sábado, 21 de junho de 2014

22/06/14                                            RESGATE

Já em Salvador, abro a porta do meu consultório com um chaveiro de metal que tem, de um lado, uma Nossa Senhora Aparecida esculpida. De outro lado, também esculpido, o nome "Myriam". O nome de minha mãe, que ouço dizer que significa "Maria" em hebraico, o nome de Nossa Senhora.

Nunca tive um chaveiro amparando as minhas chaves do consultório. Quanto mais trazendo um tema religioso...o que a gente não faz por amor? Lá em Maceió minha mãe e eu, todos os dias às 18:00 h assistimos à missa na televisão rezada na Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Quem diria? O que a gente não faz por amor?

Como já disse, os lapsos de memória não acometem minha mãe quando se trata dos assuntos de Deus. Todos os dias, meia hora antes da missa, ela consultava o calendário, pegava a Bíblia e assinalava os textos para serem lidos. Para fazê-lo, não aceitava nem precisava de ajuda. Cantava os cânticos de cor e assim também proferia todas as falas do ritual litúrgico. Praticamente incapacitada de se locomover como se encontra, não sei onde achava forças para se levantar e rezar de pé, quando essa era a exigência do ritual.

Cheguei no aeroporto de Maceió sem saber o que iria encontrar, sem saber como seria recebida. Lá estavam me esperando Lula, meu irmão, e Lindaura, minha cunhada. Depois de um percurso não muito longo, onde conversamos sobre Dilma e o PT, chegamos à bonita casa num condomínio fechado. Um lindo e amplo jardim, piscina e canil vistos superficialmente, tamanha era a ansiedade de adentrar o quarto de minha mãe e abraçá-la. Já no aeroporto, fiquei tocada com a paciência que eles tiveram de me esperar no desembarque. Mais tocada ainda fiquei ao saber que minha mãe atrasou a hora do seu almoço para me esperar. Naqueles quase cinco dias que passaria em Maceió, eu não sabia que inúmeras seriam as horas em que me sentiria comovidamente tocada por gestos e palavras de todos que estavam ali.

Abracei minha mãe com o cuidado de não lhe machucar as costas. Chorei copiosamente quando consumou-se o tão esperado abraço. Notei que ela emagreceu muito e que sua pele parecia papel celofane deixando entrever as suas veias, numa transparência impudica. A primeira coisa que ela me disse foi que Lula e Lindaura, embora fosse domingo, pediram à empregada para trabalhar para que eu fosse bem recebida. Minha sobrinha Luciana, muito meiga e doce desceu com seu filhinho Iuri para me cumprimentar. Iuri é uma criança muito inteligente, ativa e travessa. Logo, logo desceria Cauã, seu irmão mais velho, um quase adolescente muito gentil e educado.

Pronto. Hora de almoço com atraso e estávamos todos à mesa. Lula e Lindaura têm uma característica que eu muito prezo nas minhas relações. Principalmente Lindaura que é extremamente dadivosa e receptiva, na verdade eles são um casal que prima por saber lhe deixar à vontade sem imposições e controles. As coisas fluem. Parece que eles sabiam exatamente que o grande motivo que me levara lá, era ver e saber de minha mãe. E me deram liberdade para disso usufruir.

Comemos animados pelas divertidas "pintanças" de Iuri. Cauã, como um rapazinho bem comportado, não se "avexa" com as insistentes investidas do irmão menor para ser o centro das atenções. Com mais vagar, olho para a casa cuidadosamente decorada por Lindaura. Toda a área externa está enfeitada com bandeirolas de São João. A marca do meu pai no gosto de Lula por proporcionar uma bonita festa junina às crianças. A marca de meu pai nas tiradas bem humoradas de meu irmão. A comida é farta e tem traços do regionalismo alagoano. Fixo minha atenção na minha mãe e uma ternura desmedida me toma o peito. Ela parece minúscula, no seu demorado mastigar. Muito demorado.

Depois de me instalar num quarto confortabilíssimo no andar de cima da casa, desço para os aposentos de minha mãe e ela me mostra condoída o machucado pela queda nas costas. Mostra a pomada com a qual Lula lhe massageia todas as noites. Mostra os machucados que tem nos dedos dos pés e diz do trabalho que tem para fazer os curativos. Me parece muito cansada, mas mais lúcida. Seu quarto está cheio de imagens de santos, tem uma fotografia do Papa Francisco, tem fotografias de nós todos e está sobrecarregado de caixas guardando suas recordações do passado, seus remédios que são muitos e muita tranqueira que teimosa, faz questão de preservar. Diz que sendo carmelita tem o quarto como sua cela. Tudo isso me deixa com um nó na garganta.

O dia do aniversário de minha mãe foi uma festa comovente. Um lindo bolo, doces, salgados, muitos presentes, tudo carinhosamente providenciado por Lindaura e Lula. Minha mãe faz questão de registrar num caderno todos que lhe telefonaram. Aí a memória atrapalha muito e ela fica impaciente. Como não consegue mais manipular o computador, olho no seu Facebook todos os que lhe deixaram mensagens. No meio caminho da empreitada já está impaciente no seu esforço de anotar. Noto que precisa cumprir uma rigorosa rotina. Noto que à hora da missa é quando fica mais entregue, transcendendo os cansativos rituais do dia a dia dos quais quer que Deus a libere, o que não cansa de dizer repetidamente.

A chegada de Livinha, minha colega de aniversário, sobrinha querida, acrescenta ternura e aconchego ao convívio familiar. Além da data de aniversário, temos a profissão em comum e creio que somos também parecidas numa certa tendência à comoção. Iasmin, sua filhinha, minha sobrinha neta é um encanto de meiguice e sociabilidade. A casa fica multifacetada de traços de cultura de quatro gerações. De minha mãe a seus bisnetos. Lula, muito motivado para assistir aos jogos da Copa, não negligencia contudo seus cuidados atenciosos de filho, marido, pai, avô e irmão. Um dia, acordou quase de madrugada para ir a um posto de saúde buscar um remédio para nossa mãe.

Meu último dia de permanência em Maceió, dia do meu aniversário e de Lívia, me fez compreender quão importante para mim e para todos foi essa minha viagem. Viagem de resgate. Viagem de poder ressignificar, estreitando laços, viagem de agradecer a Lula e a Lindaura por terem podido fazer por minha mãe o que as suas filhas mulheres não poderiam ter feito, mesmo que quisessem.

 O aniversário duplo foi comemorado com tudo que teve direito. Minha querida irmã Sandra ainda que em Aracaju, não deixou de comparecer com seus telefonemas amorosos e presentes que enviou. É ela quem cuida de minha mãe quando Lula e Lindaura precisam viajar. Minha mãe amanheceu cantando "Parabéns pra você". Muito me comoveu ver todos torcendo pela Colômbia em solidariedade a meu filho Rafael. Nesse dia minha mãe estava muito lúcida. Quem esteve todo o tempo quase ignorando a existência da Copa do mundo, já próximo da minha hora de embarcar para Salvador, sentou-se comigo no seu quarto e sem se dar conta de que eu estava chorando copiosamente, torceu animadamente para a Colômbia, acompanhando cada lance de gol. De vez em quando chamava a Colômbia de Uruguai , mas em nenhum momento perdeu a consciência que aquele era o time do meu filho. Obrigada, minha mãe!!! Obrigada, Lula, Lindaura, Luciana, Lívia!!!

Obrigada, Marcia Gomes!!! Por acreditar que reinventar é possível. Por se permitir escrever uma crônica piegas, cheia de lugares comuns, a título de agradecer a si mesma. Agradecer por não se atemorizar diante dos fantasmas do passado. Agradecer por estar feliz e no seu aniversário receber do seu irmão o convite pra visitar o seu "cafofo". O "cafofo" é o espaço que Lula construiu para ele  usufruir seu tempo de aposentado. Nele ele instalou o ampliador de fotografias deixado por meu pai junto com outras coisas do estúdio fotográfico. Nele ele instalou um aeromodelo e sua oficina de marceneiro. Nosso pai era aeromodelista, fotógrafo e marceneiro, por hobby. 

Maceió. Estávamos todos lá, incluindo a memória de meu pai. Quatro gerações. Ciúmes, culpas, mal entendidos, hostilidades, distância, negação. Proximidade, ternura, compaixão, perdão, cumplicidade, identificação. Amor, muito amor. Resgate. 
                                           Marcia Gomes.
15/06/14                                  O  ABRAÇO  ESPERADO

Véspera. Espera. Estou em compasso de espera. Muitas emoções. Clima de Copa do mundo. A vitória do Brasil sobre a Croácia. A vitória da Colômbia sobre a Grécia. Eu, satisfeita em solidariedade a meu filho adotivo colombiano. Eu, estarrecida de repúdio àqueles que agrediram com palavrões a Presidente Dilma. Aqui não se trata de preferência por este ou aquele partido político. O que me choca é a vergonha pela qual passa uma nação inteira. Ouvir a sua presidente, uma senhora, ser agredida covardemente por palavras de baixo calão. Se fosse uma palavra de ordem política, um desafio ideológico, dava para aceitar. Mas um xingamento?

Véspera. Espera. Felizmente o meu amigo Carlos Machado anuncia a chegada do dia 15 de junho com um cartão poético em homenagem ao escritor Antônio Brasileiro que faz 70 anos. Felizmente existe a poesia como resposta ao palavreado de baixo calão: "A verdade é uma só: são muitas. E estamos todos certos. E sem rumo." (Antônio Brasileiro).

Véspera. Espera. Espero a hora de embarcar para uma viagem de encontro. Alguém cujas verdades são muitas e oscilam de um momento para outro, conforme o ir e vir da memória. Memória que, como onda, vem, mas daí a pouco arrefece em rasa espuma. Alguém que se pudesse ainda tomar conhecimento de que uma senhora foi xingada em um estádio de futebol, rezaria um rosário inteiro pedindo clemência porque estamos todos certos. E sem rumo. Falta pouco, mas é muito, para eu encontrar alguém que não abraço pessoalmente desde o carnaval do ano passado.

Me toma um sobressalto. A quem vou encontrar? Uma ternura pungente me aquece o peito. Quantos abraços nos restam? Hoje, enquanto aguardo a hora de embarcar, falei com ela ao telefone. Perguntou se  é sábado ou domingo. Pediu-me que ao chegar a abrace com vagar porque tem as costas machucadas por uma queda. Não a toco desde o carnaval do ano passado. Quanta coisa mudou de lá para cá!  Agora ela estranha quando lhe pergunto se assistiu ao jogo do Brasil. Não registra que estamos em plena Copa do mundo e nada mais quer senão assistir à missa na televisão.

Amanhã, dia 16, completará oitenta e um anos. Oitenta e um anos de vida nem sempre fácil, a maior parte do tempo na árdua labuta de criar filhos sem um parceiro para compartilhar. Com sua vozinha frágil e arfante me disse ter desistido de escrever a história da própria vida, tão dolorosas eram as passagens. Tem falado muito na hora que está para chegar.  A hora, segundo ela, de estar face a face com Deus. Fala disso recorrentemente quase como se estivesse pedindo autorização, pedindo para ser liberada das amarras que lhe prendem aqui. Isso me oprime o peito. Não estou preparada. A gente nunca está.

Mora numa casa muito confortável num condomínio em Maceió na companhia de seu filho preferido. Mora longe de mim e perdi a conta da última vez que teve saúde para vir a Salvador. A fé em Deus é a onda que nunca se arrefece em rasa espuma. A sua memória de Deus nunca falha. Há coisa de quatro anos, ainda lúcida, lúcida, ordenou-se carmelita. Noto que a sua crise de asma se atenua quando lhe digo que fui à missa. Quando lhe contei que tenho um amigo que escreve poemas de inspiração bíblica, ela quase sorriu. Quase.

Nesses últimos anos muito tenho ressignificado da nossa relação. É preciso fazer 60 anos para só aí se deixar apanhar inteira pela compaixão? Só aí compreender que vale a pena dizer que fui à missa, dizer qualquer coisa, uma coisa qualquer para lhe arrancar um quase sorriso? Véspera. Espera. A hora do abraço cauteloso para não machucar. A hora de entregar os presentes enviados pela sobrinha generosa. Presentes e um cartãozinho provavelmente com palavras ternas. Quando ela soube que esta sobrinha querida vinha aqui para deixar comigo os presentes, comentou :"Coitada de Elyana, tomando trabalho logo comigo?".

Véspera. Espera. A Copa do mundo pode esperar. De repente até ao repúdio ao xingamento a Dilma quero dar uma trégua. Estou agora somente por conta do anseio do abraço cauteloso. Cauteloso o suficiente para desmanchar em rasa espuma tantos anos de mal entendidos, de dores mútuas, de palavras ditas em excesso, de palavras nunca ditas. Agora que se aproxima a hora de abraçar minha mãe, quero parar o tempo. Quero não pensar em quantos abraços nos restam.
                                                                Marcia Gomes.

sábado, 7 de junho de 2014

08/06/14              VAMOS  TORCER  PELO  BRASIL??

Sou muito observadora. Nem sempre dou minha opinião, mas observo. Depois que abandonei a militância de esquerda na adolescência, acompanho acontecimentos políticos com um certo distanciamento e não me sinto autorizada a participar de grandes polêmicas. Na verdade não tenho muita motivação para travar debates políticos. Tendo a achar que cada um é livre para pensar e se posicionar como quiser e não me vejo no lugar de tentar "fazer a cabeça" de ninguém. Isso definitivamente ficou no passado. Mas observo e como observo!

No ano passado fui a uma doceria elegante que fica num bairro de classe alta e média alta aqui em Salvador. Sozinha, sentei em uma mesa com mais três lugares vazios e numa típica transgressão de diabética, pedi um doce. Comia meu doce um tanto constrangida pela culpa e principalmente por estar naquele bairro nobre. Sou de origem humilde, meu pai era simpatizante dos comunistas e por isso tenho bom gosto, sem haver sido acostumada a hábitos de consumo muito extravagantes. Gosto de comer bem e de frequentar eventos artísticos e culturais interessantes, mas sem o apoio de amigos por perto, fico um pouco acanhada nesses ambientes mais burgueses. Mas comia meu doce provavelmente pensando "abobrinhas" sobre os dilemas existenciais que ocupam a cabeça da gente numa tarde de dia de trabalho em que nos permitimos "vagabundar".

De repente aproxima-se da minha mesa um senhor de uns 45 anos, alto, forte simpático e negro. Vestia um uniforme com o nome de um edifício gravado na camisa. Pediu licença e perguntou se podia sentar à minha mesa. Concordei e ele sentou. Muito à vontade, pediu uma torta e um refrigerante e enquanto comia começou a conversar comigo. Contou-me sem qualquer constrangimento que era porteiro de um edifício vizinho e que de vez em quando gosta de ir à doceria comer a "Torta de Baba de Moça", a sua preferida. Mas acrescentou que é muito de vez em quando por causa de doer nos bolsos. Contei-lhe que sou psicóloga e ele me perguntou quanto custava uma consulta. Respondi. Então ele objetou que jamais poderia pagar um psicólogo particular e me perguntou sobre a oferta de serviços gratuitos no mercado. Assim, dali a pouco, estávamos conversando como dois amigos e eu já me esquecia que estava numa doceria burguesa.

Saí da doceria gratificada com aquele encontro e pensando com meus botões. Pensando, admirava aquele homem negro, porteiro de edifício que com todo auto-respeito sentava-se ao lado de uma senhora que na sua cabeça deveria também ser burguesa, e com todo o direito comia a sua torta e conversava animadamente. Pensei que em tempos atrás uma cena como aquela jamais aconteceria. Onde já se viu um negro, porteiro de edifício, entrar num ambiente daqueles e pedir para sentar à mesa de uma branca? Então pensei que os tempos estão mudando para melhor. Algo, não sei bem o quê, estava mexendo com a consciência de cidadão daquele homem. Pensei que aqueles que torceram o nariz para a presença de minha empregada como convidada na minha festa de 60 anos, ficariam meio irritados diante daquela cena. Na minha festa de 60 anos, apresentei Nice a uma amiga, que, fingindo que não entendia o que estava se passando, virou as costas e deixou minha empregada com a mão estendida.

Esse ano, há uns poucos meses atrás, fui com uma amiga de novo a uma doceria-sorveteria que fica num bairro também de classe alta e média alta. Conversávamos animadamente quando dei pela presença de um senhor mulato que eu conhecia, na mesa ao lado. Ele estava com o família. Cumprimentei o senhor e comentei com minha amiga o meu desconforto por não saber de onde o conhecia. Reconhecia a fisionomia e mais nada. Me deu um branco amnésico de sexagenária. No fim de semana passado fui à padaria do meu bairro e na volta peguei um táxi muito "peba". Um carro já meio velho, passando do ponto. Imediatamente reconheci o motorista. Era o senhor que eu encontrara na doceria-sorveteria e não reconhecera. Terá sido o meu branco  amnésia de sexagenária ou um lapso preconceituoso? Talvez eu jamais imaginasse encontrar o motorista daquele táxi "peba" naquele lugar. Ao sair do táxi e me despedir do senhor, pensei de novo que os tempos, numa certa perspectiva, parecem estar mudando para melhor.

Aconteceu também de eu ir a convite de uma amiga a um restaurante japonês caro. Usufruímos do delicioso sushi e jogamos uma boa conversa fora. Na conversa a minha amiga me contou algo estarrecedor e estapafúrdio com ares de terrorismo ideológico: ela recebeu um E-mail de um senhor conservador conclamando as pessoas a se empenharem no trabalho para o retorno do Brasil aos tempos da ditadura militar. Isso deve ser coisa daqueles mesmos que acham a presença de uma empregada negra na festa de aniversário da patroa, um acinte. Pensei com meus botões.

 Saímos do japonês comentando alegres sobre quantas pessoas negras e  outras, não necessariamente negras, mas parecendo ser de classe média baixa, estavam naquele restaurante. Comentamos que sob esse ponto de vista o Brasil está mudando. As camadas mais desfavorecidas a nível sócio-econômico, estão, de certa forma, tendo acesso a bens e serviços que não tinham há poucos anos atrás, mesmo que a gente observe, infelizmente, um grande aperto no poder aquisitivo da classe média.

Aos que estão me lendo, quero esclarecer. Não sou do PT. Não pertenço a partido algum nem quero pertencer. Voto de acordo com minha consciência e meu assunto prioritário são as questões da subjetividade. Quando vejo pessoas desfavorecidas tendo acesso a benefícios, fico feliz pelo quanto isso representa de ganho na sua condição de sujeitos desejantes. A mim não toca muito se isso vem da iniciativa desse ou daquele partido. Sempre, pela educação que recebi, estive torcendo pelos deserdados pela sorte, pelos oprimidos, pelos excluídos dos laços sociais. Fico muito feliz quando se instaura uma "Comissão da Verdade" e aparece no horizonte a possibilidade dos carrascos torturadores e assassinos da ditadura militar serem punidos.

 Contudo, acho as questões políticas que povoam as cabeças dos brasileiros num ano de eleição, cheias de complexas controvérsias e não considero que eu tenha nível de informação suficiente para sustentar um debate a esse respeito. Minha questão é a psicanálise recheada de uma boa dose de literatura e de artes em geral. Mas observo. E como observo.

Não acho que as conquistas obtidas pelo povo brasileiro estejam agradando à classe dominante. Pelo que conheço da "Psicologia de Grupo" do meu tão admirado Freud, não acho que manifestações violentas e anárquicas contra a Copa do Mundo, assunto que tão bem vem ao encontro do espírito e dos anseios do povo, sejam espontâneas e sem liderança. Acho que o terrorismo e a barbárie que estão sendo anunciadas pelos "manifestantes" para a ocasião da Copa servem a interesses ideológicos claros de desestabilizar o país num momento em que os holofotes da imprensa internacional estão voltados para nós. Por isso, volto à "Psicologia de Grupo" de Freud. Os vândalos covardes, mesmo escondidos sob um capuz, pretendem agir com endereço claro e atendem a uma liderança que os manipula. Que liderança será essa tão insensível ao gosto do brasileiro pelo futebol? 

O mês de junho começou. Soube por uma leitora que Meriam não vai mais ser assassinada. Junho, Santo Antônio, São João, Copa do Mundo. Coisas de brasileiro. Coisa de quem deve e sabe construir defesas contra efeitos de grupo perigosos e desastrosos. Coisas de quem não quer retornar a um passado político que só nos encheu de terror e vergonha. Vamos todos buscar honrar a bandeira brasileira. Vamos todos vestir a camisa da Seleção Brasileira e torcer pacificamente. Conscientes de que cabe a cada um de nós a tarefa de construir um país do qual nossos filhos possam se orgulhar. Um país onde porteiros de edifício possam comer "Torta de Baba de Moça" numa doceria chique e também e principalmente, ter acesso a atendimento psicológico acessível e de qualidade.
                                                                                                                Marcia Gomes.

domingo, 1 de junho de 2014

01/06/14                        FINAL  DE  MAIO  E  PSICOLOGIA  DE  GRUPO

Semana de final de maio prenhe de significações. Significações apontando em diferentes direções. Saiu a publicação do livro "Andanças" de autoria de Ana Cecília Bastos. Um relato comovente em prosa e verso das suas viagens exteriores e interiores, com farto material fotográfico bonito e tocante de Mário Vítor Bastos. Se vocês quiserem ter acesso ao livro é só clicar no seguinte endereço do blog:  http://casulotemporario.blogspot.com.br/

Assisti no teatro ao monólogo intitulado "A Alma Imoral" com Clarice Niskier. O texto é baseado num livro do mesmo nome de autoria de um rabino.  Aborda criticamente,  relativizando, as "verdades absolutas" preconizadas pela chamada "moral dos bons costumes", apontando as ambiguidades que cercam o certo e o errado, o trair e ser fiel e por aí lá vai. Das falas constam muitos textos do Velho Testamento a exemplo do dilema de Abraão diante do imperativo de sacrificar seu filho e do castigo imposto à mulher de Ló, transformada em estátua de sal por ter olhado para trás na saída de Sodoma e Gomorra.

Rafael, meu filho adotivo, passou em segundo lugar num difícil concurso público para professor na Universidade Federal Fluminense. Estou muito orgulhosa dele.

Consegui finalmente sintonizar o canal "Arte 1" e assistir a um bonito seriado sobre Madame Bovary. O canal  (n. 183 na Sky) é todo voltado para programações artístico culturais de excelente qualidade, e soube por uma colega que exibiu há dias atrás depoimentos de analisantes de Lacan. Também estou ouvindo pela internet uma excelente programação musical com todos os gêneros e posso me deleitar com jazz, blues e música clássica.

Meu grupo de estudos do Seminário 6 de Lacan vai de vento em popa e tivemos uma espécie de sessão de supervisão teórica com uma excelente psicanalista do Rio para discutir as dúvidas da leitura.

Mas por que as significações do final de maio apontam em diferentes direções? O que representam para nós as nossas pequenas conquistas, as nossas pequenas alegrias, quando Meriam Ibrahim, uma jovem de apenas 27 anos foi condenada à morte por ser cristã no Sudão, onde impera a lei islâmica? Nesta semana de final de maio ela deu à luz na prisão. Será executada quando a criança fizer 2 anos. O que representam as nossas pequenas conquistas, pequenas alegrias diante desse panorama social estarrecedor, onde, por intolerância religiosa um bebê nasce sob a égide de um luto anunciado?

Diante desse panorama social estarrecedor, onde, por amor, uma jovem sudanesa muda de religião e se casa e por isso é condenada à morte como adúltera, como não lembrar do atualíssimo trabalho de Freud intitulado "Psicologia De Grupo E Análise Do Eu" , escrito em 1921, pouquíssimo tempo após a guerra mundial?  Nele, Freud diz: "Duas pessoas que se reúnem com o intuito de satisfação sexual, na medida em que buscam a solidão, estão realizando uma demonstração contra o instinto gregário, o sentimento de grupo".

Neste mesmo trabalho, Freud diz que sob a situação de grupo um indivíduo pode passar a agir de modo inteiramente diverso do que poderíamos prever pelo que dele conhecemos em estado de isolamento pessoal. O funcionamento em grupo pode promover uma suspensão das repressões de impulsos instintuais inconscientes, implicando no desaparecimento da consciência ou do senso de responsabilidade, sob o impacto de uma espécie de efeito de contágio, consequência de uma intensa sugestionabilidade. No grupo o indivíduo corre o risco de ser submisso e tende a ter reduzidas as suas capacidades de julgamento e de crítica.

Analisando o caso particular de grupos como o exército e a religião, Freud diz que via de regra a pessoa não opina sobre pertencer ou não a esses grupos ou não tem escolha sobre seu desejo de deles fazer parte. Qualquer tentativa de abandoná-los é submetida a perseguição ou violentas retaliações.

Segundo Freud, nesses grupos cada elemento está vinculado por laços amorosos (libidinais) a um líder a quem obedece, e se torna hostil com os desobedientes e/ou pertencentes a grupos divergentes. E mais: em quaisquer reuniões de pessoas podem ser encontradas características similares a esses grupos. Quem de nós não conhece grupos de trabalho e/ou sociais em que interagir ou mesmo simpatizar ou não com um colega, passa pelo crivo da suposta aprovação do "mestre"?

Ainda segundo Freud, os laços amorosos com os semelhantes do grupo e com o líder, estão diretamente relacionados ao mecanismo de "Identificação". O indivíduo abre mão do seu ideal do eu, em nome do ideal grupal, encarnado pelo líder. Trabalho atualíssimo esse de Freud. Nada de novo sob o sol? O que representam as nossas pequenas conquistas, as nossas pequenas alegrias diante de um panorama social estarrecedor?

Todos nós sabemos (hoje me atacou a veia psi) que embora não seja possível prever, já que as questões da subjetividade são as da singularidade, que possivelmente para um bebê que nasce de uma mãe deprimida, o trabalho psíquico deste bebê para vir a se constituir um sujeito desejante é muito mais árduo. O que dizer do bebê de Meriam, que nasceu numa prisão de uma mãe condenada à morte? Condenada à morte por ser seu bebê fruto de uma união amaldiçoada por toda uma cultura! 

Pode ser exposição pessoal demais o que vou dizer. Afinal, ocupo o lugar de psicanalista. Afinal, parece que não pega muito bem para uma psicanalista, exposição pessoal como essa que costumo fazer no meu "Blá, blá, blá......". Mas não posso deixar de dizer: toda vez que acompanho no noticiário o drama de Meriam, choro e torço, um pouco desesperançosa, que o final de maio seja prenúncio de tempos onde se possam construir defesas eficazes contra os perigosos e às vezes desastrosos efeitos de grupo.

 Que haja um final de maio onde eu possa curtir sem constrangimento a vitória do meu filho no concurso, o meu estudo de Lacan, ter ido ao teatro , ter podido assistir Madame Bovary  e ler o "Andanças" .
                                                                                                    Marcia Gomes.