avenida São João". Quero ver são Paulo, essa banda de Moebius cantada por Caetano. "Porque é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso." 

Sexta-feira, dia dos namorados, mesmo sem namorado assisti  ao filme "O Homem que Elas Amavam Demais" com Catherine Deneuve. No mínimo instigante. Sempre gostei de ir ao cinema sozinha. Não tenho vontade de assistir à programação pasteurizada e de péssimo gosto da Globo, com suas investidas tendenciosas contra o governo e fazendo um alarde mentiroso e sensacionalista a respeito da crise econômica que o país atravessa. Mesmo assim, assisti e gostei da entrevista dada pela presidente Dilma a Jô Soares. Acho que ela se saiu muito bem.

 Tenho me divertido muito com a programação do canal Arte1. Assisti a um longo e interessante documentário sobre João Cabral de Melo Neto. Fiquei triste de saber que ele já ficou internado num hospital psiquiátrico por um período. Lamentável. Na entrevista que ele dá no documentário, diz que dos bons poetas brasileiros Drummond é o menos lírico. Lembro que estou tomando um remédio para dor na coluna chamado Lyrica. Parece que mais o nome poético do que propriamente a medicação, me traz um alívio. Ai, as palavras, que felizmente nos permitem enveredar por novas cadeias significantes. Ai, as palavras.

Bom poder resgatar um pouco o meu gosto por brincar com as palavras, sem ficar atormentada pelo que posso interpretar como imperativos superegóicos do Outro. Ator mentada. Ator mentida. Essa brincadeira aqui estou tomando emprestado a um amigo poeta que a pronunciou no masculino numa sessão de análise. Atual idade. Tempo de me autorizar sem rótulos aprisionadores. Tempo de viver sem  pedir desculpas por existir. Descobri que os matizes de púrpura que atribuí às mães e a mim em texto anterior, são marcas vermelho- sangue de muito sofrimento. Mento. Minto. Tempo de dizer não ao sofrimento um tanto masô pelo qual me deixava às vezes tomar. Aprendi que na etimologia da palavra "sádico" tem algo de sapo. Sapo, aquele animal asqueroso que me causa repulsa e que diz a lenda que  lança um líquido no olho da gente e nos deixa cegos. Cegos para não ver que toda masô tem um lado sádico, um lado de sapo, aquele animal asqueroso que me causa respulsa.

O sangue do sofrimento pulsa em minhas veias parecendo não me dar trégua. Trégua, égua. Animal elegante fêmea do cavalo. Trégua lembra ser mulher emparceirada e elegante. Quero me dar trégua. Aos 62 anos, que seja. Afinal o inconsciente é atemporal. Rimou. Rimo, rimo. Muro de arrimo pra me sustentar, ou me sustentar no fio tênue do equilibrista?
                                                                        Marcia Gomes.