domingo, 28 de junho de 2015

28/06/2015                                         AMÊNDOA.

O feriado de São João é de uma paz modorrenta. Não deixo de enxergar nisso a vantagem de ir ao supermercado sem atropelos, frequentar o cinema se me der na telha, sobretudo a vantagem de estar só sem o burburinho barulhento e constrangedor que às vezes estar com o outro nos causa. Só às vezes. Que não é toda hora que encontro prazer em estar sozinha. Com frequência o outro é muito, muito bem vindo e estar sozinha pode ser chato.

A data de São João me causa a vontade incontrolável de comer amendoim cozido. Amendoim. Ai, as palavras. Amendoim não por acaso começa como amêndoa. Amen doa. Amém doa. Amém dói em mim. E como às vezes dói, dizer amém!!! Dizer amém ao outro. Sim, você tem razão. Sim, vou fazer o que você quer. Sim, vou seguir sua prescrição até reduzir a nada meu desejo. Desejo aqui entendido como vontade.

 Fiquei muito feliz de jantar, no dia do meu aniversário, com uma prima e um amigo que muito gentilmente me deram o privilégio de escolher o restaurante por ser eu a aniversariante. Rimou. Também fiquei feliz naquela data, por ter recebido presentes tão a minha cara, que pareceu que eu os tivesse escolhido. Há alguns outros que com muita gentileza não nos deixam escolher nem de vez em quando. Às vezes, mesmo sem gentileza podem dizer sempre assim: "você é minha convidada, sou eu quem vai pagar e pronto". E a gente diz amém. Por se sentir em dívida? Não é por mal que as pessoas mesmo com delicadeza fazem valer o seu desejo esquecendo o desejo do outro. Na verdade elas nem se dão conta que estão fazendo isso.

 A gente é que permite. A gente é que as acostuma a pensar que não tem desejo para exercer. Às vezes elas pensam que seu desejo, por ser generoso, dadivoso,oblativo mesmo, deve prevalecer a qualquer custo. Felizmente há ainda verdadeiros amigos, aqueles generosos com muita sensibilidade, que quando a gente contesta, gentilmente cedem, evitando que o que seria um dom, vire uma quebra de braço, uma disputa de poder. Mas há também aqueles, que mesmo sendo amigos, sem perceber que estão fazendo isso, e movidos pelas melhores intenções, tentam com sua palavra  nos submeter a ferro e fogo. E quando a gente explode de tanto engolir sapo, perde a razão por estar sendo "mal agradecida" ou mesmo "agressiva". Na verdade a gente está equivocada quando explode. Tudo que a gente sabe sobre a dualidade sado-masoquista, deveria ser suficiente para nos fazer compreender que aquele que quer nos submeter, provavelmente foi cruelmente submetido na sua história de vida. Então a pessoa não se dá conta que está repetindo com a gente o que fizeram com ela no passado. Mas chega de interpretosas porque "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". O que importa mesmo, é saber, que a gente poder, de vez em quando, exercer o próprio desejo, é a maior dádiva que o outro pode nos fazer. Mas se nos falta jogo de cintura para fazermos as nossas escolhas, as pessoas que nos submetem não vão se dar conta disso nunca. Outra vez é nossa a responsabilidade de, de vez em quando, sabermos fazer valer a nossa vontade.

Mas enveredei por esse caminho do dizer amém por causa do amendoim, da amêndoa. Amendoim sabe a chão, a resíduo de terra na casca, sabe a forró, a Nordeste. Já a amêndoa lembra aquelas guloseimas com sabor de doceria européia que um namorado sedutor e de hábitos sofisticados nos presenteia. Já tive amores de hábitos sofisticados. Mas hoje queria mesmo era comer amendoim cozido com resíduo de terra na casca. Então saí à cata. Saí porque estava entediada, nauseada mesmo, de ter visto na televisão ligada por um instante, uma notícia sensacionalista e desrespeitosa sobre a morte por acidente de um músico sertanejo.

Não sei bem ao certo o que é música sertaneja. Acho que por meus vieses narcísicos intimistas, tendo a não me dar conta de coisas do cotidiano, infelizmente ignorando às vezes assuntos que rendem à maioria das pessoas motivos para uma boa conversa sem maiores pretensões, e que às vezes vale muito a pena. Padeço de não me sentir como a maioria das pessoas. Muito me consola a frase de Caetano Veloso "de perto ninguém é normal".

 Será que às vezes me sinto anormal de tanto que deixo o outro chegar perto sem lhe dar fronteiras? Será que me exponho muito para o outro e isso, ao invés de ser um gesto de coragem, é uma situação de risco que me deixa vulnerável? Há quem diga, e me criticando, que me exponho muito ao escrever esta crônica domingueira e que isso não pega bem para alguém que ocupa o lugar de analista. Mando a crônica domingueira muitas vezes de cunho autobiográfico para um público seleto de colegas e amigos, jamais para nenhum de meus analisantes (pacientes), com os quais não costumo me comunicar por E-mail. Mas será que os que me criticam ainda assim não estão com razão? Será que não exponho demais minhas divagações subjetivas?

Como não tenho como responder isso agora, voltemos ao amendoim. Peguei um táxi para procurá-lo mais ou menos nas imediações de casa. Agora divaguei e me veio à cabeça o receio de estar me expondo muito, ao escrever e pensar em enviar a meus leitores essa crônica domingueira, mesmo sabendo que pelo menos até amanhã, quinta-feira, quando vem o técnico, meu computador estará com vírus e isso me causou o maior problema no Facebook. Face. Dar o rosto pra apanhar? Me expor ou não me expor, eis a questão. Será que tenho tendências exibicionistas? Aplaco as divagações me dando conta que domingo, quando eu enviar a crônica, a virose do computador já estará curada. Se tenho ou não tendências exibicionistas é um papo que fica melhor eu deitada num divã. Então é melhor não divanear sobre isso aqui.

O melhor a fazer é voltar ao amendoim. Procurei-o em vão. Tinha acabado em todos os lugares perto de casa. Mas o desejo continuava aceso e sem nenhum Outro que pudesse inibi-lo. Então resolvi estender a procura para além das proximidades de casa. Peguei outro táxi e fui a um supermercado mais sofisticado em que as coisas não costumam faltar. Enquanto andava pela rua usufruía do tom bucólico da cidade deserta com tons invernais. Não seriam infernais se a cidade não estivesse deserta? Finalmente cheguei ao supermercado. Não havia amendoim nem cru nem cozido. Foi uma frustração sem tamanho. Quando já ia me retirando de volta e frustrada, bato o olho numa embalagem bonita onde estava escrito "amêndoa". Não contei conversa. Estava ali a minha saída sublimatória. Comprei a embalagem bonita, muito mais cara do que o amendoim que sabe a chão, a resíduo de terra na casca, a forró, a Nordeste.

 Chegando em casa abri a embalagem e saboreei a amêndoa como uma guloseima com sabor de doceria européia como se um namorado sedutor e de hábitos sofisticados me houvesse presenteado. Degustando a amêndoa, lembrei de Monte Verde, de Campos do Jordão. Lembrei da Europa, por que não? Só por que agora não posso, nem de longe, pensar em ir à Europa? A gente não paga nada por fantasiar. Ou paga? Apaga que tem que pagar. A paga. Fantasiei sobre o amor de hábitos sofisticados, nós dois vendo a neve do alto de um teleférico, de puro prazer. Cada amêndoa saboreada era uma fantasia vivida. Ame  amendoar. Amendo ar. Amem do ar ao invés de amém doa. Amar do ar. Amor, viagem.  Comer amêndoa sem dizer amém a ninguém. Esqueci do amendoim e fui feliz.
                                                                                                              Marcia Gomes. 

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