domingo, 21 de junho de 2015

21/06/2015                                            PLEONASMO.

Desci até o playground de meu prédio e fui tomada por uma nostalgia saudosa. Será que nostalgia saudosa é pleonasmo? Acabei de ler uma crônica muito divertida e bucólica (crônica bucólica?) onde o autor diz que aprendeu a falar "abraço caudaloso" com Manoel de Barros e expressa perplexidade diante do fato de a palavra "engano" vir sempre precedido de "ledo". Mas precedido de "Ledo" também vem "Ivo". Ledo Ivo, se não me engano, é o nome de um escritor. Ou será um ledo engano? Ivo viu a uva. Frase que constava da minha cartilha de alfabetização quando eu era criança. Cartilha de alfabetização quando eu era criança é um pleonasmo? Só se for um pleonasmo preconceituoso e desinformado. Afinal, no nosso país e em muitos países as pessoas usam cartilha de alfabetização quando são adultas. Cartilha, é bem verdade, eu não sei não. Cartilha é coisa dos tempos idos.

Assisti recentemente a um filme muito enternecedor ambientado numa pequena cidade da África onde um senhor de mais de 80 anos luta ferozmente pelo direito de se alfabetizar numa escola pública à qual somente crianças podiam ter acesso. Para mim foi muito tocante ver a determinação e a dignidade com que aquele senhor reivindicava ser alfabetizado. Não é que ele conseguiu? Me causou particular interesse observar como ele se relacionava com seus colegas crianças, acabando por dar um jeito de ser aceito pelo grupo dos menores. 

O playground do meu prédio estava todo ornamentado de bandeirolas e balões de São João. Vou passar um São João chucro provavelmente em Salvador e solitária. Fiquei com muita vontade de aceitar o convite de uma amiga querida para ir a seu sítio. Mas pelas idiossincrasias do atendimento médico nessa cidade, não vou ao sítio. É que a médica especialista em dor que me fará (ou faria?) o procedimento de bloqueio, sumiu de circulação e até hoje não respondeu a meus telefonemas. Idiossincrasias baianas? Ou estou sendo preconceituosa com minha terra? Afinal, médicos impontuais há em todo lugar.

Bandeirolas e balões coloridos de São João. Recordar é viver. Re cor dar. Dar de novo ao coração? São João é uma palavra mágica para mim. Só me traz belas recordações. Pois não foi quando eu completei 15 anos que minha mãe preparou uma festa junina surpresa para mim? Talvez vocês não se recordem, mas já contei sobre essa festa em outra crônica domingueira.

 Mas minhas belas recordações também remontam a períodos mais precoces de quando eu tinha entre 4 e 10 anos e morávamos no interior. Primeiro em Taperoá. Meu pai se encarregava de fazer lindos balões e do preparo da canjica e dos licores. Minha mãe ficava encarregada de providenciar os ingredientes e dava o apoio logístico. Os rituais começavam muitos dias antes da festa. Confeccionar os balões para depois içá-los aos céus era um trabalho cheio de requintes estéticos sofisticados. Requintes sofisticados é pleonasmo? A escolha das cores dos papéis e das figuras para compor cada balão era coisa de artista. Já disse a vocês que além de médico, meu pai era também fotógrafo e tinha gosto visual apurado. Nós, os filhos, colaborávamos com ele no trabalho, e cada balão pronto era uma farra que fazíamos. Verdadeira celebração.

O preparo dos licores também era antecipado. Precisava de tempo para fazer a decantação. O carro chefe era o jenipapo. Mas tinha também cacau, tangerina, maracujá e mil outros sabores mais. Era muito licor. No interior havia o hábito de, na noite da festa, grandes grupos de pessoas passarem de casa em casa dançando forró, comendo e bebendo as coisas que o anfitrião oferecia. Nós recebíamos os visitantes com mesa farta e muita generosidade. Outra coisa que era uma farra era a compra de fogos. Cada um de nós queria para si o mais brilhante, o mais luminoso. Na hora de soltar os fogos minha mãe nos assessorava para evitar o risco de acidentes e queimaduras. Tudo isso acontecia à beira da enorme fogueira acesa na porta de nossa casa, onde assávamos milho e batata doce. Embora meu pai fosse ateu, logo aprendemos sobre o significado bíblico da fogueira. Ela foi acesa pela mãe de João Batista para anunciar seu nascimento à família de Jesus.

Na véspera da festa a feitura da canjica era um acontecimento muito particular. Uma senhora cujo nome me fugiu à memória e que gostava de tomar umas e outras, vinha também auxiliar meu pai que acreditava que quanto mais ébria ela estivesse, melhor prepararia a canjica. Ele então enchia a mulher de licor. Ela ficava muito engraçada fazendo pilhéria com tudo. Talvez, em alguns momentos, um pouco inconveniente. Mas quem vai ligar para isso na véspera de festejo tão lúdico? O milho era passado num moedor manual e em seguida a mistura era coada em um pano repetidas vezes antes de ser lentamente mexida ao fogo. É que se acreditava que o segredo da canjica era a leveza e delicadeza da massa. Acho que a canjica de meu pai era a mais leve e delicada de toda Taperoá.

Tinha também o ritual do preparo dos trajes típicos de caipira ao encargo de minha mãe. Se não me falha a memória, Anísia, a secretária de meu pai no consultório e que morava conosco, era quem costurava. Mas minha mãe não abria mão de escolher os modelos e comprar os tecidos. Além do acontecimento que era a roupa de caipira, ainda tínhamos a deliciosa aventura de podermos usar maquiagem.

Também é de São João a memorável recordação de meu primeiro pileque. Memorável recordação é pleonasmo? Aos meus 16 anos eu estava apaixonada por um bonito jovem de nome Rogério, irmão de uma grande amiga cujos pais moravam numa cidade de interior chamada Queimadas. Felizmente minha mãe autorizou que eu fosse com minha amiga e Rogério passar o São João naquela cidade. Dancei a noite toda encantada com Rogério e de tanto encantamento me embebedei. Minha grande e inesquecível transgressão alcoólica. Provavelmente, não na fogueira, fiquei queimada com a família que me recebia. Quem manda a cidade ter nome tão sugestivo? Só sei que Rogério não gostou nada de me ver literalmente botando os bofes para fora de tanto que eu vomitava. Perdi um namorado e ganhei uma ressaca de fazer dó.

Me vem outra lembrança bonita de festa de São João, nesse caso eu bem mais velha do que quando fui apaixonada por Rogério. Se não me engano, eu já era recém formada em Psicologia, tinha namoro firme com um rapaz de nome Alberto e uma estreita relação de amizade com o casal de colegas Ana Cecília e Virgílio que nos convidaram para a festança no sítio de Dailton, tio de Ana Cecília. Acho que Ana Helena, também amiga íntima, estava nessa embaixada. Se não me engano, o sítio era para os lados da Estrada Velha do Aeroporto. Fomos no carro de Alberto e passamos por vários divertidos acidentes de percurso antes de achar o caminho correto. Mas como valeu a pena!! Passamos a noite ao calor da fogueira, tomando licor e comendo muito amendoim e guloseimas, usufruindo da companhia de pessoas maravilhosas como a nossa saudosa Dona Ruth. Brincamos por um longo tempo de jogo da verdade. Os jovens, ah como às vezes é bom sermos jovens, se comprazem com esses jogos de descobertas e revelações onde se exercitam no conhecimento de suas subjetividades. Pelo menos os jovens do tempo em que fui jovem.

Pois é, São João para mim é palavra de "se guardar no lado esquerdo do peito". E "cometer" pleonasmos como nostalgia saudosa. Bom São João para vocês.
                                                                                Marcia Gomes.

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